Fátima Cardoso: "Nenhum oncologista pode ser frio e distante"
Uma das poucas mulheres à frente de um serviço de saúde, em Portugal, Fátima Cardoso tem sonhos de voo alto. Mas, primeiro, tem os pés bem assentes na Terra. Recordamos a entrevista publicada na Máxima de outubro 2018 neste Dia Mundial da Luta contra o Cancro.

Quando entra pelo estúdio fotográfico a fim de realizar a fotografia que publicamos neste artigo, Fátima Cardoso esboça um sorriso ao ver um rosto conhecido na capa de uma das revistas pousadas numa mesa. É Kylie Minogue quem posa para a Vogue espanhola. Diz-nos com serenidade: "Ajudei a traçar o plano clínico dela." Em 2005, a cantora australiana foi diagnosticada com cancro da mama e curou-se. Como ela, milhares de mulheres sofrem com esta doença, à qual Fátima Cardoso dedica toda a sua vida profissional. Nascida em África, chegou a Portugal com oito anos, estudou na Amadora e foi interna de Oncologia no IPO do Porto. Hoje, lidera o Programa de Investigação do Cancro da Mama da Fundação Champalimaud, em Lisboa. Há a acepção da palavra médica e depois há a de Fátima Cardoso que lhe junta as capacidades simultâneas de comunicar, tratar, investigar e ensinar. Sim, tudo isso numa só vida. E para muitas vidas.
Como recorda o início do seu percurso como oncologista?
Desde pequenina que eu sempre quis ser médica. Era a minha brincadeira preferida. Depois, quando percebi que havia vários tipos de médicos, eu quis ser pediatra e fui estudar para a Faculdade de Medicina. Durante o curso descobri a biologia do cancro, algo que me apaixonou e que me cativou ao nível da biologia, de perceber como o cancro acontece. Na altura de escolher a especialidade, houve três pontos fortes: um, foi eu gostar da parte teórica; outro, foi o facto de [a Oncologia] se ter tornado uma especialidade individual (antes estava dentro da Medicina Interna); e ainda um outro foi o facto de uma das minhas melhores amigas ter tido cancro da mama. Tudo isso junto acabou por me dizer que era o que eu gostaria de fazer: dedicar-me à Oncologia e, desde muito cedo, dedicar-me ao cancro da mama.

Ambicionava ser investigadora ou não passava pelos seus planos?
Eu quis sempre, desde a faculdade. Na minha perspectiva, eu não consigo perceber [o facto de] exercer Medicina sem fazer Investigação, ao mesmo tempo, em particular na área da Oncologia. Há tanto que não conhecemos… E a investigação na área da Oncologia tem um benefício para os doentes e para os médicos. Os primeiros porque, obviamente, temos de procurar algo melhor que permita melhores taxas de cura ou tratar com menos efeitos secundários, ou seja, melhorar a quantidade e a qualidade de vida dos doentes. E, para nós, permite-nos um equilíbrio, porque a Oncologia é uma especialidade difícil, na qual temos de dar más notícias muito frequentemente. Lidamos com a morte todos os dias e, como diz a minha enfermeira-chefe, por vezes é "uma sucessão de adeus". E isso é muito difícil.
Como se vive com isso todos os dias?
Sempre procurei ter um equilíbrio entre não me envolver demais e, ao mesmo tempo, não ficar fria e distante porque nenhum oncologista pode ser frio e distante. Ao mesmo tempo, acabamos por nos envolver e dedicarmo-nos emocionalmente aos doentes e, em particular, como eu trato [muitos casos] de cancro avançado, um tipo de cancro metastático incurável, acaba por ser muito difícil emocionalmente. A investigação permite esse escape ao procurar soluções e de ver que hoje é assim, mas há esperança.

Continua a não existir uma fórmula para comunicar às famílias esta doença. Qual é o seu pensamento de força sempre que está prestes a fazê-lo?
A comunicação na Medicina é muito importante e na Oncologia, então, é fundamental. Até há bem pouco tempo não havia formação para isso… Nenhum médico era ensinado a comunicar. Há pessoas que têm condições para comunicar melhor que outras, é verdade. Mas a forma de comunicar aprende-se e é por isso que temos lutado, na Sociedade Europeia de Oncologia, para que a comunicação seja incluída na formação dos médicos, em geral. É muito diferente ouvir uma notícia má de uma forma humana, mas sem esconder a verdade, do que ouvi-la de uma forma fria sem dar uma esperança. Ou não ouvir ou não saber até quase ao fim da vida que se tem uma doença que é incurável. Esses extremos são maus. Aprender a comunicar é crucial. Não fica mais fácil, mas aprendemos, ganhamos experiência e também uma certa defesa a comunicar.
O que aprendeu, ao longo destes anos, ao fazê-lo?
Quando alguém tem uma doença como o cancro, que obriga a pessoa a pensar na mortalidade, cerca de 90% das pessoas ficam melhores pessoas, aprendem a pôr as prioridades na sua vida de forma correcta, a valorizar mais a família e os pequenos momentos. Os outros 10% ficam um pouco piores.

Se há 30 anos lhe dissessem que fundaria a primeira Unidade de Cancro de Mama certificada em Portugal (em 2011), qual seria a sua reacção? Era algo por que ansiava na sua carreira profissional?
Fomos os primeiros e ficámos muito felizes e orgulhosos. Mas o meu objectivo é que todos os doentes, em Portugal, possam ser tratados em Unidades certificadas e, para isso, é preciso que existam várias [Unidades]. Uma só não pode tratar os doentes todos. Quantas mais houver, mais feliz eu fico porque significa que todos os doentes têm acesso a cuidados de alta qualidade.
O Estado e o Serviço Nacional de Saúde estão no caminho certo, neste sentido? Ou seja, há um esforço pela investigação na Saúde ou há, ainda, muito por fazer?
Em Portugal, por vezes, não nos damos conta dos benefícios e das coisas boas que temos. O Serviço Nacional de Saúde é uma delas. Pelo facto de eu ter vivido muitos anos fora, a minha atividade internacional permitiu-me conhecer muitas realidades (…) de como se trata o cancro da mama, pelo mundo fora. O certo é que temos um dos melhores serviços de saúde do mundo. Não é perfeito, mas isso nem sequer existe. O que falta, em Portugal, é deixar alguns tabus de fora e aceitar que uma maior e mais saudável colaboração entre o [setor] público e o [setor] privado só ajudaria todos. Porque quem pode pagar um seguro adicional retira peso ao SNS, mas isso não quer dizer que deixe de precisar dele. Existe, ainda, uma luta entre [os setores] público e privado que prejudica os doentes. Deveria haver uma organização e uma interajuda saudáveis. O que acontece é que, em alguns hospitais públicos, se alguém for pedir uma segunda opinião ao privado é logo ameaçado que não é recebido de volta e isso é errado. Por outro lado, em alguns hospitais privados não se é honesto desde o início dos tratamentos em relação aos custos dos mesmos.

Quais são os seus sonhos como investigadora?
Eu sou muito realista. Se falarmos do aparecimento de células malignas, em geral, eu não acredito que se possa evitar porque faz parte [de fatores] como o envelhecimento, as agressões poluentes do ambiente, o stress, a alimentação, o nosso estilo de vida… O que eu acho é que é possível encontrar uma forma de controlar a doença para que possamos viver com ela durante muitas décadas. A sobrevida média do cancro avançado é de três anos e está longe de ser uma doença crónica. Esse sonho, eu posso ter: que um dia os doentes com cancro da mama avançado possam viver décadas com qualidade de vida, com tratamentos inovadores e sem tanta toxicidade.
Qual é o seu melhor conselho para os jovens oncologistas?
O que eu digo aos meus alunos é que, neste momento, com o maior entendimento da Biologia, o desenvolvimento de novos medicamentos, a ligação entre a investigação e a prática clínica, a Oncologia é uma das especialidades mais entusiasmantes que existem. No entanto, esta especialidade exige uma dedicação total. É preciso gostar de cuidar dos doentes e aceitar que, muitas vezes, a nossa única recompensa é um "Obrigado" dos doentes. Não trocaria esta especialidade por nenhuma outra.

No que respeita à Saúde, há ainda um desequilíbrio no reconhecimento do prestígio das mulheres na investigação?
Nestes últimos anos, a Medicina tem-se tornado uma profissão cada vez mais feminina, no sentido em que nas faculdades de Medicina há cada vez mais mulheres. Mas, depois, à medida que se vai subindo [na Medicina e na investigação], cada vez se nota mais a diferença de género. Nas direções de serviços há pouquíssimas mulheres. Na Sociedade Europeia de Oncologia, em 43 anos houve uma mulher presidente e só há bem pouco tempo acabou de ser eleita uma segunda mulher. Está tudo a mudar, mas não tão rapidamente como quereríamos. O que me continua a entristecer é que para as mesmas qualidades, o homem continua a ser o preferido. Seja por que razão for. Além disso, globalmente, as mulheres ganham menos que os homens, o que é injusto. Se vivêssemos numa sociedade em que o mérito fosse o que mais conta, seria tudo melhor.
Qual o melhor conselho que daria a uma mulher?
Ajudarmos os outros, sempre, seja a pessoa nossa familiar, seja um amigo ou um doente. Mas também lembrarmo-nos de nós próprias. Tirarmos momentos para nós para fazermos o que gostamos e cuidarmos da nossa saúde.

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