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Histórias de Amor Moderno. “O Francisco desvalorizou-me muito para lá do meu corpo e do meu aspeto"

“Chegados ao hotel, o Francisco agarrou-me, atirou-me para cima da cama e começou a despir-me.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: White Lotus / IMDB
07 de dezembro de 2024 às 18:40 Maria Olívia Sebastião

O fim do amor pode vir embrulhado numa peça de lingerie. Eu tinha acabado de vestir um novo bodysuit de renda. Pareceu-me ser a ocasião ideal para estreá-lo. O Francisco entrou no quarto e ficou a olhar para mim, muito atento. Senti-me observada; ao mesmo tempo, intimidada e vaidosa. E então ele disse "Vânia, não achas que estás a ficar com um bocadinho de celulite a mais?" Continuou a olhar para mim fixamente. Eu parei de me arranjar. Não consegui processar devidamente a informação, não logo naquele momento. Fiquei sentada a olhar para o espelho, mas sem me observar. Na verdade, olhava para o vazio na direção do espelho. O Francsico voltou para a varanda e acendeu um cigarro.

Existe uma diferença substancial entre processar racionalmente um evento num dado momento e decifrar perfeitamente o sentimento que esse evento produz em nós. Se eu tivesse de sintetizar o sentimento numa só palavra, diria que senti tristeza. Mas seria uma definição curta e demasiado condensada. Foi tristeza, sim, mas senti também desolamento. E desapontamento. Um vazio solitário temperado com desesperança. Senti abandono. Não me senti atacada. O aspeto físico nunca foi para mim assunto importante, pelo menos, não ao ponto de me fazer sentir atacada ou melindrada por um comentário menos benevolente. Mas o abandono magoou-me. Porque eu me estava a arranjar para o Francisco e a sentir-me bonita por isso. E ele foi deliberadamente destrutivo e maldoso. Desvalorizou-me muito para lá do meu corpo e do meu aspeto. Aquilo foi para mim uma declaração de desamor.

Isto não aconteceu numa circunstância nada casual. O momento era especial. Decidimos celebrar o meu trigésimo aniversário numa viagem à Toscana. Ficámos na marina de Scarlino. Queríamos passear de barco, visitar a ilha de Elba. Caminhar em Florença durante um dia inteiro. Conhecer outras cidades, tirar fotografias pirosas a fingir que segurávamos na Torre de Pisa. Provar os queijos e os salames, os presuntos e os vinhos da região. Era suposto ter sido uma viagem romântica. Não foi. Nunca foi. Mas eu tive esperança de que, naquele dia, o dia do meu aniversário, pudéssemos recuperar um pouco do que tivéramos tempos atrás - a paixão, o interesse, o desejo, o carinho, a alegria de estar na presença do outro.

O plano para o dia passava por jantar na vila-postal de Bolgheri, cuja estrada parece um cenário perfeito para figurar em filmes sobre uma Itália idílica. E eu, sonhadora, imaginei que, depois de um jantar de delícias em que provaríamos alguns dos melhores vinhos toscanos, regressaríamos ao hotel e faríamos amor com voracidade.

"Vânia, não achas que estás a ficar com um bocadinho de celulite a mais?" A frase ressoava-me na cabeça enquanto íamos estrada fora. É um caminho de belas paisagens, sobretudo quando abençoado por aquela maravilhosa luz dourada do fim de tarde, um caminho ladeado de pastos verdejantes e ocasionais vistas sobre o mar plácido e muito azul. Fiz toda a viagem em silêncio. O Francisco não pareceu incomodado com isso. Perguntou simplesmente se podia pôr música, eu encolhi os ombros e ele escolheu um disco qualquer da sua lista de eterno adolescente, possivelmente de uma banda de punk californiano daquelas que tocam as mesmas canções, todas iguais, desde 1997.

Não sei se o Francisco já sabia ou desconfiava durante essa viagem de carro, e depois durante o jantar, que eu já não tinha vestido o body que ele me vira vestir no quarto. Talvez não fizesse ideia. Depois de ele ter saído, despi-o e vesti umas cuecas banais, um soutien desportivo e, por cima, uma camisa vulgar e umas calças escuras. Não sei por que o fiz. Talvez tenha sido instinto, ou um ato reflexo. Pode ser que tenha sido uma maneira de me afirmar perante mim mesma, como se exclamasse "não me mereces, não quero saber de ti". Não sei como interpretar o que fiz. Sei que não o fiz por vingança nem retaliação. Foi, se tanto, um gesto de auto-preservação. O jantar foi silencioso e desinteressante. Felizmente, não se prolongou em demasia. Bebi um pouco demais, mas não o suficiente para me embriagar. Não quis perder o controlo nem a compostura. Pretendi saber o que pensar e o que dizer, além de fazer questão de guardar memória de tudo aquilo que ali se passasse.

Durante as longas pausas entre conversas insignificantes - "prefiro este queijo ao anterior", "gosto dos rótulos dos vinhos deles" -, aproveitei o silêncio de ambos e o meu sossego mental para rever o que era a minha vida com o Francisco. E concluí, sem dificuldade, que a referência indelicada à minha celulite, horas antes, não fora uma ocasião extraordinária, nem a ponta de um icebergue, nem a pior de todas as maldades. Foi somente mais uma das suas pequenas, subtis e discretas agressões diárias. E então percebi o quanto essas pequenas farpas pesavam, todas juntas, no meu íntimo, e o quanto as pequenas mágoas, quase microscópicas - isoladas seriam praticamente indolores -, acumuladas me causavam uma dor consistente, sustentada e permanente. Uma dor insidiosa. Não é uma dor de gritos nem de prantos. É uma dor que custa porque não passa, porque não acaba, porque não se lhe consegue fugir, acorda connosco, adormece dentro de nós. É uma dor aos bocadinhos que fica toda junta. Como um túnel que se escava com uma colher de chá, um bocadinho pequenino de cada vez, todos os dias, com disciplina, com rotina e com noção de causa-efeito.

Olhei para mim sem espelho e sem os olhares de outra pessoa. Contemplei-me por dentro e descobri que estava fraca, débil, esmorecida, desalentada, a minha confiança erodida pelos gestos e pelas palavras do meu companheiro. O meu amor-próprio subjugado ao desamor que emanava do Francisco e que ele manifestava, agora mais do que nunca, de um modo ostensivo e despudorado.

Revi na memória os pequenos episódios em que me fez sentir burra ou ignorante. Às vezes, só porque desconhecia qualquer coisa que era para ele óbvia, outras porque me enganava ou me atrapalhava a dizer um nome, a pronunciar uma palavra. E acrescentei esses aos outros em que me convenceu de que sou gorda, de que sou feia. E, pior ainda, percebi que me convenceu de que uma pessoa gorda, uma pessoa feia, uma pessoa ignorante, nenhuma dessas pessoas é merecedora de amor. E foi então que bati no meu fundo, quando me apercebi de que o Francisco estragara não só o meu amor-próprio, mas também a minha bondade, beliscou a minha humanidade, enfraqueceu-me a capacidade de empatia. Ao perder os sentimentos por mim, perdi também a gentileza e a compreensão. Quando a sobremesa chegou, o meu olhar era já diferente. Eu sentia-o. Alguma coisa em mim tinha mudado. Estar àquela mesa foi o retiro possível, mas produziu efeitos magníficos.

Continuei em silêncio no regresso a Scarlino. No carro, o Francisco não voltou a pôr música, mas o vinho parecia tê-lo animado. Soltava frases, lançava temas. Eu não lhe respondia, mantinha-me serena e segura. Dizia um "pois" de vez em quando e pouco mais. Chegados ao hotel, o Francisco agarrou-me, atirou-me para cima da cama e começou a despir-me. Mantive-me impávida, passiva, quase imóvel. Abriu-me a camisa à bruta, rebentou alguns botões. E percebeu que eu tinha mudado de roupa interior. Fez um ar de estranheza, como se não compreendesse. Disse-lhe que me doía a cabeça, que não me apetecia nada daquilo. Pareceu-me confuso. "Falamos melhor em Lisboa", disse-lhe.

Quando aterrámos, chamei um Uber e fui para casa do meu pai. Antes de entrar no carro, porém, disse-lhe: "Amanhã, vou lá a casa buscar as minhas coisas." Fiquei estupefacta com a surpresa no seu rosto.

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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