Giulia Caminito: "Tornou-se uma obsessão social saber coisas [íntimas] sobre as pessoas, sobre os escritores"
A escritora italiana, autora do livro "A água do lago nunca é doce" esteve em Lisboa para apresentar o seu livro, que está neste momento em 22 países, a caminho dos 24. Conversa numa sala do Hotel Lisboa Plaza.

Vencedora dos Prémios Campiello e Strega-Off, A Água do Lago Nunca É Doce (Lua de Papel, Leya) foi apresentado no Instituto Italiano de Cultura de Lisboa, no dia em que conversámos com a autora, horas antes, no centro de Lisboa. Em 22 países, lançado em 2021, e terminado durante a pandemia, este romance cru e complexo é escrito com a mestria de alguém que viveu com intensidade para poder narrar desta maneira em particular o contexto de uma família pobre a viver junto ao Lago de Bracciano, na região do Lácio, no norte da província de Roma. A protagonista é Gaia, mas é com a força destemida de Antónia, sua mãe, que a história arranca. Um romance passado no início do milénio, sobre mulheres, sobre desigualdade social e os dilemas dos tempos que vivemos, entrelaçados com o poder que a tecnologia teve para quebrar para sempre os laços e as regras da amizade genuína, sem montras virtuais. E que ainda nos põe a refletir sobre lealdade, suicídio e estatuto social.
Comecemos por uma curiosidade e pelo fim. Escreveu uma nota final a dizer que este livro não é autobiográfico. Precisou de esclarecer que alguns episódios não foram da sua autoria. Há uma tendência para a procura desse tipo de ficção? É algo que a incomoda, de certa forma?

Sim, senti essa necessidade. Neste momento - não sei se em Portugal se passa a mesma coisa -, em Itália as editoras estão a insistir muito no formato de autobiografia e na autoficção e, por isso, decidi usar a primeira pessoa com a Gaia. Ela é a voz interior do romance. Só que, de alguma forma, queria também dizer que não sou a Gaia. E mesmo tendo eu posto a nota no fim, muitas pessoas perguntam-me várias coisas, perguntam -me se a Antónia é minha mãe. Se ela é ruiva. E isto é interessante porque, neste momento, nós, o público e os leitores, estamos muito fascinados pela primeira pessoa. O que me dizem é que se usas a primeira pessoa, é porque tu, como escritora, estás a falar de ti própria. No meu caso, eu gosto muito de romances, romances de ficção, mas é como se existisse eu própria e depois existisse o que estou a escrever.
Claro que há muito de mim no que estou a escrever, mas não porque esteja a tentar explicar a minha própria vida. E, por outro lado, este é um livro que está cheio de coisas sobre sítios onde vivi, como o Lago Bracciano, onde vivi durante uns 20 anos. A recepção deste livro foi complicada para as pessoas que vivem realmente no lago. Por isso, quero apenas dizer que este é um romance. Há muitas coisas que são, obviamente, reais, e outras que não são porque há uma parte fictícia.


Será que isto acontece porque as pessoas continuam a ter uma ideia misteriosa dos escritores? Como se fosses uma espécie de agente secreta? Fascinam-se pelas suas vidas pessoais?
Sim, acho que isso se deve ao facto de ser uma obsessão social saber coisas sobre as pessoas. Tal como acontece com as redes sociais, é fácil pensarmos que nos podemos relacionar com alguém e que se pode compreender uma pessoa através de todas as imagens que esta publica. Penso que os escritores, enquanto pessoas, também fazem parte da comunidade das redes sociais e dos jornais. Por isso, existe essa curiosidade de saber algo mais sobre eles.
E, do outro lado, estamos sempre a depositar [num livro] algo realmente profundo. Por exemplo, tanto em Itália como noutros países, as pessoas queriam saber se eu tinha muita raiva dentro de mim. Preocupavam-se em saber se eu sou, realmente, assim tão agressiva. Claro que há muitas coisas sobre a minha própria vida, a minha própria adolescência, dentro deste livro. Acho que esta curiosidade faz parte da nossa sociedade e hoje em dia é muito fácil falar com um escritor. Recebo muitas mensagens de pessoas que querem saber coisas sobre os livros, e outras que pensam que me conhecem porque leram este livro.

Portanto, hoje em dia, a privacidade é algo complicado. Tudo isto faz parte do processo de estar nas redes sociais, porque também quero, claro, ter relações com pessoas que falam dos meus livros ou que os apreciam, que os criticam. Às vezes, iremos receber uma mensagem de alguém que nos vai dizer, 'não gosto do teu livro, foi uma perda de tempo'. E aí penso: está bem, não há problema.
O livro retrata uma era de transição para os computadores, para os telemóveis. Uma época em que a liberdade ainda não nos tinha sido, de certa forma, roubada. Quiseste trazer esse debate para o livro? E depois há uma personagem, a Carlotta, que nos mostra as consequências dessa mudança repentina nas nossas vidas de millennials.
Sim, sim, porque nasci no final dos anos 80 e os anos 2000 foram [sentidos] como o início de uma nova era. A tecnologia chegou às nossas vidas e cresceu, cresceu, e continua a crescer em nós. Quis falar da sua importância nas nossas vidas pessoais, na nossa intimidade. Tínhamos apenas 13 ou 14 anos quando utilizámos pela primeira vez os computadores pessoais dos nossos pais. E depois tivemos todas estas conversas nos chats, que foram selvagens, como se ninguém estivesse a tentar cuidar de nós. Podemos pensar que ninguém conhecia o poder desse tipo de tecnologia e, por isso, a história de Carlotta é uma história real que não terminou como no livro. No caso, a rapariga decidiu mudar-se para outro país porque a pressão sobre o seu corpo e a sua mente era demasiada e ela estava a utilizar os chats apenas para tirar fotografias de si própria e enviar essas fotografias [Carlotta é uma personagem que descobre aquilo a que agora chamamos de nudes] sabe-se lá para onde e, nessa altura, não tínhamos conhecimento dos perigos da Internet.

Depois vieram os telemóveis e, de algum modo, eu só queria mostrar o facto de Gaia ter lutado muito para ter este primeiro telemóvel - é que para o seu contexto familiar aquilo era um luxo. Claro que, para Antónia, a mãe, aquilo não fez sentido, porque todas as coisas que não são essenciais, para ela não são importantes, portanto não são para se gastar dinheiro. Mas naquele momento os telemóveis eram a novidade, embora rapidamente o dela [Gaia] se tenha tornado obsoleto. Tudo evoluiu tão rapidamente que seria impossível para alguém como a Gaia manter-se a par, estar na vanguarda, estar na moda, tal como a moda durante esse período das nossas vidas se tornou rapidíssima. O facto de [hoje] se poder comprar uma coisa, deitá-la fora, voltar a comprá-la, é realmente uma forma de vida luxuosa. A mentalidade de Antónia é completamente diferenteM para ela, se compramos alguma coisa, é para usar para sempre até desfazer-se. É como se não deitássemos fora uma roupa ou um sapato novo só porque não é novo, não está na moda. Já a Gaia,a filha, vive em contacto com adolescentes que podem comprar muitas coisas e, para ela, isso é realmente frustrante.

Há hoje uma noção de proximidade irreal, por causa das redes sociais? Perderam-se os verões com os amigos com encontros diários, sem ser preciso marcar hora e ponto de encontro? No livro há esta condição entre duas amigas, que é a de dar toques do telefone fixo, para uma dizer à outra que chegou bem a casa.
Perde-se muito tempo com o telemóvel, muito tempo que se pode utilizar noutras coisas. Comunicar de outras formas durante esses anos, para mim, para nós, era tão simples quanto saber que sim, vamos encontrar-nos na praia às 16h todos os dias, não precisávamos de nos reorganizar, sentiamos que fazemos parte de algo e que havia um compromisso lá ou à noite, e não precisamos de comunicar com ninguém.
Bastava ir lá e encontrá-los, e saber que eles estariam lá. Hoje em dia é muito complicado sentir que se vai ver alguém num local apenas com uma marcação que talvez tenha feito há uma semana. Há sempre aquela necessidade de perguntar: sempre nos encontramos lá às tais horas? Por isso sim, vivi uma transição. É interessante o facto de tudo ter mudado em cinco anos, tratou-se de uma grande mudança, mas que ocorreu num período de tempo muito curto. A Gaya está no centro desta mudança e não compreende nada sobre si própria, sobre o que se passa fora dela e sobre a sua forma de estar. Exprimir essa frustração é difícil, para ela, é como se ela não compreendesse o mundo, não se consegue adaptar, questiona-se porque está no mundo, naquela família, porque é que aquela é a sua mãe. É como se estivesse sempre a pedir respostas que ninguém pode dar.

Quando começou a pensar nesta história, sabia que queria contar uma história com este background familiar, num contexto de pobreza?
Em todos os livros que escrevi, há sempre algo sobre a sociedade, a parte económica e a relação entre as famílias e a sociedade. Sobre o interior da família, como é que a família vai sobreviver e como é que as mulheres, em particular, podem sobreviver e cuidar da sua própria situação financeira. Eu tinha na minha mente a personagem de Gaia. Foi muito claro para mim que ela seria uma adolescente agressiva e violenta. Descobrir de que família ela vinha era muito importante. A mulher que está por detrás da personagem Antónia e que me contou a sua própria vida é real, isto são coisas que lhe aconteceram realmente. O que eu pensei foi que seria muito pertinente usar uma espécie de contraste porque, por um lado, Gaia é uma vítima do seu contexto social, mas, por outro lado, não o é. Conseguimos compreendê-la, mas não completamente. Assim, o contexto social da família pôde ajudar-me a explicá-la, como se, de alguma forma, tivéssemos pena dela por ter sido vítima de bullying, por não ter dinheiro para muitas coisas, por causa das condições da família, por causa de um pai que anda de cadeira de rodas e tudo o mais... Mas, do outro lado, Gaia escolhe ser violenta e agressiva e não ser construtiva em relação à sua própria vida, não compreendê-la profundamente. Ela explode porque não pode ter coisas, é como uma criança pequena. Quer algo e não pode ter. Ela nunca cresce e não se torna melhor pessoa.


É uma escritora de método? Como é que escreve? Onde é que escreve?
Escrevo na minha própria casa. No meu quarto, onde me sinto mais sossegada. Escrevo depois do almoço, ao fim da tarde, à noite. É muito complicado para mim escrever quando estou num hotel, num comboio, ou num avião, porque preciso de ficar sozinha e de estar concentrada, oiço muita música e às vezes choro enquanto estou a escrever. A última parte deste romance foi muito difícil de escrever, porque foi fruto da minha própria experiência. Por isso, é realmente impossível para mim escrever algo assim quando estou numa biblioteca, num autocarro ou num café. Por isso, preciso de estar sozinha quando escrevo. Tive de escrever o último capítulo do livro quando a pandemia se espalhou e pensei: "Qual é o sentido disto? Porque é que estou a escrever nesta situação? Ao mesmo tempo que algo tão grande, tão terrível, está a acontecer no mundo, à minha família, a mim, ao meu país, à Europa, para e depois para todos. Mas depois família e amigos incentivaram-me a terminar, e disseram-me depois de escrito logo se via. Talvez seja por isso que o último capítulo é tão sombrio, porque foi escrito durante a pandemia e eu estava a sentir-me muito à parte do mundo. Foi muito importante terminar o livro, porque foi uma longa viagem, para mim, e não deixa de ser um livro muito íntimo.

Como estamos em Itália ao nível do reconhecimento das mulheres na literatura? Já viveram tempos mais fácil para a cultura, no geral, certo?
Há muitas leitoras em Itália, ou seja, a maior parte dos leitores são mulheres. E por isso querem ler histórias sobre outras mulheres. Mas acho que isto é muito bom. É muito importante. Há muitas histórias de mulheres que já não são recordadas, como muitas biografias, muitas figuras femininas do passado.
Sinto que as editoras reconhecem o facto de que todos estes livros escritos por mulheres e lidos por mulheres estão a vender muito bem. Por outro lado, é um facto que nos pedem para escrever apenas o que se vende hoje em dia. Por isso, se fores mulher, tens de escrever sobre uma mulher e tens de ficar dentro desse tema, dessa ideia. E por isso acho que este livro é um livro que, de alguma forma, com estas figuras femininas que são tão fortes por dentro, foi bem concebido e bem interpretado em Itália também por esta razão. O meu próximo romance passa-se em Itália como personagem principa masculina. E isso foi um problema para a minha editora, porque eles pensaram: 'Por que está ela a fazer isto a partir de uma perspetiva masculina e não usa uma perspetiva feminina? Estava a vender tão bem.' Por isso, de alguma forma, sinto que há limites. É importante termos as nossas prioridades, a nossa liberdade para escrever tudo o que queremos.
Precisamente por isso, e pelos temas que aborda, as pessoas comparam-na frequentemente a outras escritoras contemporâneas como Sally Rooney, Leila Slimani ou Elena Ferrante? É irritante?
Em Itália penso que não, talvez façam comparações internas com outros autores italianos, mas no exterior, sim, há muitas comparações, claro, com Ferrante, porque ela é muito conhecida e foi traduzida em todo o lado. O meu livro vai ser publicado em Inglaterra e nos Estados Unidos. Lá, sim, estão a puxar por esse lado, Giulia Caminito está entre Sally Rooney e Eleanor Ferrante. Não sei se isso fará sentido no futuro, mas para mim é realmente, não sei, estúpido. Não acho que se possa pedir emprestado o nome de um escritor só porque é famoso. E depois toda a gente tem de ser como "ela", ou não ser como "ela", ou não há meio termo. Sim, de certa forma é irritante porque respeito e gosto muito da escrita da Ferrante mas... não é a minha cena. Todas as escritoras italianas penso que têm as suas próprias conversas individuais e uma ideia da sua literatura. Portanto, somos completamente diferentes. Só porque há uma história de uma mãe e de uma filha, és a nova Ferrante? É como se as mães e as filhas fossem toda a gente na literatura. Por vezes, isto é um pouco frustrante. Mas, por outro lado, temos muita sorte por ela ter sido tão lida em todo o mundo, porque é uma oportunidade para a literatura italiana ser vista.
Gostaria de ver o seu trabalho numa série de TV ou num filme? É uma possibilidade?
Sim, trabalhámos durante dois ou três anos num filme a partir deste livro, mas depois a produção decidiu parar o processo e agora estamos a fazer desde o início. Tenho alguma esperança no futuro da indústria cinematográfica em Itália, que é muito lenta e tem muitos problemas políticos. Mas sim, para já trabalhei num guião e isso foi muito estranho, foi complicado pensar no livro de outra forma. Espero, no futuro, ter a possibilidade de voltar a trabalhar no argumento deste livro.
