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Beatriz Batarda: “Rir é a mesma coisa que chorar, são ambas uma descarga emocional”

Nascida no fervilhar da Revolução dos Cravos, a 1 de abril de 1974, Beatriz Batarda respirou o primeiro fôlego da liberdade, mas não esquece a geração de mulheres que não a tiveram. Uma das mais aclamadas atrizes portuguesas da sua geração e da nossa, Batarda tem um discurso claro, uma voz determinada e uns olhos imensos. Escutámo-la, com atenção, num dia de sol ameno, em Lisboa.

Foto: Pedro Ferreira
18 de outubro de 2018 às 07:00 Rita Silva Avelar

Não queria ser atriz. Pelo menos, era o que dizia aos jornalistas quando lho perguntavam, no princípio dos seus 20 anos de idade. Estudou na escola de representação Guildhall School of Music & Drama, em Londres, uma prestação que lhe valeu a distinção como melhor aluna do curso e a prova íntima de que ser atriz era uma vocação e que não iria ser trapezista. Certo é que quando Beatriz Batarda se meteu num avião com destino a Londres para estudar Teatro, já havia dado cartas no Cinema (em 1986, estreou-se no filme de João Botelho, Tempos Difíceis) e no Teatro (em 1994, estreou-se numa encenação de Luis Miguel Cintra da peça Um Conto de Inverno, de William Shakespeare). Conhecida pelos seus poderosos papéis dramáticos na representação, mãe de três meninas e encenadora, Beatriz celebrou uma década do projeto de teatro que fundou com o cineasta Marco Martins, Arena Ensemble, e que é um coletivo de artistas onde sobressaem nomes como Nuno Lopes, Gonçalo Waddington ou Bruno Nogueira. É professora de interpretação na escola de atores ACT (de Patrícia Vasconcelos) e na Escola Profissional de Teatro de Cascais. Em 1998, recebeu o prémio European Shooting Stars da Berlinale (distinção de jovens atores promissores na Europa, que já premiou atores como Daniel Craig, Alicia Vikander ou Carey Mulligan) e destacou-se em papéis como o de Penélope, no filme Ritmo Acelerado, de Michael Dowse (2004), e foi convidada de honra para o elenco do filme Comboio Noturno Para Lisboa, de Bille August (2013), onde contracenou com Jeremy Irons e Mélanie Laurent. No Teatro, é impossível ficar indiferente ao intenso monólogo que protagonizou em De Homem para Homem, de Manfred Karge (2008), onde fez de uma mulher que assume a identidade do marido morto. Em 2011, por exemplo, encenou Sangue Jovem, com Lídia Franco, Elisa Lisboa e Teresa Faria. Atrás do palco, em cima do palco ou entre os holofotes do cinema, certo é que o papel principal não é, regra geral, para todos. Para Beatriz Batarda é-o, certamente.

Com que idade se recorda de começar a representar? Sempre quis fazê-lo?

Eu não sei qual é a resposta justa a essa pergunta porque comecei muito cedo. Durante muito tempo, no meu discurso em entrevistas, eu dizia que tinha sido um acaso. Mas essa frase do "Eu não quis ser atriz" fazia sentido quando eu tinha 20 anos… Agora que tenho 43 é diferente. Sintetizando: não era um sonho de criança, mas aconteceu-me quando eu ainda era criança. Eu tinha 12 anos quando fiz o primeiro filme. A evolução, a partir daí, foi natural. Não sinto que desde essa idade fosse evidente que eu era feita para ser atriz… Foi orgânico e natural. Só acho que não nasceu comigo.

Nunca pensou noutras coisas?

Sim, claro… Aos seis anos queria ser trapezista, com 12 [anos] queria ser veterinária e, depois, quis ser designer… Só aos 23 anos é que decidi ir estudar teatro.

E foi porque fez formação na Guildhall School of Music & Drama, em Londres. Como foi ir estudar para fora de Portugal?

Foi um tempo muito feliz e exigente, e de uma entrega que eu nunca mais vivi. Eu senti que ia ser um momento de viragem da minha identidade e da maneira como eu iria abraçar o curso. Se o fizesse levianamente, não iria ter o impacto que eu sabia que poderia ter na minha maneira de olhar para o Teatro. Havia dois fatores fundamentais para essa entrega: a primeira, o facto de o curso ser em Inglês, que não era a minha língua-mãe, e eu queria muito dominar o Inglês, dominar o som e poder brincar com os sotaques. Fascina-me como tudo nasce na respiração e no som que produzimos quando comunicamos. E o corpo responde.

E o outro fator foi a independência?

Sim. Foi a saída de casa dos [meus] pais, de Lisboa e de Portugal, e de assumir esse exercício de autonomia sobre a minha vida. Foi a primeira vez que eu senti que estava verdadeiramente por minha conta e isso foi determinante para a construção da minha personalidade.

Quem foram e quem são as suas referências na representação?

Há referências e novos artistas que surgiram na minha idade adulta e que me fascinam, nomeadamente na Dança, mas há sempre as de base que me marcaram e que estão sempre evidentes. Como o Luis Miguel Cintra e a Cristina Reis, a dupla que mais marcou o meu percurso, seja a encenar, a lecionar ou a representar são dois interlocutores que eu convoco, silenciosamente, para determinar caminhos.

Qual foi a personagem mais desafiante e que mais prazer lhe deu?

A Ana, do Quaresma [2003, de José Álvaro Morais], a Carla, do Noite Escura [2004, de João Canijo], no Cinema. E no Teatro, Ella, de uma peça de Manfred Karge, De Homem para Homem, e mais recentemente a Solange, da peça As Criadas, de Jean Genet. Essas foram as quatro que mais me marcaram (e não tenho saudades de nenhuma!).

E a nova personagem, Sara Moreno, da minissérie Sara que está, agora, a estrear na RTP?

Eu ainda não [a] digeri bem e não percebi ainda o impacto que teve em mim. Essa [personagem] vai-me deixar saudades porque me divertiu imenso trabalhá-la. A Sara é como se fosse uma espécie de caricatura da minha pessoa e isso é algo muito divertido de trabalhar porque toca naquilo que é mais ridículo ou patético da nossa personalidade, naquilo que tentamos tantas vezes esconder. Trabalhei o oposto, desconstruindo qualquer idealização. Foi um projeto escrito para mim pelo Bruno Nogueira e pelo Marco Martins, e ambos souberam tirar partido das minhas características pessoais, quando às vezes tenho alguma falta de jeito ou timidez.

Interpretar personagens num registo mais dramático, no Teatro, sempre foi um desejo ou surgiu naturalmente?

Não nos podemos esquecer que rir é a mesma coisa que chorar, pois são ambas uma descarga emocional. Nos funerais é frequente ver pessoas lá fora, à porta, a contar anedotas e a rir, e isso não quer dizer que as pessoas estejam desligadas ou insensíveis ao acontecimento… Estão só a canalizar a emoção de outra maneira. O ensino de teatro que eu tive é normalmente canalizado para o drama e para a tragédia porque desenvolve-se um trabalho de conhecimento do leque de cores emocionais mais profundo. Para que o ensino seja mais incisivo, trabalha-se mais a tragédia e o drama.

E o outro lado dessa descarga, a comédia, nunca "tropeçou" nela?

Raramente, no ensino do teatro, se especializam os alunos em comédia, até porque há escolas de teatro, de dança, de musical e de circo, mas não de comédia. É raro. Uma das razões, acho eu, é que para se ser um bom cómico tem de se ser inato, tem de haver uma qualidade inata que não se ensina. E quando se tem isso e se trabalha a tragédia, consegue-se dar uma tridimensionalidade à comédia mais interessante. A comédia exige uma qualidade que nem toda a gente tem e que é o jogo do tempo… E isso não se ensina. Se calhar, por eu não ter tanto isso, fui-me refugiando naquilo em que estava mais confortável e talvez pela minha fisionomia também fui mais convidada para fazer papéis trágicos do que cómicos. Eu tenho um rosto triste e isto escrito não vai ter graça alguma, não é? Nós rimo-nos das coisas que dizemos, mas depois, quando se lê, não há som...

Falando no registo cinematográfico… O que é que o Cinema tem de mais cativante?

É a intimidade. O Cinema dá-nos a sua qualidade voyeurística e faz um efeito ainda mais lupa que o Teatro [dando-nos uma perceção maior] das sensações da pele ou da respiração… E, portanto, é uma catarse mais íntima, mais delicada. A catarse do Teatro é coletiva, vive isto de quem está na sala, da combinação daquele dia. Às vezes, as coisas podem correr muito bem em palco, mas a dinâmica do grupo que está na plateia pode ter uma influência que não torna o acontecimento mágico. Não permite essa catarse coletiva e no Cinema há um lado mais pessoal.

No que respeita à representação, há ainda um desequilíbrio no reconhecimento do prestígio das mulheres nesta área?

Em Portugal, é complexo… Não é justo dizer taxativamente que é um país machista, eu não penso que seja, mas há hábitos e tradições de algumas qualidades masculinas na chefia que dificultam o reconhecimento das qualidades femininas. Espera-se de um líder certas qualidades que não são, necessariamente, as mais fortes das mulheres. Como o exercício de força, de virilidade, de masculinidade… E as qualidades na liderança feminina são os laços afetivos que uma líder feminina consegue construir com a sua equipa. Quando as mulheres conseguem capitalizar essas qualidades conseguem tirar o melhor dos seus colaboradores, sem brutalidade, mas sim com um enorme diálogo. Nós ainda estamos neste "limbo" e por isso é que, provavelmente, ainda não se conseguiu a paridade em lugares de liderança.

Estamos mais próximas de perceber isso?

É muito difícil: o 25 de Abril aconteceu há 44 anos, e não há muitos anos as mulheres não votavam ou uma mulher que ficasse viúva não podia sair à rua sozinha e tinha de vestir de preto até ao final da vida, tivesse ela 20, 30 ou 50 anos. É tudo muito recente, são poucas gerações ainda à procura dessa voz, desse discurso.

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