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Histórias de Amor Moderno: “Para que fique bem claro: nós não comprámos carro algum a qualquer indivíduo chamado Elon”

“Politicamente, somos distintos. Concordamos em discordar em muitos assuntos e creio mesmo que nunca votámos no mesmo partido numa eleição. E isso nunca foi um problema.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB/'Leave the world behind (2020)'
08 de março de 2025 às 07:00 Maria Olívia Sebastião

O Vítor apareceu-me em casa com um autocolante para colar na traseira do carro. "O que é isso?", perguntei-lhe. Mostrou-me. Todo em letras estilizadas, dizia assim, em inglês: "I bought this before we knew Elon was crazy". "Desculpa, querido, não estou a perceber." Eu estava a perceber. Perfeitamente. Só não estava a gostar daquilo que estava a perceber. E ele continuava a mostrar-me o autocolante, muito sorridente, dir-se-ia orgulhoso de si mesmo, olhava para as letras e olhava para mim, e apontava para elas. Por fim, disse "assim, resolvemos o assunto". Mantive-me em silêncio, sem expressão facial, como se olhasse através daquela encenação palerma. "Não é genial?", perguntou por fim. Não, querido. É terrível.

Para que fique bem claro: nós não comprámos carro algum a qualquer indivíduo chamado Elon. Nem nenhum outro tipo de veículo, já agora. Não compraria a Elon Musk um triciclo, se ele os vendesse. Que digo eu, não seria capaz de comprar, sequer, uma torradeira, se esta tivesse colada uma etiqueta a dizer "tesla". Há coisas de que não abdico e outras com que não compactuo. E eu não abdico dos meus princípios, pelo que não posso compactuar com os de Musk.

Elon Musk
Elon Musk Foto: GettyImages

Acredito que adquirir o que quer que seja a uma corporação, hoje em dia omnipresente, como a de Elon Musk é uma forma de aceitar tudo aquilo que a sua figura representa. E, a meu ver, segundo aquilo que entendo do mundo e o que me foi ensinado sob o desígnio das boas práticas e bons princípios, o que Musk representa não é bom. É o contrário de bom. Da obscenidade da riqueza acumulada até ao poder político comprado e enfiado na algibeira graças à opulência da sua riqueza, o dono dessa marca de carros feitos à medida do pequeno-burguês iludido não merece de mim mais do que a consciência - porque inevitável - da sua existência. Tudo o resto vai contra os meus princípios.

O meu marido, claro, não pensa assim. O debate já vem de longe. Cá em casa, temos dois carros, o meu e o dele. O meu é um utilitário desenhado à medida da cidade, com baixo consumo e dimensões reduzidas. Ótimo para estacionar, tem a vantagem de não ser um automóvel de exibir. Assim, os meus cuidados com a viatura resumem-se a garantir que possui os mínimos que lhe permitam locomover-se, não apenas dentro da legalidade, que é o obrigatório, mas ainda com razoável conforto. A pressão dos pneus é verificada com regularidade, as mudanças do óleo são escrupulosamente cumpridas segundo a indicação ainda anotada por escrito e pendurada no manípulo à esquerda do volante. Os tapetes são sacudidos e os assentos aspirados, a carroçaria é lavada numa lavagem automática ali ao pé das Olaias, que é das poucas que ainda são automáticas - tudo o resto agora é de meter moedinhas de plástico e faça você mesma, bem-vinda ao mundo Ikea que é a idade contemporânea, um tempo em que pagamos para podermos dispensar a funcionalidade de alguém fazer por nós aquilo que não gostamos de fazer.

Sim, sou eu que faço tudo isto, não preciso que o Vítor cuide do meu carro, obrigada. Sei muito bem como fazê-lo, embora o faça com muito menos entusiasmo do que o dele quando executa as mesmas tarefas em torno do seu bólide. Sempre gostou de carros grandes e vistosos, prodigiosos veículos para a vaidade masculina. Não o digo com escárnio nem com maldade - vaidade, cada um tem direito à sua. Só não partilho da do Vítor. Concentro a minha noutros assuntos, em objetos diferentes e atividades diversas. Já ele, calhou gostar muito de carros. E tudo bem, sempre foi assim que o conheci e não é agora que o quero mudar.

Tesla
Tesla Foto: GettyImages

Quando o carro do meu marido começou a revelar pequenos problemas - um ruído de plástico que vibra vindo sabe-se lá de onde, uma luzinha que se acende no painel de instrumentos (qualquer que se acenda que não seja a do pisca provoca em mim uma ansiedade tremenda, como se uma entidade poderosa e desconhecida me assinalasse à frente dos olhos "Maria, temos para si um novo mistério, venha descobrir o problema enigmático que lhe reservámos"), necessidades cada vez mais frequentes de substituição de peças num crescendo de dimensão e de custos - ele disse-me, muito contrariado, "vou ter de me desfazer do bê-ême antes que seja demasiado tarde". O "bê-ême" é um série 5, sem  dúvida uma máquina, um pequeno luxo - só que um pequeno luxo a caminho dos 19 anos, que faz em setembro, torna-se um luxo de dimensões consideráveis.

Não é fácil substituir um carro destes, e nisso o Vítor tem todo o meu apoio e a minha melhor compreensão. Conversámos sobre o assunto. Pretendia, com legitimidade, um automóvel com personalidade, de alto gabarito, qualquer coisa que lhe permitisse chegar e dizer "senhoras e senhores, dou-vos a honra da minha presença". Por outro lado, também concordámos que seria importante, até tendo em conta o cargo que o meu marido ocupa - não sendo uma figura pública nem um rico e poderoso, é uma personalidade local com interesses e investimentos que obrigam a uma certa imagem -, que o novo automóvel acompanhasse o evoluir dos tempos.

"Se é para comprar um elétrico, quero um Tesla", proclamou. Eu não quis levar o assunto para o terreno da discussão. O Vítor sabe, desde há muito, o que penso acerca de Musk. E a verdade é que essa figura obscena, que anda sempre vestida de boné e t-shirt para mostrar ao mundo que não precisa de usar camisa para fingir que respeita as figuras importantes que o acompanham - porque simplesmente já não precisa de fingir o que quer que seja -, nada tem feito para que a sua imagem mude e se transforme em alguma coisa agradável. Mal-educado, prepotente e, por fim, capaz de fazer gestos que noutros tempos dariam direito a excomunhão social (mas que hoje em dia são estranhamente desvalorizados por tanta gente), a repugnância que me causa tem crescido a par da sua presença pública, que se tornou incontornável, inescapável.

Carros da Tesla
Carros da Tesla Foto: GettyImages

Só que o meu marido e eu, que tanto temos em comum, nem sempre vemos a realidade da mesma maneira. Às vezes, é como se diante de cada um surgissem versões diferentes de uma verdade, de um mesmo mundo. Estamos juntos há quase trinta anos e sempre sobrevivemos, com relativa facilidade e algum engenho, às divergências que surgiram entre nós. Politicamente, somos distintos. Concordamos em discordar em muitos assuntos e creio mesmo que nunca votámos no mesmo partido numa eleição. E isso nunca foi um problema. Na pior das hipóteses, foi motivo de uma discussão mais acalorada - mas que sempre soubemos resolver, sem amuos nem vinganças (normalmente, até o fazemos da melhor maneira que existe para resolver questões deste tipo, gastando a energia acumulada um com o outro, mas sem ser com berros, nem ameaças, nem insultos).

Desta vez, porém, é diferente. A escolha do Vítor ia para além do nosso desacordo político e ideológico. Ostentar um Tesla, escolhê-lo de entre várias outras opções semelhantes - nenhuma delas inferior, antes pelo contrário, a meu ver -, é um sinal puro de orgulho em identificar-se com aquilo que Elon Musk simboliza. E se o Vítor se identifica com aquilo, então eu não me identifico com o Vítor. Ora, bem sei que eu e o Vítor temos muito mais o que nos una do que o que nos separe. E, por isso mesmo, disse-lhe, meio a brincar, "se compras um carro desses, cheio de vaidade, eu peço o divórcio". Ficou apreensivo, a pensar se eu estaria a falar a sério. Acho que se assustou. Dei-lhe uma palmada malandra no rabo e disse-lhe que se deixasse de parvoíces.

Tesla Autocolante
Tesla Autocolante Foto: GettyImages

E, assim, dias mais tarde chegou-me a casa com a porcaria do autocolante. Todo sorridente, exibia a frase "I bought this before we knew Elon was crazy" como se isso resolvesse todo o problema. "Mas, Vítor, tu ainda nem compraste o carro… ou compraste?" Temi o pior. Mas não, não tinha comprado. Então, que sentido fazia aquilo? Se já sabe que o Elon é maluco e ainda não comprou o carro, porque é que havia de o comprar agora? "Não misturo as coisas", disse-me. Justificou-se, dizendo que sabe o que o Musk representa, mas diz que não se revê nisso - simplesmente gosta dos carros, nada mais. Acha-os bonitos, sofisticados, práticos "e nada caros para o que são". Disse-lhe que isso era impossível, que hoje, comprar um carro daqueles, era um statement ideológico; garantiu-me que não. "O autocolante serve precisamente para mostrar que não me identifico com estes bilionários e oligarcas." Hum, ok. "Só por curiosidade, onde é que compraste o autocolante?" Diz que mandou vir da Amazon. Virei-lhe as costas. Hoje durmo no quarto de visitas. Amanhã, logo se vê. 

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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