“My
body, my choice”, reivindicam várias meninas e mulheres no Instagram de Miguel
Milhão, fundador da Prozis e autor do anúncio “Obrigado mãe!”, que foi
transmitido domingo, a meio da tarde, no intervalo do jogo da final da Taça
entre Benfica e Sporting, na TVI. Curiosamente, num dia em que milhares de
pessoas estavam à frente de um televisor nas suas casas ou cafés. Crianças
também.
O dito
vídeo mostra uma mulher fragilizada, numa maca, a ser inquirida por uma
profissional de saúde que parece que vai cometer uma carnificina. No vídeo, o Estado
Português é um homem vestido de preto a quem só falta a foice para personificar
a morte. Os batimentos cardíacos do feto (?) intercalam com a voz de Joelisa
Campos, que canta: “sou eco do impossível / depois
de tanto sofrer / sou um milagre a sobreviver”. Uma letra sem nexo à qual se
juntam doses abundantes de sangue nas mãos enluvadas dos atores que aceitaram
vestir a pele de obstetras. É demasiado absurdo. É mesmo um horror: a
estética (será discutível), o tom e a mensagem. É inadmissível este telelixo
passar numa televisão de canal aberto e difundir a mensagem que cometer aborto
é crime. A Entidade Reguladora da Comunicação Social já recebeu várias queixas
por causa deste vídeo “antiaborto”, e muitas figuras públicas manifestaram-se
nos seus campos de batalha. “Boicotem quem tenta controlar os vossos corpos”,
diz Rita Ferro Rodrigues. Ou Capicua, que numa história do seu Instagram avisa
que é "com o dinheiro dos consumidores de Prozis que se pagam estes
anúncios”.
Já
muita tinta correu sobre a interrupção voluntária da gravidez (IVG). Em
Portugal só desde 2007 é que o “Sim” ao aborto até às dez semanas de gravidez
venceu o “Não”, com 59,25% dos votos. Um processo que começou em 1998, num primeiro
referendo em que a despenalização do aborto foi chumbada, mas por pouco. Longos
nove anos foi o que a mulher portuguesa esperou para poder interromper a
gravidez num ambiente asséptico sem parecer uma criminosa a fazê-lo, em vãos de
escada, nas mãos de outras mulheres sem qualificações, com utensílios
enferrujados. Esta é apenas uma forma demasiado sintética de pôr o problema. A
decisão de fazer um aborto é complexa. E as mulheres que passam por este
episódio trazem consigo traumas associados, não é necessário que venha mais um
escarafunchar a ferida.
Como
descreveu na sua obra Paula Rego, a mulher portuguesa sempre fez abortos em
condições de vida sub-humanas. Eça de Queiroz descreve-o de forma bastante
realista, por exemplo, em O Crime do Padre Amaro, escrito em 1875 (há 150
anos). Todas nós conhecemos histórias de
senhoras que disseram em jeito de confissão: tive que fazer um desmancho,
porque não tinha condições financeiras para ter mais filhos. A mulher pobre,
claro, porque a rica e burguesa viajava com os pais ao outro lado da fronteira
para fazê-lo.
Um filho é um assunto sério. Não são os
milhões de Milhão que decidirão o que vou fazer com o meu corpo, o que tu vais
fazer com o teu corpo, o que nós vamos fazer com o nosso corpo. Ou decidir o
que faço com a minha vida. O direito à autodeterminação do corpo da mulher era,
até agora – em Portugal –, um dado adquirido, mas a julgar pelas beatas a
saírem de vela em banda do túmulo, teremos que ir ao fundo de nós puxar pelas
“bruxas que o lume não queimou”, como canta Capicua. Para que não nos calem,
nem invadam o nosso corpo com leis que nos privam dos nossos direitos, e que
não consentimos. É gravíssimo que um homem sem útero se ache no direito de
julgar qualquer mulher que o faça. É gravíssimo que os milhões de Milhão possam
comprar canais de televisão, influenciar cabeças fraquinhas, ou doutrinar discursos
próximos do ódio. É gravíssimo que eu receba comentários de ódio, ainda que em
português arcaico, por defender o direito das mulheres a fazer com os corpos delas o que quiserem. Não tememos os milhões de Milhão. Há milhares de anos que
carregamos no nosso ventre a humanidade, queremos apenas escolher. A hora, o
dia e o momento de fazê-lo. Ou termos as condições que só a nós nos dizem
respeito de dizer: não. Não chegou a minha hora, não vou ter este filho. É
isto.
Em
janeiro de 2025 o parlamento português declinou as propostas de reforma da lei
do aborto. O Partido Socialista e o Partido Comunista pretendiam alargar o
prazo legal de dez para 12 semanas, enquanto o bloco de Esquerda e o Livre
defendiam que a IVG pudesse ser feita até às 14 semanas. Do outro lado da
barricada, o Chega defendia que as grávidas fossem submetidas a um exame para
ouvir o batimento cardíaco fetal. O mesmo que se ouve no vídeo. Só que o
coração ainda não está formado.
O CDS
defendia que médicos objetores de consciência estivessem presentes nas
consultas prévias à IVG. As propostas foram todas rejeitadas. A Organização
Mundial de Saúde pede o acesso seguro e legal ao aborto, alertando que as
restrições ao mesmo podem levar as mulheres a procedimentos perigosos e
mortais.
A
Organização Mundial de Saúde ignora a existência de Milhão na vida de milhares
de mulheres portuguesas. Espero que a sociedade civil portuguesa também. Assim
seja.