Celeste Dalla Porta, atriz e protagonista do filme Parthenope: “Ser artista não deve ser um privilégio”
A nova epopeia de Paolo Sorrentino é transportada pelo talento desta jovem atriz italiana, a sua personagem procura liberdade num percurso que atravessa toda uma vida. Desde o último Festival de Cannes que o nome de Celeste circula pelo mundo associado à palavra “revelação”. Falámos com ela num hotel em Lisboa.

O que sentem as atrizes depois da comoção provocada por um filme onde existem em cada plano? Como vivem, no dia a dia, as projeções que o público faz em cada uma das suas aparições? Sobretudo quando a personagem à qual dão vida fascina pela sua beleza. No mais recente filme de Sorrentino, quem se cruza com o olhar de Parthenope sente um embate no coração. Esta personagem vive do corpo de Celeste Dalla Porta. Pensamos nas atrizes da "Era Dourada" do cinema italiano, há o mesmo magnetismo na sua presença.


Celeste está sentada num pequeno sofá, numa sala do Hotel Plaza em Lisboa, olha para o infinito. Há uma equipa de assessores de imprensa à sua volta, um deles escreve num computador sem parar, o barulho das teclas pontua os silêncios durante a banalidade das nossas apresentações. O olhar da atriz continua longe, como se estivesse fechada num casulo, é uma proteção. Há uma intérprete italiana por perto, podemos falar em inglês, mas Celeste vai responder-nos em italiano. O sentimento de que não vamos conseguir captar a sua atenção intensifica-se. E, aos poucos, o seu corpo começa a interessar-se pelo que se passa à sua volta, os gestos são teatrais, pensamos nas personagens das peças de Goldoni e na commedia dell’arte. Os seus movimentos não são contidos como os da Parthenope sedutora. A atriz à nossa frente não está maquilhada, calça ténis, veste-se de preto. Imaginamo-la a correr num palco, a ritmar gargalhadas também. No último Festival de Cannes, o filme de Sorrentino levou-a à Competição Oficial, o cineasta é um habitué daquele palco, o seu filme Il Divo ganhou ali, em 2008, o Prix du Jury. Em Parthenope, a cidade de Nápoles volta a estar no centro da ação.
Seguimos a vida desta personagem desde o seu nascimento até aos dias de hoje. Como procura o amor verdadeiro, o indizível ou o não correspondido, como lida com a perda ou tenta alcançar a liberdade numa sociedade patriarcal. O que sentem as atrizes afinal? Em Lisboa, a atriz responde-nos.


O filme Parthenope é uma epopeia sobre a liberdade. Sentes ter aprendido algo com a tua personagem relativamente ao assunto?
Aprendi muitas coisas, e é certo que há nela uma procura sua pela liberdade... Não sabemos se a encontra ou não. A liberdade é muito subjetiva. A sua liberdade é a de fazer as coisas que quer, e não tem medo de enfrentar as experiências que poderá implicar essa sua vontade. Dito isto, e citando o Paolo Sorrentino, "muitas vezes, a liberdade e a solidão andam de mãos dadas." Se quiseres ser livre num mundo de pessoas homogéneas, acabas por ir contra a corrente. A solidão acaba por vir ter contigo. O preço da liberdade é estar sozinho. A Parthenope é uma mulher que acaba por ter um verdadeiro encontro com a solidão. (pausa) Não devemos nunca ter medo de estar sozinhos. Foi isso que aprendi com ela.


Estás em digressão, o filme está a ser visto pelo mundo fora, o que te parece dizer esta ficção sobre a condição das mulheres em Itália atualmente?
Creio que o filme não pretende explicar como as mulheres devem ou não viver. Ou como os homens são ou não são. É um filme que conta verdadeiramente a história de um ser humano. É a narração de uma vida. Eu diria que não estive muito ligada à parte política que esta mulher transporta consigo. Quantas mulheres são independentes? Quantas mulheres foram ou não foram reconhecidas? É um filme sobre uma mulher que tem também um privilégio económico, isso permite-a ser independente, poder estudar, etc. Isso é algo que sabemos não estar à mão de todas. Mas é realmente através destas possibilidades que ela faz as suas escolhas de vida. E as suas escolhas são certamente emancipadas. Respeito isso. Talvez o tema mais atual do filme seja o da beleza, o facto de ela ser bonita e não ter medo. Ela não tem medo de ser julgada como bela e inteligente, essa dualidade é interessante. Sabemos muitas vezes que a inteligência não anda de mãos dadas com a beleza.


No início do filme parece que todas as pessoas que conhecem a Parthenope e o irmão têm vontade de os consumir sexualmente, no entanto, eles parecem só querer falar com quem vão conhecendo em inúmeras festas, criando alguma distância nas relações. Nessa atitude, vi uma metáfora, como uma tentativa de evocar uma sociedade muito conservadora...
Não sei. (pausa)
Essa vontade carnal de os quererem consumir (porque são bonitos e jovens) pareceu-me uma convenção social. A liberdade da Parthenope leva-a a não querer consumar o desejo, mas simplesmente conversar com as pessoas... a tua personagem segue as suas próprias regras.

Sim, é algo complexo. As relações interpessoais ali parecem ter sempre um fim sexual qualquer. Por momentos, parece quase haver uma chantagem sexual ou podem sentir-se culpados se não forem até ao fim, mesmo quando dizem "não". Não querer entrar num jogo sexual pode acabar por te criar uma série de problemas e fazer-te sentir culpado. É um pouco o que acontece no filme, a sexualidade deles é muito sensível. E em Itália as relações ainda são muito assim... (risos) as relações de amizade entre homens e mulheres ainda são muito complicadas. E todas as pessoas que conhecem a Parthenope têm expetativas... Todas menos o professor dela na faculdade. Para mim ele é uma figura central no filme porque é um homem que não olha para ela como um objeto sexual, mas sim como uma estudante, ou uma possível antropóloga e, portanto, uma mulher.
O professor, quando a conhece, pede-lhe para ela nunca o julgar. Ela diz-lhe a seguinte frase, "eu não sei nada, mas gosto de tudo". Tu, em Roma, quando eras jovem atriz e ainda estudavas teatro, de que gostavas?

De tudo (risos). Não, não é verdade. Nessa altura, em suma, fantasia-se com a possibilidade de ser protagonista de um filme e que possa ser um filme importante, ou que o realizador seja um realizador que respeitamos e que ADORAMOS. Foi o que me aconteceu, mas talvez não deva dizer isto em voz alta. Tenho medo de ser ridícula e tenho algumas superstições. Mas penso em todas as atrizes emergentes como eu, o que elas querem é poder existir nesta área. Existir neste pequeno meio cinematográfico. Há muitas pessoas que merecem ir atrás dos seus sonhos.

Ser artista é resistir?

Ser artista não deve ser um privilégio, porque os artistas têm direito de existir. Sinto-me uma privilegiada. Culturalmente não está a ser um momento fácil em Itália, existem inúmeras mudanças políticas, e tem havido inúmeros cortes na cultura [o Ministro da Cultura é um comentador / diretor de museu de extrema-direita]. Fazem com que isto se torne um hobbie quando o que fazemos deve ser visto como um verdadeiro trabalho. Se isto continuar assim, tudo pode acabar. Para que mundo vamos sem artistas? As pessoas têm de poder exercer a vocação com que nasceram.
No filme, há imensos momentos em que olhas diretamente para a câmara de filmar, a tua personagem parece olhar frontalmente para o espectador, e é arrepiante. Que intensidade metias nestes olhares?
O Paolo guiou-me na busca desse olhar da Parthenope. Há algo de particular, é um olhar que nunca quer desvendar os seus pensamentos. É um olhar que deve permanecer misterioso sem ser frio. E quando ela olha para a câmara é também o momento em que a personagem percebe qualquer coisa. É um momento de cumplicidade, é um olhar que nos observa a todos nós e a ela também. Então é um pouco como um espelho, não é? É um momento importante com o seu "eu" interior.


Como lidas com as redes sociais? De certa forma parece-me que tentam quebrar uma quarta parede existente entre as personagens que as atrizes interpretam e o mundo real em que vivem?
Tenho de te dizer que este é o meu primeiro filme e, por isso, a minha primeira experiência. Para mim, todos os dias há algo de novo que compreendo de forma diferente, mas não tenho uma experiência suficientemente vasta. A personagem que interpretei foi bem construída. É uma personagem, deliberadamente idealizada, quase divina. Sempre me agarrei ao facto de que não devo confundir-me na realidade. Não devo ter medo de me apresentar como sou. No filme, os figurinos são todos da Saint Laurent (desenhados por Anthony Vaccarello), o meu cabelo ou o guião são impecáveis. No entanto, mantive-me sempre muito coerente com a pessoa que sou e tentei sempre proteger-me. Dito isto, é normal que algumas pessoas estejam à espera de encontrar a Parthenope no Instagram, e essas pessoas sei que vou desiludir.
Qual é a tua relação com a moda?
A moda é um pouco como um espelho de como as novas gerações são e como o mundo está a mudar, não é? Assim, através da moda, podemos observar inúmeras possibilidades. Quem sabe se é a moda que decide o que está na moda, ou se somos nós que decidimos a moda. Isto intriga-me muito. Para mim os figurinos da Saint Laurent são extremamente elegantes e na verdade 50% da minha personagem foi apoiada pelas escolhas do Anthony Vaccarello. A Parthenope jovem tem uma energia particular. Veste roupas muito suaves, escorregadias, um tanto sensuais... À medida que se foi tornando adulta ficou séria e profissional, e os vestidos acompanharam essa fase. Não podia ter pedido melhor colaboração.

Para acabar, o que te inspira atualmente? Pode ser música ou literatura? O que te embala durante estas viagens promocionais que fazes agora sem parar? Quem é o teu crush?
(Pensa um instante). Neste momento estou a ouvir muito uma rapariga italiana chamada Emma Nolde, é uma artista muito boa, e é nova, digamos, no nosso imaginário italiano. Ando impressionada com ela porque tem uma forma de se expressar fisicamente que é muito livre. Ela dá-me arrepios. É preciso vê-la ao vivo... o meu crush é ela!
