Leonor Pinhão: “Se há mulheres nas redações desportivas é porque são competentes no que fazem”
Jornalista sénior na área desportiva, começou a trabalhar ainda adolescente, com a ingenuidade própria da idade. Mais tarde, enfrentou os dissabores de um mundo ainda dominado pelos homens, sem medo e com determinação.

Começou a trabalhar oficialmente n’A Bola aos 19 anos, mas a colaboração com o jornal já vinha de antes, daquela altura difusa em que as férias grandes duravam três meses e em que a perspetiva de umas semanas passadas na redação era mais entusiasmante do que os programas da adolescência, repartidos entre as habituais idas ao cinema e intermináveis tardes de convívio no café. "Recebia as classificações das etapas da Volta a Portugal em bicicleta e, de vez em quando, o meu pai [diretor do jornal] pedia-me para escrever as legendas de umas fotografias e corrigia as que não estivessem bem". Leonor, a única mulher na redação, não sentia que fosse a única mulher da redação. Era apenas mais um elemento daquela segunda casa, um lugar com tarefas e afetos tantas vezes diluídos à mesa das tascas do Bairro Alto, à época uma espécie de nervo geográfico da cidade e do jornalismo nacional. Esse tempo, inevitavelmente, passou, mas não o de Leonor que, depois de diferentes projetos na imprensa generalista e após algumas incursões pela televisão, regressou sempre às páginas dos jornais. É o que faz regularmente, enquanto colunista do Record e do Correio da Manhã.
Como é que se lembra de si própria, na altura em que chega à redação d’ A Bola?
Eu adorava tudo. É assim que me lembro de mim nessa altura, muito contente.
Havia alguma inclinação pessoal para o jornalismo desportivo ou este início - que acabou por marcar o seu percurso – foi, sobretudo, fruto das circunstâncias familiares?

As circunstâncias familiares são ineludíveis em todas as famílias. Mas julgo que nunca me imaginei a fazer outra coisa para ganhar a vida que não fosse escrever. Com exceção de um período em que quis ser arqueóloga, mas era mais pela parte aventureira, a ideia de dormir em tendas no deserto, de me poder vestir como quisesse e de percorrer lugares inóspitos, enfim, tudo o que estava vedado às mulheres. Depois encontrei esse espírito de aventura e outros prazeres de rebelião no jornalismo e foi o melhor que fiz.

As redações dessa altura (finais da década de 1970) eram bastante diferentes das atuais por vários motivos, mas também pela ausência de mulheres. Como é que descreveria as redações de então, em particular as das publicações/secções de desporto?
Sim, não havia nenhuma mulher nas redações dos jornais desportivos e eu, confesso, mal dei por isso. Ia para a redação d’A Bola desde miúda, conhecia desde sempre aqueles homens todos que admirava, trabalhava com eles, jantávamos três vezes por semana pelas tascas do Bairro Alto. Era tudo normal. Nunca tive consciência de género nesses anos iniciais. Mais tarde, no dia em que fui admitida como redatora do quadro de profissionais d'A Bola, o meu pai disse-me uma coisa que nunca mais esqueci. "Neste nosso mundo, uma mulher para exercer a profissão de um homem tem de ser dez vezes melhor do que o homem, portanto esmera-te." Achei adorável, mas não percebi bem o que é que ele me queria dizer. Claro que fui percebendo cada vez melhor ao longo da vida e não tendo apenas por referência o jornalismo desportivo como profissão, à partida, vedada às mulheres.

No livro As Primeiras Mulheres Repórteres (Tinta da China), de Isabel Ventura, a Leonor é retratada como uma pioneira: "Durante muitos anos, foi a única mulher portuguesa a escrever sobre futebol". Ser a primeira teve vantagens e desvantagens?
Não me consigo lembrar de nenhuma desvantagem. E gosto da palavra "pioneira" neste e em qualquer outro contexto.
A certa altura trocou o jornalismo pelo comentário desportivo. Como é que foi recebida pelos seus pares?
Terei sido mais bem recebida por uns do que por outros e nem estava à espera que não fosse assim.


É importante haver alguma legitimação nestes processos?
A legitimação não vem dos nossos pares, vem exclusivamente dos nossos leitores e assim é que é bonito. Há também a legitimação de género e devo dizer que em todas as redações de jornais generalistas onde trabalhei posteriormente não encontrei ambientes mais abertos, menos misóginos e mais participativos do que os que existiam nessas seções de desporto que conheci.
Esta foi também a altura em que optou por se assumir como benfiquista (o que nem sempre acontece, entre as pessoas que fazem comentário desportivo). Que influências e impacto é que esta decisão teve?

Desde que me lembro de mim acho que nunca disse a ninguém que não era do Benfica. Mas aconteceu que depois de uma experiência infeliz no Semanário recebi um convite da SIC para defender o Benfica num programa que se chamava Os Donos da Bola e aceitei. Como jornalista tinha o dever de isenção, como opinante ou colunista ligada pública e afetivamente a um clube tenho o dever de não-isenção que é, a seu tempo, bastante mais divertido.
Conta que, nessa altura, era abordada por outras mulheres na rua, satisfeitas por se sentirem representadas...
Sim, aconteceu algumas vezes. Ao princípio fiquei surpreendida, confesso. E respondia quase com maus modos como "O quê? Mas a senhora vê esse programa que acaba tão tarde?" O que é prova de como é forte e insidiosa a ideologia dominante ao ponto de eu achar esquisito haver mulheres a ver Os Donos da Bola, um absurdo que não demorei a corrigir, felizmente…
A questão da representação é importante?
Claro que é. Clamam por isso as minorias oprimidas e as maiorias opressoras.
A maior presença de mulheres jornalistas nas publicações e secções de desporto veio mudar o quê no jornalismo desportivo nacional?
Não veio mudar nada. Refiro-me à qualidade do produto, obviamente. Se há mulheres nas redações desportivas é porque são competentes no que fazem – o meu pai diria que são 10 vezes melhor do que os homens – e não por serem mulheres. E não percam tempo com aquilo do "olhar feminino" ou da "escrita feminina" e outros estereótipos fofinhos porque o que os leitores dos jornais querem é ser bem e livremente informados e não lhes deveria interessar o género da autoria da prosa.
Ainda é preciso mudar alguma coisa?
Tudo e as vezes que forem precisas. Acho, por exemplo, lamentável que os jornais desportivos, que têm nas suas redações uma quase paridade de género conquistada pela seleção das capacidades e não por uma política de quotas, ainda mantenham aquelas páginas finais com fotografias de raparigas descascadas. É, no mínimo, anacrónico. No máximo, é miserável.
Defende que não existem diferenças de género substanciais na forma de olhar e entender o futebol. E no jogo jogado?
No jogo jogado é outra história. No campo, que vivam as diferenças.
Créditos
Fotografia: Ricardo Lamego
Maquilhagem: Elodie Fiuza
Cabelos: Eric Ribeiro
Styling/ produção: Marina Sousa

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