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“O homem provedor e a mulher ‘troféu’”: os estereótipos dos reality shows da SIC e da TVI

Conversámos com um sociólogo e com um investigador na área dos media para compreender quão graves são os estereótipos de género propagados pelos novos programas dos canais generalistas da televisão portuguesa, 'Quem Quer Casar com o Meu Filho?' – da TVI – e de 'Quem Quer Namorar com o Agricultor?' Um recuo a outro século ou será que nunca saímos de lá?

15 de março de 2019 às 18:39 Rita Silva Avelar

Tínhamos acabado de celebrar o Dia Internacional da Mulher, que se assinala a 8 de março, um dia que serve para lembrar a conquista de direitos fundamentais, um dia que homenageia em primeiro lugar as sufragistas que reivindicaram o direito de vota, num contexto histórico, político e social muito diferente do dos nossos dias, e muito mais retrógrado. Ou não? Numa era em que se as vozes femininas e não só se levantam em uníssono como aconteceu no movimento #MeToo (revolta contra o assédio e abuso sexual que surge depois dos escândalos sexuais que envolveram o produtor de Hollywood Harvey Weinstein); numa era em que falamos mais sobre igualdade salarial e sobre liderança no feminino; num momento em se fala de forma incessante sobre violência doméstica (já morreram nove mulheres, só este ano, em Portugal), pergunta-se, em primeira instância, em que é que as respectivas produções dos novos programas dos canais generalistas TVI e SIC pensaram (ou não) no momento em trouxeram formatos (embora importados de outros países) de reality shows em forma de concurso que partem de conceitos sexistas e misóginos para falar de amor. Falamos de Quem Quer Casar com o Meu Filho? – da TVI – e de Quem Quer Namorar com o Agricultor? – da SIC - os programas que emitiram não no dia 10 de março, mas sim dois dias depois de nos recordarmos porque é que continuamos a precisar do Dia da Mulher. Porque não; não estamos em equilíbrio em nenhum patamar, e pelos vistos não estamos cada vez mais perto - pelo menos a julgar pela televisão portuguesa da atualidade. "A primeira coisa a dizer é que a televisão – sobretudo a generalista - é uma televisão preguiçosa. Limita-se a importar programas e a traduzir. É uma televisão replicadora. É uma televisão que cria efeito de repetição no lugar da inovação e da abertura ao novo" começa por explicar Bernardo Coelho, sociólogo e professor no ISCP que se tem especializado no estudo de género. O certo é que ambos os programas já levaram a várias queixas na Entidade Reguladora da Comunicação (ERC). "Antes de mais há que fazer a ressalva de que ninguém participa nestes programas forçado. Questiona-se se a maioria das pessoas efetivamente irá à procura do amor. É uma procura rápida da fama. Só sabendo a motivação de cada um destes concorrentes se pode opinar com conhecimento de causa", explica João Paulo Faustino, investigador na área dos media e autor de vários estudos na área e professor na ESCS.

"Por um lado, vivemos num momento em que se consolidam e aprofundam fortes tendências para a igualdade (…) vivemos num contexto em que a assunção de posições marcadamente feministas se tende a democratizar e a chegar a novas pessoas, ganhando renovada visibilidade social. Por outro lado, e ao mesmo tempo, estas conquistas não se fazem sem fortíssimas resistências. Isto é, vivemos num contexto social e político onde também prolifera o ressentimento. Um ressentimento baseado no sentimento de perda: perda de importância de uma masculinidade profundamente desigualaria, perda de privilégios masculinos" explica Bernardo Coelho, acrescentando que "será precisamente no quadro deste ressentimento (que se torna crescentemente mais visível e público) e das resistências às mudanças sociais no sentido da igualdade entre mulheres e homens, bem como no quadro da desvalorização da igualdade como um direito fundamental, que podemos situar a análise destes dois programas".

O impacto da emissão destes programas

Sobre os estereótipos de género implícitos no programa, o investigador João Paulo Faustino explica que "se tivermos de enquadrar os estereótipos de género, temos, no caso do "Quem quer casar com o meu filho?", a figura masculina reduzida à condição de menino dependente da mãe, é uma figura passiva. Podemos encontrar machismo, perpetrado pela própria mulher (as mães), que reduzem as candidatas à condição de fada do lar, com perguntas como "sabe cozinhar?", "sabe cuidar da casa?", "quer ter filhos?", "que idade tem?". O  machismo também se pode aplicar no "Agricultor": pode-se considerar que a mulher é tratada como mercadoria. Assiste-se à objectificação da mulher. O primeiro impacto, o primeiro escrutínio, nos dois programas, é a atenção à aparência física. E isto é mútuo, homens-mulheres, mulheres-homens" esclarece.

Sobre a importância ou gravidade da emissão destes programas, o sociólogo Bernardo Coelho explica que "se deve, por um lado, ao facto deste programas serem – em si mesmos – formas de legitimação de visões particularmente tradicionalistas e desgualitárias das relações sociais de género e do lugar social que homens e mulheres devem ter no mundo. Por outro, porque reproduzem como legítimas as ideias do que é e deve ser um homem (masculinidade) e uma mulher (feminilidade) particularmente desigualitárias e penalizadoras das mulheres".

Voltamos, portanto, aos conceitos ultrapassados de que se por um lado o lugar do homem é o "da produção, da atividade, do poder, etc (programa do homem agricultor – ideia do homem como trabalhador incansável e provedor da família)" o das "mulheres é o lugar da passividade, da domesticidade, do recato, da aceitação, da responsabilidade permanente com o cuidado em relação à casa, á família e ao homem (programa da seleção da mulher para o filho – ideia de que a mulher deve ser recatada, prendada e do lar)", continua Bernardo.

Quem quer casar com o agricultor e a ideia da "mulher troféu"

Sobre este programa, o sociólogo considera que se "assiste ao reforço ou ao regresso da ideia de uma masculinidade adequada de carácter tradicionalista e desigualitário (…) "trata-se da veiculação e reprodução de um modelo de masculinidade que se produz e reproduz num quadro de competitividade entre homens e na constante prova de quem será o mais adequado em relação a um conjunto de exigências estereotípicas, como a exigência da demonstração da capacidade física, do ser-se bem-sucedido nas formas de integração económica, de se ter competências físicas , confiança, segurança e controlo permanente da situação." O que está bem patente na lógica da competição do próprio programa e no confronto e permanente a que estão sujeitos os homens que estão no jogo.

Se por um lado o homem é desta maneira "desenhado" no programa "Quem quer namorar com o agricultor?", por outro "a mulher é concebida pelo programa e pelos concorrentes homens como uma mulher troféu: a mulher fica com o homem que ganhar. Ela é o prémio para o homem que demonstrar ser mais competente na aproximação à ideia estereotipada da masculinidade adequada e tradicional". "Por outro, o lugar conferido á mulher neste programa, parecendo que lhe é dado o poder da escolha, na verdade é-lhe oferecido o lugar da passividade, da expectativa e da sua própria adequação a um modelo de feminilidade que corresponda às exigências de uma masculinidade que desvaloriza as mulheres e que constrói" conclui.

Quem quer casar com o meu filho e o recuo até  outros séculos

Não há dúvidas, para este sociólogo, que regressamos a outro século com este programa. "Assistimos ao regresso ao século XIX em que o casamento e a conjugalidade não eram construídos pelo sentimento amoroso entre os protagonistas, mas eram decisões e negociações entre famílias. Regressamos a uma lógica em que a mulher era um objeto transacionado entre famílias" e acrescenta que o "programa explora e reforça estereótipos sobre o que devem ser as mulheres e que são profundamente penalizadores para a sua existência enquanto cidadãs nas sociedades contemporâneas: as mulheres são retratadas como devendo ser mães e cuidadoras em primeira instância – como se fosse uma responsabilidade obvia e natural da sua condição e existência." O que se torna mais grave quando são as mães a escolherem a mulher com quem o filho se irá casar. E depois, o facto de aqui se transformar a conjugalidade numa relação desigual: "às mulheres são atribuídas todas as responsabilidades cuidadoras e ao homens o lugar de quem é apenas cuidado".

Por fim, e sobre o papel nos media nesta temática, o investigador João Paulo Faustino explica que esse é "crucial. É devido a eles que temos programas na nossa grelha. A preocupação é com as audiências e não com a qualidade televisiva. Como um cavalo de Troia, as pessoas "compram" pela aparência, o problema é o que vem lá dentro". Acrescenta que "ainda assim, é importante notar o seguinte: da mesma maneira que ninguém é forçado a concorrer, também ninguém é forçado a assistir. A "responsabilidade" é colectiva: de quem cria, de quem concorre e de quem assiste".

Para terminar acrescenta um ponto ainda não abordado mas não menos importante: "nestas situações perde-se todo o romantismo, e ainda de forma mais essencial, a naturalidade que existe em conhecer outras pessoas, estabelecer contacto, comunicar, conviver. É isso que torna as pessoas em seres sociais, e que nestes formatos desaparece". Romantismos à parte, é preciso reflectir sobre e acima de tudo, à decisão de emissão de qualquer um dos programas.

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