A Flor do Cacto

Coisas estranhas que fazemos às escondidas

Foto: IMDB
03 de novembro de 2023 Cláudia Lucas Chéu

Há quem diga que só somos verdadeiramente aquilo que somos quando ninguém está a ver. Tirar "catotas" do nariz (embora haja um número bastante alargado de cromos que escarafuncham dentro das narinas, sentados nas viaturas paradas nos semáforos), coçar o rabo, eventualmente libertar sem medos um ou outro pum (com ou sem odor de toxicidade fatal), mexer na genitália em frente à TV, assistir a pornografia bizarra, que choca e não entusiasma, comer de boca aberta, arrotar como se se quisesse lançar um rasto de som até ao prédio da frente, tirar cotão do umbigo e eventualmente cheirá-lo, olhar para o papel higiénico sujo depois de defecar e verificar a eficácia da limpeza, ou se a cor das fezes indica algum problema de saúde, enfim, tudo coisas animalescas, nada atraentes e que devem ser mantidas longe da vista dos outros e do nível consciente do próprio. Contudo, se eliminarmos estas acções básicas ao nível da escatologia, entramos realmente no domínio da verdadeira bizarria. Há quem ande pela casa a falar sozinho, fazendo uso de várias línguas e sotaques; há quem coloque uma almofada na barriga e finja estar grávida enquanto lava a loiça ou aspira as várias divisões do apartamento; há quem faça concertos completos nua, ao pé da janela do quarto, numa tentativa de exibicionismo artístico; há quem compare o tamanho da cabeça do cão com as mangas que tem na fruteira, por considerar que o animal tem a cabeça pequena demais para o corpo; há quem se deite no chão e finja ser uma minhoca ou emita sons aleatórios de baleia; há quem goste de dizer palavrões em voz alta, de atar um lençol à volta do pescoço e fingir que é um herói ou uma bruxa; há ainda quem finja que está a ter discussões complicadas ou a fazer amor com um desconhecido. Enfim, a lista é infindável. Basta fazer uma pesquisa num motor de busca online. Por mais bizarro que tudo isto possa parecer, é real, há quem ateste que sim. Ler documentos aleatórios na internet pode ser bastante elucidativo sobre a raça humana. Na verdade, todos nós temos comportamentos estranhos quando estamos sozinhos. Eu, sujeito enunciador do texto, e não a autora, gosto, por exemplo, de escrever na cama depois de ter tido um orgasmo. Gosto de escrever deitada, ainda nua. A questão é: não considero isto bizarro. Mas, aos olhos de certas pessoas, pode ser. Portanto, se há coisas que transversalmente parecem estranhas ao olhar do outro, ao próprio raramente fazem confusão ou perturbam, embora saibam que não poderão fazê-las com companhia. Felizmente, a maior parte de nós tem noção das regras e algum pudor. Tenho consciência de que não gostaria de assistir a estes momentos livres e solitários da maioria das pessoas que conheço. Estou certa de que nunca mais olharia para a pessoa da mesma forma. Uma coisa é supor, outra é ver. Chamemos-lhe hipocrisia ou o que se quiser, mas nunca percebi, por exemplo, aqueles casais que partilham a casa de banho durante as necessidades fisiológicas. São coisas que normalmente fazemos quando ninguém está a ver. Talvez seja apenas por educação, fomos ensinados a não olhar para esses momentos. Ou apenas, e estou convicta de que esta é a principal razão, porque é desagradável ao olfacto e à visão, e à dignidade da pessoa com a qual partilhamos a vida. E, na verdade, também não consigo acreditar que só somos realmente o que somos quando estamos sozinhos, sem grande consciência dos actos que fazemos. É uma parte de nós, claro, mas estou em crer que não mais autêntica do que noutras circunstâncias em que também há pouco raciocínio, como no sexo ou a praticar algum desporto. Seja como for, penso que dispensamos assistir a qualquer espectáculo escatológico ou bizarro que, no meu entender, deve permanecer sempre no âmbito do secreto e do monólogo.

* A cronista escreve de acordo com o Acordo Ortográfico de 1990.

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