“Tentámos mudar o lado da vergonha e do medo. Quisemos mostrar que hoje existe uma ideia de coletivo e de equipa no cinema.” Anamaria Vartolomei, atriz em Maria Schneider
É nas rodagens de “O Último Tango em Paris” que se foca o biopic sobre a atriz Maria Schneider, abusada durante uma cena por Marlon Brando. O filme teria um impacto negativo na sua carreira e vida pessoal, nunca mais seria a mesma pessoa. Conversa com a atriz Anamaria Vartolomei, sobre costumes e hábitos de uma indústria que tenta progredir, ainda longe de um consenso.

Os olhos de Anamaria Vartolomei são de um azul impressionante. Chegam-nos através de uma chamada Zoom. Encostada a uma parede branca, parece estar sentada num sofá em casa, com o telefone colado à cara. O seu olhar é hipnotizante e expressivo, enche o ecrã do nosso computador. Temos uns escassos minutos de conversa previstos, por isso juntamos várias perguntas numa só.
Como quebrar uma atriz? Podia ser também o título deste filme que conta uma parte da vida de Maria Schneider (1952-2011). Foca-se sobretudo no momento em que filmava a sua primeira longa-metragem como protagonista, O Último Tango em Paris, de Bernardo Bertolucci. No início dos anos 70, e ainda antes do filme estrear em sala, já corriam rumores sobre as cenas de sexo explícito entre a atriz e um Marlon Brando envelhecido, decadente, alcoólico. Muito se especulou sobre a cena em que o ator usa manteiga para lubrificar a atriz, antes de a forçar a ter sexo. Ninguém sabia realmente o que tinha acontecido naquele plateau de filmagens. A reputação e escândalo destruiu uma parte da vida de Maria, que nunca desistiu de encontrar papeis à sua medida. No final da sua vida já era tida em França como um ícone. Bertolucci confessou numa entrevista em 2013 que a atriz tinha sido apanhada desprevenida, ninguém lhe pedira o seu consentimento para filmar aquela cena. Maria Schneider já o tinha afirmado em 2007 mas, quando Bertolucci fez o seu mea culpa, Maria já tinha morrido ao lado da sua companheira.

Anamaria Vartolomei camuflou os seus grandes olhos azuis para o seu desempenho notável. Tínhamos descoberto a atriz aos 10 anos de idade, ao lado de Isabelle Huppert, no filme Eu Não Sou A Tua Princesa. Atualmente está também nos ecrãs no filme Mickey 17, de Bong Joon Ho. É uma estrela em ascensão, não vamos parar de a ver, temos isso como uma certeza absoluta.

Queria começar por te perguntar quando é que a realizadora Jessica Palud te falou sobre a ideia de dares vida à Maria Schneider no cinema? E que sabias tu dela? Foste buscar algo ao magnífico livro escrito pela prima dela, a jornalista Vanessa Schneider (My Cousin Maria Schneider), de onde, creio, o filme se inspirou muito?

Ouvi falar da Maria e do Último Tango em Paris quando tinha 19 anos. E o que ouvi, na altura, foi uma história que me parece ter sido bastante deturpada da realidade. Vi o filme do Bertolucci nesse momento também. Só descobri verdadeiramente a Maria Schneider através do argumento. E tentei procurar, antes do casting, ou da minha primeira audição, detalhes que me fossem úteis. Foi mesmo através do argumento e do livro da Vanessa que percebi quem ela era. Percebi qual era a sua luta, e o que ela queria defender.

E percebeste assim também qual era a sua dor? O livro da Vanessa Schneider é absolutamente maravilhoso, precisamente porque também retrata os momentos em que ela regressava a casa dos primos, e a família a olhava com tanta angústia para o sofrimento dela.

É muito complexo e muito rico. Está cheio de nuances, e é realmente um retrato de uma mulher que pode ser bastante universal, porque aquilo que ela passou, outras também passaram. Lembro-me, nas rodagens, do Matt Dillon me contar que começou aos 14 anos a trabalhar como ator. Eu comecei com 10 anos e meio. Mas eu fui muito protegida. Só que o Matt dizia-me que, o que lhe aconteceu a ela, podia ter acontecido com ele. A Maria dizia isso muito bem na altura, ela frisava: "Não aconselho nenhuma pessoa jovem a seguir esta profissão. É muito, muito perigosa." A sua vocação de atriz também a consumiu por dentro, destruiu-a, derrubou-a, mas ela conseguiu levantar-se, usar a sua voz, continuar com dignidade.
Sabemos que antes de O Último Tango em Paris ela faz alguma figuração, mas o filme seria a sua primeira experiência, e foi de imediato magoada.
É trágico isso. (pausa)

O filme Maria Schneider foca-se muito nesse momento da rodagem do filme. E, na altura, aquilo a que agora chamamos de consentimento parecia não ter o mesmo significado. Na famosa cena da manteiga, não se sabia se tinha havido ou não penetração, se tinha ou não havido uma violação em pleno set de rodagem. Mas, numa rodagem, uma violação pode acontecer a vários níveis, certo? Sobretudo quando não há consentimento. Podes falar-me disso? Li uma entrevista em que dizias ter sido muito emotivo o dia em que filmaram a cena. Havia um coordenador de intimidade, mas tu ficaste muito emocionada....
Sabes, acho curioso tu falares de consentimento a vários níveis, porque é verdade que a Maria obviamente não consentiu o que lhe aconteceu, mas, por outro lado, a equipa também não. Tenho a sensação de que a noção de consentimento nem sequer existia naquela época, e quando vês a equipa a assistir sem poder fazer nada, vês também o desespero nos olhos deles, sentes que sabem que aquilo não é normal, mas não podem agir. É uma forma de sofrimento. Todos naquele set sofreram, em diferentes níveis. E naquela altura, num set de cinema, salvo o realizador... Que era uma espécie de génio, maestro, com todos os poderes...
Nessa altura, ninguém tinha voz, ninguém podia estar ao mesmo nível, e por isso todos sofriam. O que tentámos fazer, e mostrar, foi mudar o lado da vergonha, mudar o lado do medo, e mostrar como hoje temos a sorte de ter uma ideia de colectivo, de equipa — e que algo assim já não poderia acontecer, porque as pessoas falariam, ou iam revoltar-se, trabalhariam em conjunto para isso. Já não existe essa hierarquia que separava a equipa do realizador. E é verdade que as coisas mudaram, mas era essencial, para mim passar por essa sequência — esse plano da Maria a olhar para a equipa imóvel, sem agir — para se perceber a hierarquia da época, e o quão perigosa ela era, o quão aterrorizante podia ser a indústria. E sim, isso causou um verdadeiro trauma à Maria. Estava a conversar com uma jornalista antes de falar contigo, e ela dizia não querer chamá-la de vítima. Ela só quer chamá-la de Maria, porque é verdade, ela não era uma vítima. Tentaram fazer dela uma vítima, mas ela conseguiu levantar-se e encontrar a
força necessária para elevar a sua voz e ser uma pioneira mesmo para nós hoje. Porque, infelizmente, o seu discurso ainda faz parte da atualidade, mas também nos permite ter uma base sólida para avançar.

Quando apresentaste o filme em Cannes, em 2024, dizia-se que o Festival estava sob alta-tensão. Havia muitos filmes a falar de assédio, havia uma certa sororidade, dizia-se que mais nomes iam ser acusados. A Judith Godrèche tinha feito todas as revelações do abuso que vivera na sua relação com Benoît Jacquot e contou uma violação ao trabalhar com Jacques Doillon.
Ao mesmo tempo, acho que muitas atrizes continuam a ouvir coisas que, por vezes, a Maria também poderá ter ouvido. Qual sensação foi essa de apresentar este filme num momento em que muitas atrizes estão a ser ouvidas no Senado francês para falar de abusos?
Foi muito poderoso. E o Festival de Cannes tinha planeado homenagear os 100 anos do Marlon Brando. Mas como escolheram o nosso filme para a secção Cannes Première, cancelaram essa homenagem. Achei muito simbólico — darem luz à Maria, à sua memória. E foi comovente, principalmente porque foi num momento muito oportuno, em que tudo parecia alinhar-se. O filme também era a continuação de um discurso de longa duração.
E sim, estava claramente relacionado com os testemunhos da Judith Godrèche, com o pós-Me Too, com o movimento balance ton porc. É verdade que há uma vontade de deixar isso para trás, que isto tudo já faça parte do passado. Mas tenho muito orgulho em participar em obras assim, que se tornam blocos, fundações sólidas para continuar uma luta que é longa, lenta — que gostávamos que fosse mais rápida, mas que é necessária. Fico feliz por ainda haver mulheres como a Judith, por exemplo, que conseguiram encontrar força para falar, para contar o que viveram. Agora há do outro lado uma escuta diferente. O que também feriu muito a Maria, na altura, foi a forma como reagiram às suas palavras. A insensibilidade das pessoas e do público feriu-a. Hoje em dia temos uma abordagem diferente, uma escuta diferente, e uma outra forma de lidar com o testemunhos de quem viveu este tipo de experiências. Sim, é tudo uma questão de criar um espaço seguro. E tenho a sensação de que o nosso filme também contribui para isso. Cannes foi muito forte, sim.

No teu primeiro filme com a Eva Ionesco já se falava de uma mãe que levava a filha por um caminho complicado. Este novo filme acaba por ter um certo eco desse início. E tu tens trabalhado com muitas realizadoras — a Eva, a Audrey Diwan , a Jessica Palud, a Sophie Lévy… Sentes alguma sororidade nesse percurso? Trabalhar com mulheres tem um sabor diferente?
Para mim foi sempre algo muito natural. Nunca fiz disso uma escolha estratégica. Acho que o olhar de uma pessoa não é determinado pelo que tem entre as pernas. Podes ser homem ou mulher. Se quiseres dizer algo sobre um tema que me toque, algo que eu queira defender... eu sigo-te, eu vou contigo. Mas sim, tive a sorte de atrair o olhar de várias realizadoras. E apercebo-me da sorte que tive ao trabalhar com mulheres brilhantes, talentosas, que me ensinaram imenso sobre cinema, sobre a indústria, sobre o lugar da atriz, sobre o olhar.
A Eva Ionesco, por exemplo, tem uma história de vida muito conturbada, e eu era muito sensível ao que ela tinha para dizer. Cada uma tem um percurso diferente. A Audrey era jornalista e argumentista (adaptou o livro da vencedora do Nobel de Literatura Annie Ernaux, em 2022), a Sophie vinha da publicidade, a Eva tem essa história trágica que a tornou uma lutadora, e a Jessica é uma mulher muito generosa, que respeita e ama as mulheres, e quer levá-las o mais longe possível. É aí que percebes que há pessoas boas no cinema. Quando as encontras, podes mudar o rumo das coisas. Espero que um dia deixemos de dizer "trabalhaste com muitas mulheres", que isso seja simplesmente o normal. É como os percentuais: quando dizemos que há 20%, 40% de mulheres no cinema, é porque ainda não se vê a olhos nus. Se ainda precisamos de provar com números, é porque o resultado ainda não chegou. Espero que um dia deixemos de fazer distinções, que a igualdade seja natural, e que não se coloque mais a questão.... Como se as mulheres ainda fossem uma minoria.

No livro da Vanessa Schneider, são analisados artigos da Paris Match nos anos 70 e dizem que a Isabelle Huppert era "a atriz responsável" e a Maria "a atriz rock star descontrolada". Duas atrizes da mesma geração, com imagens muito diferentes. Tu até contracenaste com a Huppert no teu primeiro filme. O que te dizem estes rótulos sobre o teu próprio percurso? E como é que tu o vês daqui para a frente?
Eu não sei… Sou uma pessoa cheia de dúvidas. Tenho 25 anos e, mesmo que tecnicamente tenha começado aos 10 anos, .... ou seja, tenho 15 anos de carreira, eu ainda me sinto muito jovem, uma iniciante. Sinto que tudo está a começar agora. Mas é verdade que fui reparando nalgumas ligações. Inclusive com o meu país de origem — a Roménia. A Maria tinha origens romenas, a Eva Ionesco… Lembro-me de falar disso com a Audrey na rodagem de O Acontecimento, ela também tinha origens romenas. Achei curioso que, de certa forma, a Roménia fosse uma espécie de ponto de partida que me ligava a essas pessoas. E achei isso muito bonito. Sou mais de olhar para o que ainda há por fazer, do que para aquilo que já foi feito. Em vez de pensar "já trabalhei com a Isabelle Huppert", penso "quero voltar a trabalhar com ela". É mais isso.
