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Arrependida de ser mãe?

A socióloga israelita Orna Donath investigou um dos maiores tabus da sociedade contemporânea e entrevistou 23 mulheres que se arrependem de ter filhos. Agora que o livro acaba de ser traduzido para português, a Máxima conversou com a autora que quer mudar mentalidades e soltar amarras e estigmas sociais e culturais.

Orna Donath
Orna Donath
12 de julho de 2017 às 20:00 Carlota Morais Pires

Para escrever o livro Mães Arrependidas (2017, Bertrand) entrevistou 23 mulheres entre os 25 e os 65 anos que se arrependem de ser mães. O que a levou a investigar este tema e a querer chegar a estas mulheres? 

Quando terminei o meu primeiro estudo, sobre homens e mulheres judeus e israelitas que não queriam ser pais, fiquei presa a uma frase que me disseram e me deixou bastante angustiada, sobretudo por ser uma promessa que se faz sempre às mulheres: "Tu vais arrepender-te. Vais arrepender-te se não fores mãe." Para mim, foi difícil deixar a investigação estagnar e pairar na determinação que impõe o arrependimento à decisão de não ter filhos, excluindo totalmente a possibilidade contrária – ou seja, a do arrependimento de se ser mãe.

Tinha a certeza de que algumas mulheres se arrependem de ser mães e decidi escrever a minha tese de doutoramento sobre esta questão, que mais tarde acabou por dar origem ao livro Regretting Motherhood [agora traduzido para português e editado pela Bertrand]. Não queria explorar unicamente o arrependimento das mães na sua essência; o meu objetivo sempre passou por estudar a relação entre a sociedade e as emoções e, em última instância, o seu uso político.  

O que mais a surpreendeu durante a investigação? 

Não fiquei surpreendida por descobrir que existem realmente mulheres que se arrependem de ser mães, nem me surpreendi verdadeiramente com os seus testemunhos. O que mais me surpreendeu (ou talvez não?) foi assistir à insistência da sociedade em recusar aceitar que o arrependimento – que é um estado emocional que pode acompanhar qualquer tomada de decisão e qualquer relacionamento – pode estar associado à transição para a maternidade.

Ser mãe muda a vida da mulher de formas que não podem ser antecipadas antes do momento em que a criança nasce – por isso faz sentido que algumas mulheres se sintam arrependidas.

Tudo passa por não encararmos a maternidade como um conceito mítico e começarmos a olhar as mulheres como seres humanos – temos de compreender que mulheres de carne e osso também podem pensar e sentir que cometeram um erro. A reação da sociedade ao arrependimento é previsível, porque admitir este arrependimento é perigoso. Admiti-lo obrigaria a repensar um esquema social que beneficia nações inteiras, a economia, a lógica capitalista e interesses patriarcais. Por isso, muitas sociedades não vão parar de transmitir a mensagem de que ser mãe faz parte da natureza da mulher.

Durante a investigação, ouviu alguma história particularmente impressionante? 

Uma das histórias que mais me chocou foi a que contou a experiência de ser mãe numa sociedade racista. Também me relembrou de que não podemos falar na experiência de ser mãe, porque todas as experiências são diferentes, já que mulheres de diferentes grupos sociais podem ter muito em comum, mas também se veem obrigadas a lidar com a opressão em diferentes camadas.

Isto foi o que a Maya disse quando a entrevistei durante a investigação: "Eu olho para a minha filha e vejo que se parece comigo: a sua pele é escura, o cabelo encaracolado – uma aparência que não é comum numa sociedade predominantemente branca. E eu só consigo pensar: ‘Meu Deus! Estou a reviver tudo, outra vez.’ Lembro-me de ser criança e sonhar ter trinta anos, queria ser adulta. Queria saltar a infância, a adolescência, queria que esta fase horrível terminasse e conseguir ser uma pessoa estável. E agora, com trinta anos, estou a passar pelo mesmo outra vez. A minha filha sai para a escola e isso deixa-me ansiosa. Será que vai ser aceite? Será que vai pertencer a um grupo? Será que se vai sentir miserável, como eu me sentia?

Isto está a destruir-me totalmente… Imaginas o quão destroçada fiquei quando sentei a minha filha de três anos na banheira e ela me disse ‘Mãe, não sai. Aqui fizeste bem [enquanto aponta para a palma das mãos]. Aqui estou demasiado escura [e aponta para a parte exterior da mão enquanto a esfrega].’ Durante as semanas seguintes não sabia o que fazer, nem comigo, nem com ela. De repente todas as minhas ansiedades da adolescência voltaram, e voltar a vivê-las não me deixa sentir bem."      

Chegou a algumas conclusões inesperadas quando terminou o projeto? 

Não posso dizer que foi inesperado, ou uma conclusão – mas que há uma necessidade crítica de acontecer uma mudança imediata. A começar por: 1) Acabar com a divulgação da ideia de que a maternidade é o objetivo de vida de todas as mulheres; 2) Mostrar figuras de mulheres que não são mães; 3) Parar de vender o sonho de que ser "a mãe perfeita" que "tem tudo" é uma realidade alcançável; 4) Parar de tentar disciplinar mulheres e mães; 5) Parar de envergonhar e culpar as mulheres de diferentes grupos sociais por não serem "as mães perfeitas", como se esse conceito existisse com uma definição concreta e real; 6) Continuar a ver o ato de ser mãe como algo que é seguido das mais diferentes emoções e experiências. Provavelmente, vamos aprender muito mais se ouvirmos as outras pessoas mais honestamente e atentamente.

Quando entrevistou estas mulheres (que se arrependeram de ser mães), o que disseram que mais as influenciou na decisão de ter filhos?  

O que mais influenciou estas mulheres foram as imagens irreais criadas pela sociedade sobre a maternidade, além da mensagem de que esta é a única forma de se ser considerada uma "mulher real" e de participar no "curso natural da vida" que, em última análise, nos vai guiar para a felicidade plena. Um terço das mulheres que participaram no meu estudo nunca quiseram ser mães, mas sentiram uma pressão enorme por parte da sociedade, das famílias e dos seus namorados ou maridos. O segundo terço das mulheres na minha investigação disse que não pensou sobre o assunto antes de tomar a decisão de ter um filho; há uma ideia generalizada de que é a "lei normal da vida" e elas simplesmente seguiram o que é considerado natural. Depois, as mulheres do último terço do estudo disseram que queriam ser mães porque pensaram que isso acrescentaria às suas vidas algo que elas sentiam que faltava; só depois chegaram à conclusão de que os filhos só tornaram as suas vidas mais caóticas.

Sentiu que estas mulheres têm medo de expressar o seu arrependimento às suas famílias e amigos? Foi difícil conversar com elas sobre esta questão? 

Sim, a grande maioria das mulheres que participaram no meu estudo tinham medo de expressar o seu arrependimento mesmo às pessoas mais próximas, porque sabiam que tanto as suas famílias como os amigos não iam acreditar nelas ou seriam tratadas como monstros, vistas como loucas, irresponsáveis e autocentradas. Por isso, muitas mulheres preferiam não falar sobre o assunto com ninguém. Uma vez que foram estas mulheres que me procuraram para participar no estudo, assim que nos sentámos para conversar não foi difícil conseguir que falassem; muito pelo contrário, estavam ansiosas para falar abertamente sobre o assunto sem serem julgadas. Duas das mulheres que me contactaram desmarcaram o encontro comigo no dia anterior e disseram que não eram capazes de se ouvir a confessar a outra pessoa (a mim, neste caso) que estavam arrependidas de ser mães.

Foi muito criticada quando o livro foi publicado? Qual foi a principal reação à sua investigação? 

As mulheres não foram criticadas porque o que me disseram, e que depois transcrevi para o livro, foi dito com nomes fictícios para proteger as suas identidades. As reações ao livro oscilam entre a crítica positiva dos apoiantes do estudo e a recusa da existência real do arrependimento da maternidade, da sua aceitação e do reconhecimento do significado da sua existência e significados sociais.

Depois de publicar o livro, teve algum feedback de mulheres que se sentiram aliviadas por lerem outros casos de mães arrependidas? 

Nos últimos dois anos recebi centenas de mensagens de mulheres e homens de todo o mundo – alguns são pais, outros não; alguns são pais que não se arrependem de o terem sido, mas que admiraram a capacidade destas mulheres, que falaram sobre emoções sobre as quais ninguém fala; e alguns deles são pais arrependidos, que me disseram que este livro lhes deu uma voz.

Será que ainda estamos muito longe de uma sociedade que não julga este arrependimento ou a decisão de não ter filhos? 

É uma boa pergunta. Infelizmente, a minha previsão é que ainda temos pela frente muitos anos de condenação e julgamento destes pais antes que as próximas gerações assistam a uma mudança – isto se acontecer, de facto, uma mudança.

Qual seria a primeira medida a adotar para conseguir esta mudança de mentalidades?

Antes de tudo, seria começar a tratar as mulheres como seres humanos de carne e osso, que têm todo o poder de decisão sobre as suas vidas, os seus corpos, os seus pensamentos, decisões e emoções.   

Será que alguns países já estão culturalmente mais abertos a esta discussão?

Em todos os países onde o meu livro foi publicado as reações foram muito semelhantes: algumas pessoas identificam-se com o que leem e compreendem os seus significados sociais, outras recusam-se a aceitar a possibilidade do arrependimento de ter

filhos. Não está tão relacionado com um país como um todo, mas mais com a experiência pessoal e abertura de cada pessoa. O que posso dizer é que o debate público sobre o meu livro gerou uma discussão mais longa e demorada na Alemanha; não consigo dizer a razão concreta que o justifica, mas a minha interpretação pessoal prende-se com as razões históricas que obrigaram os alemães a lidar com as suas emoções e com a vergonha e o arrependimento. 

 

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