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Aldina Duarte. “Neste disco tenho a sensação de ter criado algo só meu”

A tradição nunca fica o que era nos fados de Aldina Duarte. Dois anos após o lançamento de 'Roubados', e com as emoções da pandemia ainda presentes no seu coração de artista, 'Tudo Recomeça' reúne temas de sempre transformados em inéditos de hoje.

Foto: Isabel Pinto
03 de junho de 2022 às 09:47 Miguel Judas

Despertou tarde para o fado, mas desde que tropeçou nele, "quase por acaso", nunca mais o largou. O primeiro disco, Apenas o Amor, surgiu em 2004, quando já tinha 37 anos e um percurso já feito nas casas de fado, que ainda hoje continuam a ser o seu habitat natural. O mais recente, Tudo Recomeça, recupera parte do seu repertório ao vivo, mas nunca antes gravado, em mais uma declaração de amor ao fado tradicional, que com Aldina está sempre em contante evolução. Para ver e ouvir em duas sessões únicas no Teatro São Luiz esta segunda e terça, 6 e 7.

Como classificaria este disco, será uma espécie de best of do seu repertório?

Sem querer ser pretensiosa é muito mais que isso, porque é uma reinterpretação de fados que nunca larguei nos meus espetáculos, apesar de nunca os ter gravado. E isto aconteceu porque no início de 2020 tinha um álbum acabado de lançar, o Roubados, que foi interrompido no seu trajeto natural por causa da pandemia. Passados dois anos, fazer um best of seria o óbvio, mas optámos por um caminho diferente, mostrando como os mesmos fados se transformam em algo diferente ao longo da vida dos fadistas.

Em que sentido?

Tudo começou quando consegui reagendar sete concertos do Roubados em Portugal e Espanha, numa minidigressão que terminou no CCB. A grande surpresa aconteceu aí, porque pensei que conhecia estes fados de trás para a frente e quando subia ao palco sentia exatamente o contrário. Tudo me parecia tão desconhecido que até me sentia mal fisicamente, mas esse mau estar, descobri depois, era afinal mental.

Foto: Isabel Pinto

Como o fez?

Um dia decidi racionalizar e ouvir cada uma das palavras que cantava. Percebi que no meio daquela adversidade toda, apenas sentia uma gratidão enorme por aquelas pessoas, que se davam ao trabalho de sair de casa, em plena pandemia, para assistir a um espetáculo meu de máscara. E por causa disso, aqueles velhos fados já não me contavam as mesmas histórias e isso acabou por mudar tudo: o ritmo, as sonoridades, as palavras, a poesia. Tinha-me acontecido, finalmente, aquilo que já há muito ouvira a outros fadistas mais velhos.

Isso aconteceu porquê, sabe?

Foi resultado desta vivência global tão trágica a nível afetivo e do quotidiano, que colocou relações em causa e até a própria sobrevivência das pessoas. O tema Estação das Cerejas, por exemplo, já não é para mim uma história de amor como sempre cantei e passou a ser um fado sobre esperança na vida por si, que na verdade foi o que nos salvou.

Como é que tudo isso se transforma neste álbum?

Foi tudo tão novo que decidi colocar-me finalmente à prova no fado tradicional, reinterpretando, sob esta nova perspetiva, os fados que sempre cantei. O fado não tem fim, esse é o seu maior valor. E como nunca está completo, há um constante reinventar que o transforma sempre noutra coisa, de acordo com quem canta e com o que se sente nas diferentes fases da vida. Neste disco fiquei com a sensação de ter criado algo só meu. É por isso que adoro ser fadista, cada vez mais.

Qual foi o critério para escolher os temas?

São fados que canto há muitos anos nos meus espetáculos, mas que na maioria dos casos nunca tinha gravado. E tenho também um tema dedicado ao Miguel Lobo Antunes, porque foi devido a ele que comecei a dar concertos fora das casas de fado, quando me desafiou para atuar na Culturgest, quando era lá diretor. Tive então uma ajuda preciosa por parte do Jorge Silva Melo, no sentido de descobrir uma forma de transpor o meu fado para o palco de um grande auditório, sem o corromper naquilo que considero essencial, o intimismo, o peso da palavra e o valor da poesia.

Foto: D.R

Repito então a pergunta inicial, como classifica este disco?

Como um álbum de família, feito a partir dos fados que cresceram comigo ao longo da minha carreira e foram agora, também por mim, transformados noutros. É uma flor que nasceu no meio do caos, mas também é o meu contributo para tentar fazer algo bonito e esperançoso a partir desse mesmo caos. Tem esperança e placidez sem ser vazio, porque também precisamos de espaço para processar a tristeza. É um disco sobre a pulsão de viver que todos temos, mas com espaço para a dor e para tristeza.

Como é que encara, hoje esse período da pandemia e dos sucessivos confinamentos?

No fundo nunca parámos de nadar, por uma questão de sobrevivência, e agora que pudemos finalmente parar, começámos a ter tempo para processar tudo. É bom não nos esquecermos que passámos dois anos, todos os dias, a ouvir a falar diariamente de morte. Houve pessoas que ficaram sem trabalho e sem dinheiro para as necessidades mais básicas. É óbvio que vamos ter de acusar o toque, porque estas coisas não desaparecem de um dia para o outro.

E qual poderá ser o papel dos artistas nesse processo?

Como me disse o Manel Cruz no outro dia, "nós somos as flores". Hoje, quando estou em palco, sinto que sou um presente para as pessoas que ali foram para me ver e ouvir e isso faz muito sentido para mim. Só me desilude que não se tenha percebido a importância da consciência coletiva, como se vê agora com esta guerra estúpida. Mas mesmo assim continuo a acreditar nas pessoas, na utopia da humanidade. Não consigo entender o sentido da guerra. É o poder? O dinheiro? Mas estas pessoas não têm família? Mas enfim, como dizia o António Barahona, se formos artistas apenas para provar a inutilidade da arte também é bom, porque é bom que algo exista apenas para ser contemplado. No fundo, falta aos poderosos aquilo que a arte tem, ser inútil, contemplativa, interativa e coletiva.

Falou há pouco do Manel Cruz, autor do único inédito do álbum, o tema Ela, que acaba por ser a exceção que confirma a regra do fado tradicional.

O Manel tornou-se no meu único compositor. Veio até mim e reconheceu-me de uma forma incrível, como mais uma vez aconteceu com este tema. Lembro-me que me ligou e disse, "esta és mesmo tu, vê lá Dininha", é a única pessoa que me trata assim (risos). Era a visão dele de mim, em termos artísticos. Como ele escreveu no refrão, sobre a minha resistência em mudar de caminho, "Ela não aprende a ser outra, é só isso, sempre foi". Mas para quê mudar, se é um caminho sempre renovável e interminável, como este disco prova? Para mim, este tema tem mais a ver com aquilo que todas as mulheres têm em comum e nos define enquanto tal, o facto de sermos todas únicas e diferentes.

Foto: Isabel Pinto

Porque é que começou a cantar fado?

Porque ouvi a Beatriz da Conceição a cantar numa casa de fados. Já era adulta e tive a sensação de ter assistido a algo único, como se tivesse visto a Billie Holiday ou a Nina Simone à minha frente. Nesse momento percebi que a minha vida não ia ficar igual. Passei o ano seguinte a ouvir fado de forma quase compulsiva, porque achava incrível aquela arte existir aqui e eu não saber quase nada dela. Entretanto casei com o Camané, que também era fadista (risos) e a minha vida mudou radicalmente. Passado algum tempo comecei a organizar com ele as noites de fado do Teatro da Comuna e pouco tempo depois fui convidada para ingressar numa casa de fados. Primeiro no Clube de fados e depois no Senhor Vinho, onde permaneço.

Quando é que se sentiu pela primeira vez fadista?

Desde esse primeiro momento em que ouvi a Beatriz da Conceição a cantar. Senti-me primeiro fadista a ouvir, o que na altura era uma hipótese que nem sequer se colocava. Ainda hoje não sei se gosto mais de ouvir ou de cantar fado, nem sequer concebo uma coisa sem a outra.

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