Histórias de Amor Moderno: “O Francisco começou-me a bater ainda eu estava grávida”

“O meu nome não é coisa nenhuma, já cheguei ao ponto de não ter nome, tantos foram os registos.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB / Criada (2021)
02 de março de 2024 às 07:00 Maria Olívia Sebastião

O meu nome é Anabela dos Santos Monteiro. Não. O meu nome é Catarina de Lima Teixeira. Não. O meu nome é Isabel Maria Figueiredo Cunha. Não, também não é este. O meu nome é Ana Cristina Gomes de Sousa. Também não. O meu nome não é coisa nenhuma, cheguei ao ponto de não ter nome, tantos foram os registos - todos eles falsos, todos eles novos, todos eles para me proteger - que as autoridades já usaram para me designar.

Na televisão e no cinema, o nome fictício tem outro glamour. É o alias, o nome de código, a designação secreta. Mas na vida real é diferente, é uma espécie de roubo, de confiscamento do que nos é pessoal, tudo sabe a despersonalização, a desapropriação forçada daquilo que nos é mais íntimo: a identidade, a designação. O nome que o meu pai e a minha mãe me deram, aquele com que fui batizada numa igreja de uma terra a que não posso voltar nunca. Este é um dos custos de querer manter-me viva e em segurança: não voltar a usar o nome de batismo, não regressar à terra onde nasci e cresci. Nunca mais. E a ele, o que lhe aconteceu? Nada. Levou pouco mais que um ralhete.

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No tempo em que eu me chamava Odete - o nome é obviamente fictício - conhecia o Francisco - ele não se chama Francisco - desde que éramos pequenos. Ele era pouco mais velho do que eu. Frequentámos as mesmas escolas até ao secundário. Eu segui para a faculdade, fui estudar para Lisboa, ele ficou na terra. O Francisco gostava de motores, de motas, de carros, de jipes. O pai tinha uma oficina, fazia bom dinheiro, ele juntou-se ao pai nos trabalhos mal fez os 18 anos. Quando acabou o 12.º ano, deixou os estudos e passou a trabalhar a tempo inteiro na oficina.

Eu e o Francisco sempre tivemos uma certa atenção um pelo outro. Ele tinha a sua pinta rebelde, bebia cervejas desde miúdo e deixava crescer o cabelo. Usava camisas aos quadrados e calças rasgadas. Chegou a tocar baixo numa banda de heavy-metal que fazia versões de outras bandas da grande, numerosa e variada família do metal - death metal, thrash metal, power-speed metal, black metal, gothic, enfim, aprendi muitas designações e houve até um tempo que sabia distinguir entre uns e outros. Atuavam nos bares locais lá da terra e das terras vizinhas. O público era sempre o mesmo e andava numa espécie de excursão atrás dos Avengers of Insomnia.

Não havia muito que fazer lá na terra e o programa de fim de semana de andar em tour pelos bares provincianos do concelho atrás dos Avengers era possivelmente o mais excitante que podia acontecer à juventude da zona. Sem surpresa, tornei-me uma das groupies, como todas as minhas amigas da mesma idade. Como a audiência habitual não era assim tão numerosa - seríamos uns 30 ou 40 habituais -, tornou-se inevitável conhecer e começar a confraternizar com os rapazes da banda. O Francisco, que eu já conhecia desde infância, tornou-se mais próximo porque, acredito eu, sempre tinha reparado em mim e gostou de me conhecer melhor. Mesmo depois de eu ir para Lisboa estudar, mantivemo-nos próximos e aos fins de semana em que eu ia à terra estávamos juntos, quer houvesse ou não atuação da banda.

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Não namorávamos oficialmente, mas estávamos envolvidos desde essa altura. E, na prática, ele era para mim o meu namorado. Ele dizia que não queria compromissos, porque eu ficava longe a maior parte do tempo. Não me fazia diferença a designação. Em todo o caso, fez sempre pressão para que eu regressasse à terra quando terminasse o curso. E a pressão foi crescendo e crescendo, até que acabei por deixar os estudos a meio para voltar para a terra e ficar perto dele. Na altura, não me apercebi bem da maneira subtil que usou para me manipular. Enquanto se recusava a assumir um compromisso diante da família e dos amigos, fazia-me sentir culpada por esse compromisso não ser possível; dizia-me que eu era livre e que ele não me podia cobrar nada, mas na realidade era um comportamento passivo-agressivo (se eu saísse com colegas, usava o típico "claro, faz como quiseres" e depois ficava dias sem responder a mensagens ou atender o telefone). Além disso, fazia-me temer que houvesse mais alguém na sua vida - sim, eu estava apaixonada por ele e tinha esse tipo de receios, que acho naturais.

Depois de deixar os estudos - aos meus pais, disse que seria temporário, que precisava de fazer uma pausa -, comecei a trabalhar lá num supermercado e assumimos o namoro. Como o pai do Francisco tinha um pequeno apartamento vazio perto do centro da vila, ele decidiu mudar-se para aí sob a desculpa de "ser mais independente". Na verdade, o apartamento era o nosso espaço de isolamento e eu passava ali a maior parte do tempo. Nunca assumi solenemente que me mudara para o apartamento dele, até porque mantinha a minha base nos meus pais, mas era lá que dormia praticamente todas as noites e ia a casa só para ir buscar roupa e pouco mais.

Sem aviso, e apesar de todos os cuidados que tínhamos, engravidei. Tinha 22 anos, ele 24. Decidimos ter a criança. Éramos ambos saudáveis, trabalhávamos, as famílias, embora não se dessem particularmente bem, haviam de apoiar. Tudo parecia encaminhar-se para que pudéssemos constituir uma família normal. Só que a definição de "família normal" varia de contexto para contexto e o nosso não era o ideal. Num meio pequeno, onde os homens se comportam segundo a lei dos "bros before hoes", onde ser macho implica mandar lá em casa - e tudo isto regado com álcool em abundância, más línguas, gente de mentalidade mesquinha e uma perspetiva de futuro que pode ser resumida a uma expectativa de 40 a 60 anos de tédio ao lado do mesmo homem que em breve se tornará barrigudo para sempre -, a tensão cresce dentro de casa a cada dia que passa.

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O Francisco começou-me a bater ainda eu estava grávida. Primeiro, uma ou outra chapada, coisas pontuais. Arranjava discussão comigo, normalmente relacionada com a casa ou com os horários, provocava-me. Eu nunca me fui de me ficar, então discutia. Antes de vivermos juntos, embora ele sempre tenha sido bruto e intempestivo, nunca me levantara a mão. Mas em casa começou a fazê-lo. Levantava e oferecia-me as costas da mão. Até que uma vez me deu mesmo com ela. E depois outra vez. E depois mais vezes e com mais força.

Quando o bebé nasceu, eu já vivia assustada. Tinha medo de ir para casa e tinha medo de chegar tarde a casa. Tinha medo que ele entrasse em casa e tinha medo que ele chegasse ainda mais tarde, mais bêbado, mais decadente e implicativo. Até que um dia, já noite dentro, o miúdo dormia na nossa cama e eu estava na sala a ver televisão, o Francisco chegou perdido de bêbado. Pôs-se de joelhos à minha frente e disse-me "sabes o que é que a mulher do Roberto fez?" Eu não fazia do que é que ele falava. "Foi para Lisboa passar o fim de semana, para uma despedida de solteira de uma amiga, diz ela." E eu sem perceber. "Essas vadias. Uma despedida de solteira. Vadias", continuava ele. E bateu-me. E depois bateu-me mais e mais, e eu não me conseguia defender, ele só gritava "vadias" e outras coisas ainda piores, "vadias, são todas umas cadelas vadias", e batia-me, e batia-me, e batia-me. Quando me deixou no chão, espancada, a sangrar, faltavam-me dois dentes. Eu chorava e só pensava "mas o que é que eu te fiz?" e ele, como se me lesse os pensamentos, disse, com a maior frieza do mundo, "isto é preventivo: é para que nunca te atrevas a fazer-me o mesmo".

Naquela noite dormi ali mesmo, no chão. O miúdo lá dentro berrava de choro, mas eu não me conseguia mexer, estava em choque. Na manhã seguinte, peguei na criança e fui aos meus pais. E depois à polícia e apresentei queixa. O meu pai não queria, "isso trata-se em casa, não é na polícia", dizia-me. "Isso é entre ti e o Francisco. Se quiseres, posso falar com ele." Mas eu fui, apresentei queixa. Contactei uma associação de apoio às vítimas de violência doméstica. Tomaram conta do caso e disseram-me que era perigoso ficar ali, na terra, que estes casos normalmente escalam depressa, sobretudo quando o agressor se sente afrontado, mas eu não acreditei que ele me fizesse mal depois de apresentar queixa, fiquei em casa dos meus pais. Poucos dias mais tarde, apanhou-me na rua, enfiou-me dentro da carrinha e levou-me para um um terreno. Bateu-me, despiu-me, fez-me tudo. Fui encontrada na manhã seguinte atada a uma cerca, com as roupas rasgadas e a sangrar de vários sítios que prefiro não especificar por vergonha.

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De regresso a casa, liguei para a associação. Aceitei a oferta deles. Tomaram conta de tudo. O Francisco foi condenado a 18 meses de prisão - teve atenuantes, "o cidadão apresenta uma vida estável e não parece representar um perigo acrescido para a comunidade em que se insere; o ato de agressão é isolado e decorreu de um contexto familiar específico" -, mas como era uma primeira condenação, a pena foi automaticamente suspensa. Ficou à solta, a levar a sua vida. E eu? Eu, depois de espancada e violada, há seis anos que não vejo a minha terra, nem os meus pais, nem os meus amigos. O meu pai está doente. A associação está a tentar encontrar uma maneira de eu conseguir visitá-lo antes que seja demasiado tarde, "mas não podemos prometer nada", dizem-me, "porque não podemos comprometer tudo", acrescentam. Resta-me aguardar e não perder a esperança.

* Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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