Os femicídios que nos assombram. Ou como ainda se morre por se ser mulher

Sofia Neves, da Universidade da Maia, Centro Interdisciplinar de Estudos de Género (ISCSP-ULisboa) e Associação Plano i, fala-nos sobre o contexto atual no que diz respeito às vítimas de violência doméstica em Portugal.

15 de junho de 2022 às 11:38 Sofia Neves

A História de Portugal é hoje marcada por mais dias de democracia do que de ditadura. Neste percurso de liberdade, são muitas as conquistas alcançadas em matéria de Direitos Humanos e, muito particularmente, de Direitos das Mulheres. No campo da promoção da igualdade de género e da prevenção e do combate à violência de género, o país é atualmente referência a nível europeu, tendo desenvolvido leis, políticas públicas e medidas que o situam, inclusive, na 22.ª posição do Global Gender Gap Index 2021, do Fórum Económico Mundial, que cobre 156 países.

Não obstante estas evidências, todos os anos as taxas de violência doméstica e de homicídios neste âmbito atingem níveis preocupantes, fazendo lembrar que há ainda muito a fazer no que toca, por um lado, à redução deste tipo de criminalidade, que é um dos mais expressivos dentre os crimes contras as pessoas em Portugal e, por outro, à efetiva proteção das vítimas. De forma consistente, estas são maioritariamente do sexo feminino, reforçando a necessidade de se compreender e atuar sobre o fenómeno a partir de uma perspetiva de género, como plasmado, por exemplo, na Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, ratificada por nós em 2013.

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Foto: DR

Os números são bastantes ilustrativos da extensão do fenómeno e das suas especificidades. De acordo com a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG), no 1.º trimestre de 2022, foram registadas pela Polícia de Segurança Pública (PSP) e pela Guarda Nacional Republicana (GNR) 6732 ocorrências de violência doméstica, sendo que no período análogo do ano anterior tinham sido registadas 5550 ocorrências. Em 2021 houve um total de 26511 casos reportados às mesmas entidades, verificando-se um ligeiro decréscimo comparativamente a 2020, em que foram registadas 27619 situações.

De janeiro a março de 2022 foram registados, de acordo com a Polícia Judiciária, 9 homicídios voluntários em contexto de violência doméstica, sendo 8 de mulheres e 1 de uma criança. Nos mesmos meses do ano transato, registaram-se 7 homicídios, 5 de mulheres e 2 de homens. No cômputo geral, em 2021, foram cometidos 23 homicídios, dos quais 16 foram contra mulheres, 2 contra crianças e 5 contra homens. Em 2020, tinham sido praticados 32 crimes desta natureza, com 27 vítimas adultas do sexo feminino, 3 do sexo masculino e 2 crianças. A flutuação dos números deve ser analisada com prudência, dada a multiplicidade de fatores que a poderão explicar.

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Pela desproporcionalidade da sua prática no que respeita ao sexo das vítimas e das pessoas agressoras, e pelo seu enquadramento sociocultural, o homicídio em contexto de violência doméstica tem sido, desde a década de 70, designado por várias autoras e autores como femicídio, a primeira das quais Diana Russell. O femicídio é, assim, o assassinato das mulheres pelo facto de estas serem mulheres. Nas últimas semanas, mais duas mortes vieram a público, uma em Arouca, outra em Felgueiras. Duas mulheres assassinadas a tiro alegadamente pelos seus (ex)companheiros, a primeira mortalmente atingida na cabeça e a segunda no peito e no abdómen.

A cada morte de uma vítima reforça-se a certeza de que por muito que já tenhamos feito, ainda não fizemos o suficiente. A prevenção e o combate à violência de género convocam-nos a todas/os, todos os dias, nas diferentes esferas onde nos movemos. Enquanto não formos capazes de pôr fim a este flagelo, cada femicídio deve assombrar-nos o bastante para que não esqueçamos o quão longa é a estrada que temos pela frente.

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