O 25 de abril segundo 20 mulheres portuguesas, de Paula Rego a Ana Gomes
O 25 de abril marcou o início de um Portugal livre e contemporâneo. Mas do lado feminino a mudança foi ainda mais radical. Convidámos 20 mulheres de diferentes idades, profissões e visões da vida a pronunciarem-se sobre o que a Revolução trouxe de novo e de melhor para a condição feminina, como capítulos de uma história que se começou a escrever há 49 anos e que ainda tanto tem para contar. Testemunhos publicados no artigo 'O Novo Mundo das Mulheres', publicado na edição de maio de 2019 da Máxima.

Paula Rego, artista plástica
As mulheres estavam sempre em risco
"Quando eu era jovem precisava da autorização do meu pai ou do meu marido para ter passaporte. O aborto era ilegal, contudo, claro, acontecia sem segurança. As mulheres estavam sempre em risco. Estes direitos mudaram, mas não sei se o comportamento dos homens em relação às mulheres mudou assim tanto. Talvez seja mais seguro viajar nos transportes públicos sem sentir que homens frustrados se roçam em mim, mas agora é raro para mim apanhar o comboio e, por isso, não posso jurar que hoje assim seja. Eu costumava voltar de Lisboa negra de todos os beliscões. Uma vez, a minha mãe e eu estávamos a caminho da estação do metro e vimos um homem a masturbar-se e a minha mãe disse: ‘Aquilo não pode ser dele.’ Não sei a quem é que ela achou que aquilo poderia pertencer. Depois havia os homens nos penhascos a olhar para as mulheres de biquíni e a masturbar-se… Ainda têm disso [em Portugal]?"

Simone de Oliveira, cantora e atriz
Comigo foi sempre 25 de Abril
Comigo foi sempre 25 de Abril. Desde que nasci. Para mim, por dentro, foi sempre 25 de Abril. Fui dizendo aquilo que pensava e que achava. Nunca me calei muito. ‘Quem faz um filho fá-lo por gosto’, dizia eu em cima de um palco, uma vez, e há um senhor que se levanta e diz: ‘Minha senhora, que horror, que barbaridade. É uma vergonha!’ E eu disse: ‘Se o senhor não faz um filho por gosto, não pode, não sabe ou já esqueceu.’ Foi depois do Festival. Tenho muitas histórias [de episódios que sucederam por ser mulher]. Uma vez fui chamada ao liceu por causa da minha filha Eduarda. Fui preocupada e a diretora de turma diz-me: ‘Senhora Dona Simone, nós não sabemos porque é que a filha de uma artista que usa decotes, fuma e se deita às quatro da manhã é tão boa aluna e tão boa pessoa.’ E eu respondi: ‘Perguntem-lhe a ela.’ A minha vida é um carrossel."


Isabel Ruth, atriz
Porquê cravos e não rosas?
"Eu costumo dizer que sou a grande responsável pelo 25 de Abril! Estávamos no início do ano de 1974 e era muito importante convidar um Mahatma a visitar Portugal. Eu ia viajar para Inglaterra, onde tencionava permanecer um ou dois anos, e queria deixar a casa arrumada e a despensa bem fornecida como uma mãe que é obrigada a afastar-se por algum tempo dos seus filhos. Nunca antes eu tinha pensado e sentido tanta proximidade ao meu país (meu?). Porém, algum tempo antes eu tinha compreendido que, de facto, ‘a minha pátria é a minha língua’ e que seria aqui o lugar onde melhor compreenderiam a minha Odisseia! Sim, tal como Ulisses, também eu parti à aventura, também eu naufraguei, encantaram-me, sobrevivi e regressei a casa. Sou a heroína da minha história, da minha própria vida. E que tem tudo isto a ver com a Revolução dos Cravos? Eu pergunto: e porquê cravos e não rosas? Não foi a rainha Santa Isabel a responsável por transformar pães em rosas? Acreditamos em milagres, no poder da fé?
Eu queria mesmo que Portugal abrisse as portas à Índia! Implorei e disse para comigo: ‘Senhor, faz com que algo aconteça para que se abram as fronteiras! É urgente o Conhecimento, em Portugal!’ No dia 25 de Abril de 1974 eu estava em Londres... E agradeci."


Olga Roriz, bailarina e coreógrafa
Há ainda muito a percorrer
"Eu tenho sempre de começar pelos meus privilégios pessoais, desde criança, os que vieram dos meus pais e da minha formação. A minha situação é muito diferente da maior parte das pessoas da minha geração. Enquanto o meu pai fazia o jantar, a minha mãe estava a ler o jornal na sala. O contrário também acontecia. A minha mãe era jornalista e o meu pai desenhador naval. A minha mãe, uma mulher culta que gostaria de ter sido atriz, ia ao teatro e ao cinema todas semanas, o meu pai acompanhava-a quando podia, mas se ele não podia ela não deixava de ir por isso.
Quanto à [minha] formação dos oito aos 18 anos, foi feita dentro do Teatro de S. Carlos que, ainda na ditadura, era o teatro nacional mais eclético da altura, decerto o mais abrangente e mais internacional. A minha visão como criança nada tinha a ver com a ditadura. Por outro lado, em relação à liberdade de ação, não tive hipótese nenhuma. Nada de saídas à noite fosse com namorados ou com amigos. A liberdade que eu consegui ter foi quando resolvi casar-me. Do meu percurso, até agora, esse foi o meu momento de charneira e de diferença para com o presente. Poucas serão as raparigas, hoje em dia, que têm de se casar para sair do seio familiar. Com pouco mais de 20 anos eu já era coreógrafa no Ballet Gulbenkian. É óbvio que, como mulher, aí senti um peso e uma responsabilidade, sobretudo de não falhar, que hoje continuo a sentir. A democracia abriu o caminho, mas há ainda muito a percorrer. O tema da igualdade de género está na ordem do dia, mas ainda há mulheres a acharem-se inferiores e homens que publicamente e em cargos políticos ostentam a obrigatoriedade de dizerem todos e todas, sem um sentir profundo desse direito. Talvez no dia em que acabarem com o Dia da Mulher ou que instituírem o Dia do Homem estejamos a caminho de alguma igualdade."

Joana Vasconcelos, artista plástica
Uma total mudança da liberdade das mulheres
"O 25 de Abril é um momento paradigmático da mudança da relação da mulher com o mundo. Eu sou resultado disso, perspetivando a minha família. A minha mãe é uma revolucionária que fez o 25 de Abril e a mãe da minha mãe, a minha avó, é uma mulher que viveu plenamente a época das colónias. A minha avó é uma pessoa que fez toda a sua vida nas colónias. Viveu na China, na Índia, em África, até regressar a Portugal. Quando a minha avó regressa das colónias, a minha mãe foge para Paris, tornando-se numa exilada política, juntamente com o meu pai. Nas quatro gerações da minha família – a minha avó, a minha mãe, eu e agora também a minha filha –, houve uma total mudança do paradigma da vida, da liberdade da mulher e das condições que as mulheres tinham e têm para serem livres e serem elas próprias. Se a geração da minha mãe não tivesse quebrado com os padrões, lutado pela liberdade de expressão das mulheres, pela liberdade do voto, talvez a minha mãe ainda teria de pedir autorização ao meu pai para sair do país, como quando para se casar teve de completar 21 anos para que o pai a autorizasse a tal. A minha mãe não era livre para ser o que ela gostaria de ser e a minha avó nem pensar! A minha avó, uma vez, disse-me: ‘Tens muita sorte. Tu podes ser quem gostas de ser, podes ser artista. Eu não pude ser artista.’ Ela era pintora e começou a pintar muito tarde, pois só quando o meu avô morreu, quando se deu o 25 de Abril, quando a Guerra Colonial acabou e quando o país se reencontrou é que ela ganhou a liberdade de expressar quem ela era na verdade, uma artista. O 25 de Abril para mim é a conquista de uma liberdade de eu ter espaço, entendimento e cabimento para ser quem sou."
Leia os testemunhos de Isabel Figueiredo, Maria Teresa Horta, Inês Pedrosa, Leonor Xavier e Maria Elisa Domingues aqui.
Leia os testemunhos de Maria Cândida Rocha Silva, Maria José Morgado, Maria Antónia Palla, Zita Seabra e Ana Gomes aqui.
Leia os testemunhos de Rosalia Vargas, Joana Cabral, Isabel do Carmo e Helena Pereira aqui.

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