Opinião, reflexão e autocrítica sobre a amizade entre mulheres
A escritora Nara Vidal aborda o tema das amizades entre mulheres, e dos desafios e questões que comporta.

Falar de amizade é como falar de vida ou de morte. É fácil se agarrar a frases feitas, palavras já ditas. O difícil é desmanchar tudo o que foi ensinado até aqui e revestido de comportamentos culturais e afetivos para encontrar uma maneira mais livre, mais profunda e mais inteira de lidar com esses conceitos. Coragem talvez seja um bom ponto de partida. Não por ser substantivo cheio e pleno, mas porque para se ter coragem é preciso ser objetivo. O caminho para a amizade está infestado de riscos e ameaças, especialmente a amizade entre mulheres. Isso acontece porque ser amiga de outra mulher é deixar claro que a admiramos e que a ouvimos. É admitir que ela é grande, o que não nos faz menores. É claro que a amizade entre mulheres existe, mas o amadurecimento dela talvez não seja uma coisa simples. Minhas lutas travadas para conquistar amizades, mantê-las, desfazer-me delas, coincidem com minhas próprias batalhas em busca do cliché do "autoconhecimento". Talvez por isso colhemos várias amizades ao longo da vida e nos livramos de outras. Não é qualquer um que tem a paciência de continuar nos admirando, nos protegendo ou nos respeitando enquanto mudamos de pele, carreira, cidade, namorado, país, convicções, corte de cabelo, idade, prioridades e livros favoritos.
São raros os relacionamentos de amizade que duram uma vida inteira. Eu tenho alguns e chego a acreditar que duram até hoje porque nos separamos fisicamente. A diversidade geográfica é uma grande aliada para a harmonia entre amizades intensas e duradouras.

Por que a amizade entre mulheres traz, tantas vezes, um viés de competição? Qual tipo de fraqueza ou insegurança nos leva à entrega desse ciclo machista de desconfiança? Por que o machismo nos distrai de pontos primordiais de encorajamento e amor à mulher? "Empoderamento" é uma palavra que vale a pena ou já correu seu curso? Eu prefiro as palavras encorajar, nutrir, apoiar, cooperar e a maior de todas: respeitar. São muito distintas umas das outras e utilizadas em diferentes contextos. No entanto, são suficientes para provocar uma revolução determinante e decisiva na nossa educação, nas tradições passadas de mulheres para mulheres.
Naturalmente eu não tenho qualquer resposta para as questões que levanto. O que pretendo é propor a reflexão. Autocrítica também. Exatamente o que me faltou tantas e tantas vezes na construção de amizades que foram fundamentais na minha identidade como mulher. Sendo uma de três irmãs e mãe de uma menina e de um menino, minha percepção de amizade mudou radicalmente e, para isso, precisei me libertar e me soltar de amarras que eram inquestionáveis como, por exemplo, conselho e opinião de mãe. Família erra e a minha errou em relação a alguns pontos de encorajamento de amizades entre meninas, moças e mulheres. Meus tropeços e erros foram, tantas vezes, resultado dessa bagagem que nunca questionei por ser fornecida pela provedora do amor maior: a família. Outros erros foram problemas de caráter e insegurança. Talvez tudo se misture.
"Confie desconfiando."

Cresci ouvindo esse conselho da minha mãe e das mulheres adultas que me rodeavam tanto quanto as inúmeras superstições. O pote de sal grosso estava sempre por perto.
"Confie apenas na família" era um mantra repetido corriqueiramente dentro de casa. Há um problema grande nisso: a família firme e forte desmancha, desanda como todas as famílias no mundo e os amigos se fazem casa. Mas onde estarão os amigos se recusamos sua aproximação?
Eu ouvia muito das mulheres adultas da minha casa que eu deveria ter cuidado com amizades por causa de inveja, olho grande. Mas inveja era uma ideia de grande complexidade e melhor deixada de lado enquanto crianças e meninas constroem amizades e confiança entre si. Amizades que se traduzem em autoconfiança e aceitação própria. Lembro-me de qualquer discussão ou briga entre amigas, ouvia dos adultos: estão com inveja, não liga.

Mas é justo dizer que esse comportamento não era exclusivo da minha casa, dos adultos que me cercavam. Devia ser frequente nas casas das meninas que aos poucos iam virando amigas, apesar dos obstáculos e da falta de confiança como ponto de partida. Quando há num espaço, várias meninas que aparentemente são autoconfiantes porque os pais e adultos acreditam que o lado de fora da casa sente inveja de qualquer atributo que seja. Desenvolve-se aí um campo fértil de desconfiança, insegurança, narcisismo, ressentimento. Exatamente o que se deve excluir na construção dos alicerces de uma amizade verdadeira, generosa e honesta. A competição torna-se natural e os elogios sinceros são escassos, dando lugar a críticas ou comentários sádicos, violentos e ofensivos.
Quando adolescente, outro fator fez com que a suposta amizade entre as meninas tomasse outra dimensão: os meninos. Nós competíamos pela atenção deles e era comum, ainda que imoral, tentarmos chamar a atenção do menino que estivesse com a nossa amiga. Corpos em mudança visível e um terreno vasto para uma batalha não declarada, ainda que já travada.
Dizia-se à menina com os quadris grandes: gosto da atriz ou modelo tal porque ela tem os quadris estreitos.

Dizia-se à menina de peitos grandes: biquínis não ficam bem em quem tem peito grande. É muita coisa. O certo seria um maiô.
Celebro hoje com muito amor e admiração as meninas que cresceram comigo na certeza de que fizemos o melhor com o que nos foi dado. Tenho hoje um afeto tão grande por cada uma das minhas amigas daqueles tempos de transformação que sinto uma saudade forte, vontade de abraçá-las e dizer o quanto são lindas e corajosas. Dizer-lhes exatamente as palavras das quais as privei.
Uma armadilha na qual caímos regularmente calculada e executada pelo machismo permanente da nossa sociedade. Querem nos colocar nos nossos lugares e, dessa forma, tantas vezes, julgamos outras mulheres, provocamos e desrespeitamos nossas semelhantes simplesmente porque não saímos do ciclo machista que nos é imposto.

Não é forte ou coeso um feminismo com agendas, um feminismo que abre exceções, um feminismo que termina onde começa o machismo. Aceitar, admirar e por fim, celebrar é um processo que resulta numa forma muito poderosa de força entre as mulheres. Mas ainda não estamos prontas. Ainda esbarramos no hábito de criticar outras mulheres por suas roupas, por seu peso, por sua imagem, por sua vaidade, por sua falta de vaidade, pela escolha do seu parceiro, pela escolha da vida sexual, pela escolha de ser mãe ou não, pela escolha de amamentar ou não, pela escolha de amamentar em público ou não, pela escolha de sair cada semana com um homem diferente, pela escolha de se casar ou de não se casar. Por que não há espaço de prontidão para a empatia e a gentileza na maioria dos relacionamentos entre mulheres?
Hoje eu penso que, cercada de mulheres enquanto crescia, não sinto que tive o suporte necessário para me enxergar e celebrar quem fui. Por isso invisto uma força imensurável em tentar de todas as maneiras possíveis, ter um impacto diferente na vida da minha filha. Cada pedaço do corpo e da mente dela são lindos, especiais, vitais, fortes e saudáveis. Exatamente como são lindos, especiais, vitais, fortes e saudáveis os corpos e mentes das amigas dela. Num grupo de meninas que cresce rumo à vida adulta, admiração, respeito e apoio mútuos são a forma mais poderosa de fazer crescer mulheres com autoestima e capazes de oferecer amizades honestas.
Nunca é tarde para aprender.
