Mulheres em carne viva: as obras cortantes de Paula Rego e Adriana Varejão

É obrigatório visitar "Entre os vossos dentes", a exposição recém-inaugurada no CAM da Gulbenkian. Um mergulho profundo nas entranhas femininas e nas feridas sociais da História, por duas artistas plásticas maiores. Para visitar até 22 de setembro.

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28 de maio de 2025 às 13:08 Patrícia Barnabé

“Não se vendo uma afinidade total, porque são duas artistas bastantes diferentes, têm sinergias e dialogam de maneira incrível”, diz Helena de Freitas a uma mão cheia de jornalistas que a seguem na visita guiada a “Entre os vossos dentes”. A curadora, que pensou esta exposição ao lado da artista carioca Adriana Varejão e de Víctor Gorgulho, relembra que apesar das diferenças de geração – Paula Rego nasceu em Lisboa, em 1935, e Adriana Varejão nasceu no Rio de Janeiro, em 1964 – produziram as suas obras mais ou menos ao mesmo tempo e em ambas é evidente uma visão de mulheres sobre as mulheres, uma certa violência social e íntima, a que estamos sempre mais expostas, e à contundência dos seus temas, de poder e opressão, mas também de erotismo e força de vida.

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O título foi, por isso, retirado de um texto da brasileira Hilda Hilst, Poemas aos Homens do Nosso Tempo, de 1974 sobre o “poder instituído por homens que trituram as vidas humanas”, acrescenta o curador brasileiro, que traz uma flor no cabelo. Foi escolhido porque “sintetiza esta exposição fala sobre o entre, o centro da boca, do outro entre os dentes num discurso anti-patriarcado, muito feminista e anti-colonial, questiona-os enquanto discute o erotismo e o corpo.” Impossível não admirar uma coluna de um edifício a ruir, de Varejão, como simbolismo de modernidade, e reparar nos dentes arreganhados de uma mulher agachada no estudo da Mulher-cão, de Paula Rego, de 1994. “Morder e mastigar é importante” e é uma ideia presente nas 13 pequenas salas desta exposição, que funcionam como camadas, como nas obras, e nas metáforas, das duas artistas, que têm percursos distintos, mas já tinham partilhado a Carpintaria, no Rio de Janeiro, em 2017, no fim de vida de Paula Rego. Se esta faz um retrato pungente do feminino, e dos seus temas figurativos, a artista brasileira mergulha nos materiais para esventrar as dores humanas.

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A exposição está aninhada nas referidas pequenas salas, que foram construídas para pôr em diálogo as 80 peças produzidas ao longo de seis décadas. Um lugar de intimidade, de reserva e recato, onde o feminino sempre se expressou, afastado da vida pública. Num projecto de Daniela Thomas, cada sala é um momento, uma conversa que se desenrola num percurso a descobrir sem ordem específica. “Algumas são armadilhas”, brinca a curadora Helena de Freitas referindo-se à sua qualidade imersiva. Algumas estão cheias, um gesto curatorial intencional, que quer fazer um paralelismo entre o espaço universal e público e o íntimo e doméstico. “As obras dissolvem-se quando se encontram novas camadas interpretativas e essa é a riqueza deste encontro”, sublinha Vítor Gorgulho.

Por exemplo, numa sala encontra-se o tríptico A primeira missa no Brasil (1993) de Paula Rego, onde uma mulher grávida está deitada em sofrimento sob um quadro - neste, o povo Tupi assiste à sua primeira missa católica, evocando a obra homónima do pintor oitocentista Victor Meirelles, e a perversidade e subjugação do colonialismo - enquanto outras duas mulheres exibem um vestido branco manchado de sangue e a fogueira onde tantas foram queimadas vivas pela Igreja, acusadas de bruxaria. Adriana Varejão contrapõe com Mapa de Lopo Homem (1992), onde rasga uma ferida aberta na primeira imagem cartográfica portuguesa do Brasil, de 1519. “Ambas com feridas por curar“, diz a artista, “da violência contra as mulheres, e as indígenas e as negras, é uma sobreposição de violências” diz a própria artista. E a curadora remata dizendo que representa um sonho, uma memória viva e “um rasgão que deixa ver a ferida que está por detrás da representação do mundo.” E é nesta lógica que se sucedem as salas seguintes. “A pele é o que aparece e por detrás dela estão todas as histórias da humanidade.”

Há uma fresta por onde podemos espreitar para a sala seguinte. Se Casa de Campo de Paula Rego, de 1961, critica as políticas do racismo, a sua grande tela que evoca o Crime do Padre Amaro, inspirada na obra de Eça de Queirós, fala das guerras do poder racial, que Adriana Varejão tão bem representa no seu pantone quase infinito de cores de pele existentes no Brasil, com as devidas rodas de classificação: “Misturam-se as cores, mas não as hierarquias.” Também são fortes as obras da série Saunas e Banhos, de Adriana Varejão, um encontro entre o claro e o escuro, a luz e as sombras, uma presença enigmática e asséptica, vazia e enigmática, onde permanecem restos do que ali se viveu. E os seus pontos de fuga tão bem se encontram com as telas de Paula Rego porque ambas querem falar, e criticar, o olhar erotizado que paira quase sempre sobre as mulheres. Uma sauna para transpirar e “retirar o sujo da pele”, diz-nos a curadora enquanto salta para sala seguinte que vai ainda mais fundo, às profundezas do aborto, ao “inominável”, onde o seu famoso Tríptico, de 1998, mulheres sufocadas em ambientes domésticos, contorcendo-se em camas-macas, alinham-se ao lado de gravuras a preto e branco, sem título porque nos faltaram as palavras depois do triste referendo sobre o tema, em 1998, que só desbloqueou a lei nove anos depois. A seu lado, Adriana Varejão exibe as suas obras de 1994, Extirpação do mal, onde ferramentas hospitalares mostram a verdade crua das coisas.

Há um pendor obsessivo em ambas as artistas, que faz parte do fascínio que evocam e do poder da sua mensagem: a gravitas de Rego e um grito de Varejão, que tudo rasga, até os azulejos portugueses. “Cada uma, em seu continente, lança uma conversa antiga e forte” diz-nos Vitor Gorgulho, e criam uma espécie de “encenações da carne”, recorrentes da teatralidade e do barroco que vemos aqui representados de maneiras tecnicamente diferentes. É uma exposição absolutamente imperdível, onde tudo se sente à flor da pele, como no osso, dos azulejos que “cospem matéria”, à possessão e histeria femininas, muito simbolismo, mas também cintilações, silêncios abafados e desejo transbordante, corpetes pretos e espadas cortantes, feridas abertas, beijos, bofetadas, subversão e lirismo, liturgias e o profano, transgressão e coscuvilhice, o humano e o animal, o mar e a fantasmagoria, o grotesco e o humor - o radical que sempre existe para forjar a reflexão e o debate sobre que é mais profundo e urgente. Imperdível.

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