Clara Ferreira Alves: “No dia em que matarem o Jornalismo matam, definitivamente, a Democracia”
Escritora, jornalista, editora, crítica literária. Apesar de não se identificar com a palavra comunicar (como confessa nesta entrevista), Clara Ferreira Alves tem o dom da palavra, seja ela escrita ou falada. Mulher de afirmações fortes e ideias convictas, Clara é uma das “Damas de Ferro” da televisão nacional.

Nascida em Lisboa, em 1956, Clara Ferreira Alves tornou-se uma das primeiras mulheres a exercer o Novo Jornalismo na pós-Revolução dos Cravos, em Abril de 1974, integrando o Expresso depois de abandonar um estágio de advocacia. Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, desistiu da ambição daquela profissão trocando-a pela liberdade da escrita. Foi editora e redatora principal daquele semanário, onde continua a assinar a coluna Pluma Caprichosa e a publicar textos com regularidade. É um dos nomes femininos mais referenciados na grande reportagem, em Portugal, e fez jornalismo de guerra no Médio Oriente. Foi diretora da Casa Fernando Pessoa e da revista literária Tabacaria. Desde 2004 participa no programa de comentário político Eixo do Mal, na SIC Notícias, e é autora de dois documentários sobre dois escritores portugueses, José Saramago e José Cardoso Pires. Publicou, em 2015, o romance Pai Nosso e está a preparar o próximo, enquanto trabalha como freelancer. Livre para escrever, como sempre assim quis que fosse.
Ninguém nasce a saber comunicar, mas há comunicadores natos. Em que momento percebeu que não era pela advocacia que passaria o seu percurso profissional, mas sim pela comunicação?

Não me considero nada uma comunicadora. O que eu faço, basicamente, é escrever. Comunicar é um verbo que eu abomino, para dizer a verdade. O que eu gosto é de ler e de escrever e vim parar ao Jornalismo vinda de um estágio de advocacia que odiei porque queria escrever e ter a liberdade para fazer o que entendesse. Nunca tive nenhuma pretensão de comunicar.
Que portas lhe abriu o jornalismo?
Era uma profissão que permitia conhecer pessoas, viajar, escrever e ser livre. E não ter mais obrigações perante mim mesma e o texto. Foi a curiosidade que me empurrou para o Jornalismo e depois tive a sorte de ir parar ao Expresso. Para dizer a verdade, eu sou uma pessoa tímida. Eu nem sou muito boa a comunicar e a Televisão, para mim, é "um treino" que eu faço há muitos anos.

Como recorda os tempos no Expresso?
Nos anos 80, na altura em que o Expresso sofreu várias revoluções editoriais, criou-se a revista [Revista E]… Foi muito divertido e foram uns anos muito bons. Hoje [ser-se jornalista] é uma profissão que se está a tornar irrelevante, mas que é completamente "pindérica", o que é pena. Naquela altura era uma profissão ainda romântica, com uma relevância social enorme e podíamos fazer coisas que, hoje, não são possíveis fazer por razões financeiras. Foi um privilégio poder viver esses anos a seguir à Revolução quando havia vários acontecimentos no mesmo dia, assistir à progressão do país e do Jornalismo, em Portugal.
Que mudanças foram essas, no Jornalismo?

Criou-se um modelo muito mais moderno, mas já não era o modelo tradicional do século XX. Era um jornalismo de influência mais americana. O Expresso foi o local ideal para poder praticar todas essas heterodoxias porque tínhamos imensa liberdade. Era um conjunto de pessoas extraordinárias, profundamente individualistas, e conseguimos construir uma equipa de luxo. Estava toda a gente lá: o Eduardo Prado Coelho, o António Mega Ferreira, o Miguel Esteves Cardoso, o Augusto Seabra, o Vicente Jorge Silva… E eu estava do lado das Artes e depois comecei a fazer jornalismo de guerra.
Esteve no Médio Oriente como repórter de guerra. Como é que essa experiência a moldou como jornalista?
A visão da guerra muda as pessoas. E a proximidade daquele sofrimento e a impossibilidade de estancar aquele sofrimento. Para quem vem de falar de "empreendimentos artísticos", uma situação de guerra é outra coisa. A reportagem, quando é bem feita, é o grande género, para mim, e pode ser superior à ficção. Baseando-se em factos, acaba por criar personagens que são devolvidas ao leitor com uma realidade muito próxima da ficção. Mas são personagens reais e temos de estar colados à verdade. Não significa imparcialidade. Tem de se ter uma certa naturalidade, mas a neutralidade não existe em jornalismo.

Emocionalmente, quão transformativa é a visão da guerra?
Essa experiência modifica-nos emocionalmente, modifica a nossa inteligência para a perceção dos acontecimentos à nossa volta e, sobretudo, dá uma experiência que é a antítese da emoção estética. Embora a guerra possa servir para a Arte, como nos desenhos do Goya, na verdade a guerra é crua e conduz-nos, em última análise, àquilo que tentamos evitar nas sociedades contemporâneas que é a presença constante da morte e da extinção. E a irrelevância da vida e a linha fina que separa a vida da morte. Ainda hoje me surpreende.
Qual foi ou é o projeto mais desafiante a nível profissional que já agarrou?

Eu gostei muito de escrever o romance Pai Nosso. Demorou-me muitos anos. Nunca o vi em termos profissionais. É mesmo uma vocação, no meu caso. Escrever é o que eu sei fazer. Eu não escrevi o livro como ambição de carreira e agora estou a escrever outro. Não sei quanto tempo vou demorar porque desfruto de uma imensa liberdade. Escrevo à minha medida e à minha maneira. É como estar vivo.
O que esperava do programa Eixo do Mal, em 2004, quando o desafio foi abraçado?
O programa foi evoluindo, pretendia-se que fosse um programa iconoclasta, em termos de comentário político, e isso foi completamente conseguido. Fomos e somos o primeiro programa em que não levámos a política a sério, levando-a a sério, ao mesmo tempo. E, portanto, havia uma maneira de falar na política que não era habitual na televisão portuguesa que era muito rígida e formal.

E hoje?
Hoje fazemos comentário muito sério, mas ainda temos essa dose de informalidade e, pelos vistos, a receita funcionou porque não só foi copiada, como o programa tem funcionado ao longo dos anos. Mas não é um programa cómico ou de má-língua porque o comentário ali produzido, em termos políticos, é seríssimo. E continua a ser original em muitos aspetos.
Na forma de comunicar seja no papel, na televisão ou na rádio, o que é que mais mudou nos últimos 30 anos?

Mudou tudo.
E o que de fundamental se perdeu?
Perdeu-se liberdade, capacidade financeira e qualidade, em muitos sectores. Para alguns jornalistas ainda não se perdeu o ideal. Alguns ainda estão no princípio antes de se tornarem cínicos e é uma profissão que se tem de ter cuidado para não acontecer, especialmente quando se faz jornalismo de guerra. O padrão de jornalismo dos grandes jornais, do The Guardian ou do The New York Times, conseguiu manter qualidade, mas com grande esforço e sacrifício financeiro. É difícil manter um jornal sempre a perder dinheiro.

E no futuro o que vai acontecer?
Não faço ideia… Houve duas coisas [que mudaram muito], a tecnologia, ou seja, a diminuição da relevância do papel como suporte; e o facto de as redes sociais nos terem tirado a publicidade: o Facebook, o YouTube e todo esse mundo Silicon Valley. Vejo a sobrevivência do jornalismo ameaçada. Mas é uma pena porque no dia em que matarem o Jornalismo matam, definitivamente, a Democracia.
As mulheres têm pouca voz nos media nacionais ou internacionais. Não há mulheres à frente de jornais, de rádios ou de televisões. Surgem quase sempre num papel secundário e redutor. O que se poderá fazer para mudar esta realidade?

Portugal, em particular, é um país muito marialva. Há muitas mulheres nas redações, mas não há mulheres em lugares de chefia. Nem [em lugares] de editoras, quanto mais de chefia! E se há é por breve tempo… Rapidamente são substituídas por um homem. Mas isso tem a ver com a cultura machista portuguesa que continua por aí. E com o facto de, por vezes, as mulheres serem as primeiras inimigas das mulheres dentro do local de trabalho, de se atacarem mutuamente e de existir falta de solidariedade.
Aconteceu-lhe? E o que é preciso mudar?
Eu tive problemas a trabalhar com mulheres e nunca tive problemas a trabalhar com homens. Egos, vaidade, competitividade… Enquanto um homem critica uma mulher e ela não fica ofendida, quando uma mulher critica outra mulher é uma ofensa brutal. As mulheres têm de crescer um bocado mais, enquanto sentirem que isto é uma ofensa e não quiserem ser avaliadas em termos profissionais apenas. Se acharem que se for uma mulher a criticar, isso não tem a mesma validade, vão sempre ser subalternas em relação aos homens.


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