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As mulheres que mudaram a História da Arte

A inquietação de Katy Hessel começou ainda na Faculdade, quando compreendeu que não conseguia enumerar vinte grandes mulheres na História da Arte mundial. Para combater este choque, começou a investigar um pouco por todo o lado e, desse esforço, nasceu o livro 'História da Arte sem Homens', agora lançado em Portugal.

Foto: @Lily Bertrand
13 de novembro de 2024 às 07:00 Maria João Martins

Profissional e assertiva, Katy Hessel vai falando, num tom quase neutro, sobre as opções de método que tomou ao longo da escrita da sua monumental obra, História da Arte sem Homens, agora editada em Portugal pela Penguin. Mas quando lhe falo de Paula Rego, o rosto anima-se-lhe e o discurso adquire uma nova vivacidade: "É um ícone. Com a pintura de Paula Rego, sentimos que a arte pode realmente vencer a solidão e fazer com que nos sintamos acompanhados, mesmo em circunstâncias penosas. Ela leva-nos a lugares onde nunca estivemos." E dá como exemplo dessa importância a série de trabalhos que a artista, nascida em Portugal mas que cedo partiu para Londres, onde se afirmou, dedicou ao tema do aborto clandestino: "É tão poderosa a ousadia que ela demonstra ao retratar esta realidade de forma tão expressiva e carnal. Paula mostrou como continuam a existir abortos clandestinos, extremamente perigosos para a vida e para a saúde das mulheres, o que é ainda mais impressionante para uma mulher que nasceu e cresceu numa ditadura altamente castradora para os direitos e liberdades das mulheres, como foi a de Salazar."

Foto: @Lily Bertrand

Em História da Arte sem Homens, a historiadora de arte, locutora e curadora britânica Katy Hessel, de 29 anos, apresenta-nos os quadros impressionantes da pintora renascentista Sofonisba Anguissola, as obras radicais do século XX de Harriet Powers, ou a história fascinante da baronesa Von Freytag-Loringhoven, a verdadeira criadora da arte ready-made. Pelas suas páginas, viajamos desde a Idade de Ouro da pintura holandesa no século XVII, ao impressionante trabalho das artistas latino-americanas do pós-IIª Guerra Mundial, passando pelas mulheres que estão a definir o conceito de Arte na atualidade. Como nos explica: "O livro foi concebido como resposta ao livro de Ernst Gombrich, The Story of Art (1950), que foi publicado pela primeira vez sem mencionar uma única artista mulher – e mesmo as reedições sucessivas têm um longo caminho a percorrer em direção à representação igualitária, por género e raça."

Aos 21 anos, Katy, que estava a estudar História da Arte, começou a pensar se conseguiria nomear 20 mulheres artistas de várias épocas históricas e percebeu que não. A partir deste choque que, como diz "é extensivo à Música clássica e ao Cinema", dedicou-se a investigar, contornando muitas vezes a escassez ou o silêncio das fontes: "Quando vou a museus, em qualquer parte do mundo, procuro mulheres artistas. Aqui, em Lisboa, encontrei a Sarah Affonso, artista que foi muito importante em meados do século XX. O nosso trabalho é fazer luz sobre elas, colocá-las no seu devido contexto e contar a sua história, senão o mundo não avança."

Um dos aspetos mais perversos com que Katy se defrontou é o facto de algumas destas mulheres terem sido eclipsadas pelos homens famosos, também eles artistas, com que, em algum momento, se relacionaram. É o caso da escultora francesa Camille Claudel, que é sempre colocada na sombra de Rodin, que terá sido seu amante: "Ela era extraordinária, autora de um trabalho muito importante, mas o que se conta sempre são os seus amores com Rodin e o desfecho trágico da vida dela, que terminou encerrada num hospício." O mesmo aconteceu durante muito tempo com Frida Kahlo, sempre referida pelo seu casamento com o pintor Diego Rivera: "Tal como acontece connosco, não são as relações das nossas vidas que nos definem como pessoas e como profissionais."

Pelas páginas do livro de Katy Hessel, passam ainda outras grandes figuras como a italiana, autêntica mestre do Barroco, Artemisia Gentileschi: "É uma mulher que criou pinturas heróicas e que foi uma artista muito importante. Foi uma pessoa extremamente forte, com uma grande capacidade para sobreviver às coisas tremendas que lhe aconteceram, mas, uma vez mais, o que a define é a excelência da sua obra." Mas também podemos falar de uma quase contemporânea de Artemisia, Sofonisba Anguissola, também ela italiana, que se tornou pintora da muito sofisticada corte de Filipe II de Espanha (I de Portugal): "Era uma mulher muito inteligente - conta a historiadora de arte - que retratou o ambiente culto a que as mulheres da aristocracia tinham acesso. Um exemplo disso é o retrato em que mostra um grupo de jovens mulheres a jogar xadrez."

A autora destaca ainda alguns períodos que foram mais favoráveis à arte no feminino do que outros: "No século XVIII, antes da Revolução Francesa, surgiram muitas mulheres pintoras importantes como Elisabeth Vigée Le Brun, que foram muito produtivas e tiveram bastante sucesso. A Revolução, quando aconteceu, foi muito contraditória porque, ao mesmo tempo, que libertou a classe média, restringiu as liberdades das mulheres dentro da família e na esfera pública." 

Foto: @Lily Bertrand

Outro período interessante, destaca, ocorre em plena época vitoriana, na segunda metade do século XIX, que tantas vezes associamos a um certo obscurantismo de costumes: "Ao mesmo tempo que as sufragistas foram para as ruas reclamar o direito ao voto, na Escócia houve um conjunto de mulheres que começaram a trabalhar no movimento Arts & Crafts e a fazer trabalhos muito interessantes, usando técnicas tradicionais das chamadas manualidades."

Considerando que "o silêncio em torno da arte assinada por mulheres é tão global, que podemos dizer que é comum às diversas civilizações", Katy Hessel está, no entanto, confiante de que as mudanças ocorridas nos últimos 30 anos são conquistas irreversíveis. Conto-lhe que, há não muito tempo, um importante galerista de Lisboa me dissera que as jovens artistas, ao contrário dos seus pares masculinos, ainda têm pudor em pedir o justo valor pelo seu trabalho. Katy reconhece a atitude e diz que o mesmo acontece no Reino Unido: "Ainda tendemos a acreditar, ou fazem-nos acreditar, que devemos ser tímidas e não pedir nada para nós. Os homens são educados ao invés disto, são incentivados a pedir, reclamar e negociar. Fica-lhes bem." E conclui: "Ainda temos de investir numa educação que diga às raparigas que está certo lutar por aquilo que merecemos."

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