Histórias de Amor Moderno: “Sobreviver era, na minha cabeça, missão mais que digna para cada dia”

“Para os outros, presumo que eu fosse apenas a filha dos malucos, a moça da casa dos loucos.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB
27 de janeiro de 2024 às 10:42 Maria Olívia Sebastião

Adoro o Baleal e vou lá quase todos os sábados, mas nunca chego a ir a Peniche, corto caminho em Atouguia da Baleia. Tenho medo daquela gente. Às vezes, sinto vergonha de mim. Custa-me acreditar que aceitei tanta coisa, que tolerei, que obedeci, que me calei. Como é que foi possível?

Os psicólogos dizem que estas coisas têm explicações que estão lá atrás, nos acontecimentos antigos, nas memórias distantes. Eu, nas memórias antigas, tenho o meu pai a atirar ferramentas, louças e roupas pela janela, desgovernado, enfurecido, incontrolável. Tenho a minha mãe a ameaçar que se matava, desfeita em lágrimas, os cabelos mal cortados a cair-lhe da cabeça, ela a arrancá-los, às vezes. Tenho os vizinhos a vir à janela, a vir à varanda, a vir à rua, sem que ninguém fizesse nada para acabar com o triste espetáculo. Eles só queriam ver, riam-se e comentavam como se assistissem a uma comédia. E eu, muito quieta, a chorar, muito envergonhada, sentada no degrau da porta, a minha mãe a sair a correr e a dizer que não voltava, a pegar-me por um braço e a arrastar-me com ela, "eu mato-me, Zé", gritava e puxava-me e não parávamos nunca, "eu faço uma desgraça, Zé", insistia, "faço uma desgraça e a miúda vai comigo", e eu não percebia se eu ia com ela naquele momento, para onde ela me arrastava, ou se ela contava arrastar-me consigo para a morte, que é a desgraça final. E o meu pai desvairado a dizer-lhe que voltasse já ali imediatamente, que ai, isso é que faltava!, que ela não se matava, não, que quem a matava era ele! Só me lembro de sentir muito medo e de pedir a Deus que ninguém matasse ninguém, que já me bastava a vergonha, quanto mais uma tristeza dessas.

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Os meus pais eram ambos doentes mentais certificados, cada qual com os seus documentos que lhes atestavam as enfermidades do espírito e da mente: ele esquizofrénico, ela depressiva. Os dois juntos resultava num cocktail de glicerina, ácido sulfúrico e ácido nítrico. Estes elementos combinados compõem a nitroglicerina, que é tão vulnerável às oscilações que explode por tudo e por nada. Pois, assim eram os meus pais. Ao mínimo toque, ao mais leve deslize, à menor agitação, em contacto um com o outro, rebentavam, cada um para seu lado, destruindo tudo em redor. Quando se separaram pela primeira vez, tinha eu seis anos, fiquei muito triste. Uma criança dessa idade não entende, não mede os prós e os contras, só quer que os seus pais sejam como os pais dos outros, que fingem que está tudo bem e se suportam mutuamente sem grandes reclamações, ou, pelo menos, sem grandes sinais exteriores de terror. Anos mais tarde, os meus pais voltaram a juntar-se e a situação tornou-se ainda mais grave, mais violenta, mais descontrolada. O teatro de horrores que costumava fazer do bairro uma plateia entusiasta passou a meter medo até às vizinhas mais cínicas e escarninhas. Não sei como não se mataram um ao outro, levando-me junto com eles nessa desgraça. Não demorou até que se separassem de novo, e eu, dessa vez, mais consciente, gostei do desfecho. Nunca mais voltaram a estar juntos.

E é nestes alicerces nervosos e desfeitos que a construção de mim mesma assentou. A autoestima, como se compreende, nunca foi grande coisa. Não tinha muita consideração por mim. Sobreviver era, na minha cabeça, missão mais que digna para cada dia. Fui-me isolando dos outros. Por vergonha, rejeitava a possibilidade de ter amigos, de me dar com gente, de ver e de ser vista, de comunicar. A minha existência pública limitou-se, durante muito tempo, desde a adolescência à idade adulta, a caminhar pelos passeios para ir às compras - a escola ficara há muito pelo caminho. Para os outros, presumo que eu fosse apenas a filha dos malucos, a moça da casa dos loucos. A pobrezinha. A coitadinha.

Casei-me cedo. Hoje, quando penso nisso, não me admira que o tenha feito. Mal conhecia rapazes, o despertar da minha adolescência foi tardio, não surpreende que me tenha apaixonado loucamente por um tipo charmoso e bem-parecido que se dispôs a cuidar de mim. E cuidou. Tinha 22 anos quando trocámos alianças, pouco depois estava eu grávida. O meu filho, a melhor coisa da minha vida, foi uma bênção, ainda que não seja fácil ser mãe de um miúdo autista - não é um caso profundo, felizmente o destino foi minimamente piedoso comigo uma vez na vida.

O meu casamento não foi bom nem foi mau, foi como pertence. Eu cuidava da casa, da criança, das limpezas e dos cozinhados; ele chegava quando chegava, muitas vezes demasiado tarde. Bêbado era raro, mas chegou a acontecer. E isto pode parecer virtude e motivo de descanso, mas, se pensarmos bem, também dá que pensar: se não andava a beber com os outros iguais a ele, o que andava então a fazer? Descobri da pior maneira ao fim de seis anos que não era em tascas nem nos copos que ele costumava andar. O entretém dele era outro. Eram outras. Foi até me trocar por uma delas. Desde então, sou pai e mãe. Na verdade, sou pai e mãe do meu miúdo desde quase sempre.

As novas circunstâncias e a nova realidade deixaram-me ainda mais desamparada. Sem uma rede familiar, sem amigos com quem poder contar, tornei-me errante. Saía com uns e com outros, sem regras, sem exigências. Só queria não me sentir sozinha. Havia um padrão nas minhas escolhas. Hoje questiono-me: será que foram escolhas? Ou será que me calhavam em sorte aqueles que sobravam, os que ninguém queria, os que me achavam fácil? Álcool, drogas, abuso, prepotência, agressividade, brutalidade, tudo ingredientes dos meus relacionamentos após o casamento. Até que um acidente, um acaso, mais um golpe inclemente deste meu destino que tem por objetivo dar cabo de mim, fez com que o Zé - Zé, como o meu pai, o Zé do teatro de loucura - me encontrasse numa rede social julgando que eu me tratava de outra pessoa.

As primeiras vezes que falámos, foi muito estranho. Ele achava que eu era alguém com o mesmo nome que eu, de Peniche. Eu mal conhecia Peniche, nem sabia ao certo onde ficava. Após muita insistência, lá aceitei encontrar-me com ele para lhe provar que eu não era nada aquela pessoa que ele pensava. Veio ter comigo a Lisboa. Nessa mesma tarde levou-me de volta, para a terra dele, deu-me a conhecer o Baleal. Adorei o passeio. Acabámos a dormir juntos numa pensão em Peniche. Foi o princípio de uma espiral de onde eu achei que nunca iria escapar.

Logo nessa primeira noite, consumiu drogas à minha frente, no quarto. Tudo bem, não era nada que eu nunca tivesse visto. Eu não consumo, nunca experimentei certas coisas. Não quero, já vi o que isso faz às pessoas. Com o tempo e o ganhar da confiança, o Zé foi consumindo coisas mais duras. Já não se contentava com o que era simples, já não queria só ficar bem, ficar zonzo, descontrair. Não, agora queria ficar alto, lá em cima, queria voar de loucura. E eu com ele, ao lado dele. E eu a fazer-lhe de táxi. E eu a fazer-lhe de moça de recados, de mula, de transportadora. Eu ao lado dele, até quando fugimos da polícia na Cova da Moura, por sentidos proibidos e a alta velocidade (a filha dele e o meu filho, os dois miúdos no banco de trás, aterrados, a chorar, sem saber o que estava a acontecer). Eu ao lado dele até quando a brigada nos parou e lhe confiscou as doses que tínhamos ido comprar ao antigo Casal Ventoso.

Fui humilhada, usada e agredida. Fui intimidada, revistada, detida e acusada. E tudo eu permiti, nem eu sei como. E é isso que me envergonha. E depois, no fim de tudo, a mãe e a irmã dele ainda faziam de mim culpada. Apresentaram queixa de mim na polícia. Para me defender, tive de fazer queixa de volta. Tive de denunciar para não sofrer eu as consequências. Fugi dali. Fiz as malas, peguei no meu rapaz e fui-me embora. Continuo a gostar muito de ir ao Baleal ver o mar, passear na praia. Mas pôr os pés em Peniche? Não, nunca mais.

 * Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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