Entrevista Felícia Cabrita: “Sou agnóstica. Não estou aqui a defender a igreja. Mas nunca dou dispensa à imparcialidade."
Destemida para uns, inconveniente para outros, foi a primeira jornalista a denunciar os casos de pedofilia na Casa Pia, em 2002. Mais de vinte anos depois, numa altura em que a sociedade portuguesa vai, a cada dia que passa, conhecendo os contornos de um novo escândalo sobre abusos de menores na Igreja Católica, Felícia Cabrita faz a sua análise.

Não é difícil conseguir o número de telefone de Felícia Cabrita. Aliás, no jornal Sol, meio de comunicação no qual escreve atualmente, como em todos os outros onde trabalhou antes, e foram muitos, sempre houve a indicação expressa de partilhar os seus contactos com quem os solicite. A disponibilidade é quase um ponto de honra para ela, referência incontornável do jornalismo de investigação em Portugal. Quando ligamos para marcar a entrevista, sugere: "Porque não vem ter cá a casa?" Foi no seu apartamento, mais precisamente numas águas-furtadas com paredes revestidas a livros, que conversámos. É esse o sítio onde se refugia para pensar e escrever, mas também aquele onde recebe, sem grandes reservas nem muitos preâmbulos. Confessa-se um bicho do mato, com pouca paciência para frequentar festas ou sítios da moda, mas infinitamente resiliente quando se trata de fazer o trabalho. Sabe levar o seu tempo. Sem pressa nem pressões. Com uma carreira com mais de três décadas, a jornalista, natural do Algarve, investigou os mais mediáticos casos e processos judiciais portugueses das últimas décadas: Freeport, Face Oculta, Monte Branco, Operação Marquês ou Estripador de Lisboa. Isto, para nomear alguns. Outros dos seus trabalhos foram transformados em séries televisivas (casos de Ballet Rose, Capitão Roby, a Febre do Ouro Negro ou A Joia de África), tendo ainda escrito vários livros, entre eles as biografias de Pedro Passos Coelho e de Pinto da Costa. Acredita no jornalismo como contrapoder e navega essas águas agitadas sem medo, com um indisfarçável orgulho: "Há muita gente que continua a ter de correr para me conseguir apanhar".

A Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) tem sido muito criticada pela forma como recebeu e reagiu ao relatório apresentado pela Comissão Independente (CI) para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa. Que leitura faz dos desenvolvimentos mais recentes?
Não gosto de tirar conclusões precipitadas. A comunicação social e os comentadores caíram que nem cães esfaimados em cima da Igreja. Em 2003 [aquando do processo Casa Pia], a sociedade portuguesa – que já tinha gerido muito mal a detenção do Carlos Cruz – entupiu com a detenção do Paulo Pedroso. Nessa altura, falava-se mais do direito dos arguidos do que do das crianças abusadas. Espantosamente, agora, e eu já intuía que isto fosse acontecer - numa entrevista que fiz ao Pedro Strecht [pedopsiquiatra e coordenador da CI], cheguei inclusivamente a perguntar-lhe se a Igreja não seria um alvo muito mais apetitoso do que foi a Casa Pia -, mandaram-se às urtigas valores fundamentais, como a presunção de inocência ou o contraditório. Há dois pesos e duas medidas? Há um para os laicos e outro para o clero? Nos dias seguintes à apresentação da lista com os 100 nomes, entregue pela Comissão Independente à CEP, preferi não me pronunciar, porque não queria ser injusta e preferia esperar para perceber, afinal, qual o conteúdo dessa lista onde, supostamente, constavam os nomes de alegados pedófilos vivos e que acabou por afunilar todo o debate. Na conferência, José Ornelas disse que os bispos tinham nas mãos apenas nomes. E que era preciso ir para casa e trabalhar. Pensou-se, de imediato, "Lá estão o raio dos padres mais uma vez a ocultar os crimes, a proteger os sacerdotes! Está visto que a igreja não mudou!" E a Comissão Independente, que devia ter estado caladinha, veio lançar mais achas para a fogueira, respondendo que havia muito mais que nomes. Era nisto que os jornalistas e comentadores encartados queriam acreditar. Uns porque queriam sangue, outros porque precisam de bonne presse.

E qual é então a sua perspetiva?
José Ornelas não mentiu. Foi-lhe entregue uma folha com apenas uma coluna, sem datas, sem crimes atribuídos aos abusadores e, muitas das vezes, o nome do alegado abusador nem estava completo. Ainda por cima, o trabalho da CI foi analisado por distritos, sendo que o limite territorial das dioceses não corresponde ao distrito. Daí aparecerem nomes que os bispos desconhecem. Convém que os jornalistas, principalmente estes, olhem para os factos com objetividade. Que façam o contraditório e, quando o fizerem, que se esteja de facto na disponibilidade de ouvir o outro lado. O que não está a acontecer. E faço já uma declaração de interesse. Sou agnóstica. Não estou aqui a defender a igreja. Mas nunca dou dispensa à objetividade, à imparcialidade. Quem acompanhou este processo sabia que a CI apenas tinha enviado para a justiça 25 casos. Desses, como a Procuradoria-Geral da República veio dizer, apenas seis tinham pernas para andar. Os outros foram arquivados. Então como é que de repente agora apareciam 100 nomes? As dúvidas que tive nos dias que se seguiram à entrega do relatório, dissiparam-se à medida que começaram a sair os comunicados das várias dioceses...
Mas não era expectável que a Igreja afastasse desde logo as pessoas suspeitas que ainda estivessem em exercício das suas funções?
Lá está! O que estes comunicados têm revelado é que, no mínimo, 40 por cento destes sacerdotes, estão mortos e não é possível, mesmo que fossem pedófilos, serem suspensos no além. A não ser que na malha finíssima de S. Pedro eles já tenham marchado para o inferno (risos)! Outros nomes da lista já não estão no ativo. Há, ainda, os que já foram julgados quer pela justiça civil quer pela canónica. Se os factos forem os mesmos, não podem ser punidos de novo. Mas o mais flagrante, e que revela uma grande fragilidade no trabalho na CI, é que há nomes cujos crimes não estão especificados, como nos apercebemos pelo comunicado da Diocese de Coimbra que diz, em relação a determinado sacerdote, que pediu informações complementares à CI e que, afinal, o homem não tinha praticado qualquer crime. Vá de retro Satanás (risos). Não me queria sentar neste tribunal. No entanto, a Igreja já suspendeu vários padres.

Considera, portanto, que o trabalho realizado pela Comissão Independente tem falhas?
Considero que, se a CI tivesse mantido até ao fim o seu objetivo de fazer um trabalho histórico e não uma investigação ou um julgamento, estava tudo bem. Quero dizer que Daniel Sampaio, para esconder as fragilidades do seu trabalho, não pode tentar calar a Igreja, quando ela tem razão e se encontra numa posição de extrema fragilidade, ameaçando: "A Igreja sabe que nós sabemos que eles sabem". Aliás, Marques Mendes, no seu espaço dominical na SIC também sugeriu que os bispos se deviam de calar. Como resposta, o Bispo de Lamego veio a terreiro, e bem, pedir, por tudo isto que lhe disse, à CI que se retrate. Estou a pedir comentários à CI desde o dia da conferência, porque me cheirou logo a asneira da grossa, mas nem uma palavra. Sabe, na casa Pia também havia uma lista. Tudo gente conhecida e com alcunhas como o Andorinha, a Coxinha. Alcunhas que, aliás, lhes assentavam que nem uma luva, dado algumas características físicas. Houve até quem ligasse ao José António Saraiva, na altura diretor do Expresso, a perguntar se o seu nome estava na lista. Mas nunca se recolheu indícios suficientes sobre essas pessoas. Até porque os crimes estavam prescritos. Diferenças de tratamento...

Mencionou o Processo Casa Pia. A Felícia Cabrita foi a primeira jornalista a denunciar esses casos de pedofilia, em 2002, tal como antes já tinha investigado o caso Ballet Rose.

Sim, os Ballet Rose referem-se a um caso de pedofilia que ocorreu nos anos 1960 no Estado Novo clerical, que envolveu alguns fidalgos e proprietários, gente ligada às finanças, e que acabou abafado. Salazar fez tudo para o que processo acabasse em nada e, de facto, apenas duas ou três pessoas foram a julgamento. Foi o Partido Socialista (PS), nomeadamente Mário Soares, quem divulgou o caso no estrangeiro, creio que ao jornal alemão Der Spiegel. Mas quando algo semelhante lhes bate à porta, já no período pós-25 de abril, fizeram tudo para o silenciar, nomeadamente interferindo no poder judicial. Em parte, acredito que isso se deva ao fator surpresa. Ninguém está preparado para aceitar tal vergonha em casa própria. Lembro-me de uma das escutas do processo em que o inocente Mariano Gago, quando se soube do envolvimento de Paulo Pedroso, exclamou: «Isto é o regresso do fascismo!" (risos). Ou seja: as classes defendem-se. E no que diz respeito à igreja, todos sabemos que existem bispos em Portugal que tiveram conhecimento de casos de abuso e os encobriram. Não sei se isto consubstancia algum crime, mas no meu entender quem abafa estes casos é cúmplice, e há situações de claro encobrimento. Em relação a José Ortiga, ex-arcebispo de Braga, nos casos que investiguei e cujas vítimas falaram posteriormente com a CI e com a Igreja, um dos padres foi agora suspenso, o outro já tinha sido impedido de celebrar missa e reporta-se a casos muito antigos.
Existem diferenças substanciais entre os dois processos?
No caso da Casa Pia existiam 900 testemunhas, dezenas de vítimas, demonstração de abusos feita pelo Instituto de Medicina Legal. E ainda hoje, muita gente acha que foi uma cabala. Falou-se de prova plantada. Agora ninguém fala nisso e, no entanto, [ela] existe em qualquer processo deste tipo. Para além da prova testemunhal, há prova documental, nomeadamente velhos processos que demonstram que, pelo menos desde a década de sessenta, redes de pedófilos, até americanos e franceses, abusaram dessas crianças que estavam à guarda do Estado. Mas quando o escândalo atingiu a classe política, aqui-d’el-rei. A verdade é que chegaram poucas pessoas a tribunal, tal como nos Ballet Rose. Aliás, em setembro fez vinte anos que o escândalo da Casa Pia rebentou e ainda não ouvimos um pedido de desculpas de ninguém. Por exemplo, o Presidente da Républica, que gosta tanto de efemérides, lembrou-se da data? Não. E foram necessários 20 anos para vermos unanimidade na Assembleia da República quanto ao alargamento dos prazos de prescrição dos abusos sexuais.
Defende que há uma certa precipitação, no sentido de querer que tudo se resolva depressa?

Quando o próprio Presidente da República, após terem saído vários comunicados das dioceses a dar conta do que já lhe expliquei, vem dizer, referindo-o às suspensões, que "é uma questão tão óbvia, tão óbvia, tão óbvia de prevenção", estando-se a borrifar para a presunção de inocência, o que é que podemos esperar? Era bom que Marcelo Rebelo de Sousa se lembrasse que, se assim fosse, quando o PS o tentou envolver no processo Casa Pia— como se vê pelas escutas, se a Justiça não separasse o trigo do joio, poderia ter tido dissabores.
Vou dar-lhe dois exemplos. Uma estação de televisão, que durante três dias repetiu a mesma história, entrevistou um sacerdote que já foi julgado e condenado, e que também esteve suspenso das suas funções na Igreja. O sacerdote assume o seu crime, pede perdão, uma exposição a que não é hábito assistirmos, e diz viver com esse arrependimento. Mas o jornalista entrevista os fiéis da paróquia que dizem não ter sido informados sobre o cadastro do homem, como se ele tivesse de estar fixado num placard na Junta de Freguesia, e há quem que já não ponha o pé na missa. Nós sabemos que um pedófilo tende a repetir o crime, mas vamos deixar cair os velhos princípios? Não podemos esquecer o superior interesse da criança e a sua proteção, mas também não podemos desistir da ressocialização de um condenado. E com Carlos Cruz o que aconteceu? Foi completamente reintegrado pela sociedade, dá entrevistas, sempre deu. Os jornalistas nem o confrontam com o passado. Em que ficamos? Está tudo doido!

Faz falta mais jornalismo de investigação em Portugal?

No que diz respeito a esse assunto há um fator incontornável: o dinheiro. Atravessamos uma grande crise financeira, já há alguns anos. Houve trabalhos que fiz, por exemplo os relacionados com a Guerra Colonial, em que ouvi cá os soldados e fui até lá falar com as vítimas, que exigiram muito tempo. Tenho dúvida que hoje fossem possíveis. Cheguei a ser a jornalista mais cara do Expresso e não era pelo meu ordenado, mas porque não falo com ninguém pelo telefone, investigação não é isso. As deslocações implicam muitos custos. Há capacidade para os suportar hoje? Duvido.
E há interesse, do ponto de vista editorial?
Também já ouvi de alguém, que dirige um jornal muito respeitado, que os acionistas daquele grupo não estão interessados no jornalismo de investigação, porque nunca se sabe onde é que a mão do jornalista vai bater.
Tem trabalho publicado em alguns dos casos mais mediáticos em Portugal nas últimas décadas, da Casa Pia ao caso Freeport, Face Oculta, Operação Marquês, etc. No entanto, diz que a sua carreira é fruto do acaso...
Sim, é mais fácil dizer que é fruto do acaso. E o acaso tem muito mais peso na vida do que as pessoas imaginam. O meu primeiro trabalho foi uma história do século XIX, sobre o primogénito de uma família, um menino que morreu com uma meningite e foi embalsamado. Já tinha um lado de pesquisa histórica, que sempre me atraiu. O quotidiano é muito traiçoeiro. Eu preciso de provas, mesmo que ela se faça pela via testemunhal. Mas o documento tem uma grande importância. Em histórias de guerra, como nos Massacres de Batepá, em São Tomé, os documentos e fotografias de época foram fundamentais. Os Ballet Rose também surgem cedo na minha carreira. Implicou a consulta do processo, procurar todos aqueles nomes, e sem ajuda de ninguém. Recorria ao [serviço telefónico] 118 para fazer essa busca, muitas vezes por aproximação. É precisa muita paciência para fazer este tipo de trabalho e eu costumo dizer que tenho uma paciência infinita. Por várias vezes, já me disseram para desistir e eu não fui capaz. Porque sentia que conseguia lá chegar.
Fez muitos inimigos no caminho?
Sim. Costumo dizer que qualquer dia não tenho com quem falar. Não sou politicamente incorreta, sou politicamente indigestível. A classe política tem medo de mim, precisamente porque não sabe onde é que a mão me vai parar. Depois, há um sentimento de inveja em Portugal, que é devastador, mas apenas para quem o sente. Há uma grande inveja na nossa classe. Os meus trabalhos fazem mossa e eu sinto-me feliz por isso. Tal como diz um poeta de quem gosto muito, António Maria Lisboa, "Estou certo de que chegarei à câmara mortuária sozinha". Eu também, mas quero chegar com a minha consciência. Chegarei à câmara mortuária sozinha, com um rol de inimigos. Mas isso é uma satisfação. Demonstra que não andei aqui a fazer cócegas. Acredito no jornalismo como um contrapoder e lamento, na maior parte das vezes, não sentir isso na comunicação social.

Considera-se uma outsider dentro da sua classe?
Sim.
É também por isso que trabalha sozinha, em casa?
Sempre trabalhei. Gostava da redação, tenho um lado infantil, da brincadeira e de convívio com os colegas. Mas o ambiente das redações, a inveja, o passar por cima do outro, tudo isso ajudou a que me afastasse. O silêncio é o meu melhor amigo, sobretudo no processo de escrita, que exige muita concentração, mas também no trabalho com as fontes.
Refere-se a si própria como um bicho do mato.
Um dia, um amigo disse-me que não sabia como é que eu sobrevivia a tanto lodo porque, neste tipo de trabalho, lida-se com o lado mais obscuro da humanidade. Preciso de desintoxicações e a minha casa é o meu sanatório. Não tenho uma vida social, não frequento os lugares que os jornalistas frequentam, recebo os amigos em casa e preciso destas curas.
Nunca teve medo?
Não. O medo é uma coisa muito passageira. Acho que só realizo estas coisas depois de me expôr ao perigo. Eu não faço essa preparação, vou à frente, mesmo que me avisem. É o meu trabalho.

O género pesou, de uma forma ou outra, em alguma altura do seu percurso?
Acho que não. Lidei com todo o tipo de fontes. É preciso uma grande capacidade para ouvir, para chegar até às pessoas. Às vezes, inclusive, envolve um certo teatro, encarnar outro papel. Há algum tempo, o João Miguel Tavares dizia-me, em entrevista, [para o podcast Artigo 38], que havia a ideia de que só tinha acesso a certas fontes apenas porque era mulher. Nunca se diz isto a um homem. Há várias formas de ameaçar alguém. Uma delas é sugerir alguma coisa sobre alguém. Durante o caso Freeport, houve um conluio entre o então Primeiro-Ministro José Sócrates e um Procurador, em que criaram a teoria do meu envolvimento com um magistrado. Processei-os. Há coisas que já não deixo passar em claro. Não porque me sinta melindrada, a mentira não me incomoda. Mas não me deixo intimidar.
Até que ponto é que a sua vida profissional definiu a sua vida pessoal?
Quando engravidei, o meu maior medo era que o facto de ser mãe me mudasse. Quando a minha filha tinha três meses senti essa necessidade de partir. Por um lado, havia uma imensa tristeza, até porque amamentava e havia uma ligação física muito forte, mas, por outro lado, precisava desse teste. E percebi que continuava a mesma pessoa. Nesta profissão, não há horários, não há fins de semana, a disponibilidade é diferente. Mas tudo o que se disse a meu respeito nunca abalou o meu mundo nem as minhas relações mais próximas. Aprendemos muito e eu fui ganhando estaleca para tudo. Enfrento os bons e os maus momentos. Com tudo o que já se disse a meu respeito, podia estar desfeita, mas esse gosto não lhes vou dar. A inveja e as pressões têm o efeito oposto em mim. A minha carruagem vai muito mais além do ruído dos cães que ladram.

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