Rita Cabaço: "O mercado [de atores] está cheio de balizas normativas que dizem trabalhar sobre a realidade, mas se assim fosse existiria uma diversidade imensa”
Ficamos com um nó na garganta depois de a ver como Milene no filme “O Vento Assobiando nas Gruas” de Jeanne Waltz. Personagem desarmante baseada no romance de Lídia Jorge, ganha vida no talento de Rita, atiça racismo e perversão humana. Num país mergulhado em plena campanha eleitoral, o filme pede para ser visto. Encontro com a atriz.

No meio de um aglomerado de prédios em Lisboa, uma pequena equipa aguarda Rita Cabaço antes de entrar num estúdio para a fotografar. Com o céu cinzento e o estádio da Luz ao longe, a atriz aproxima-se com ar de sono, sorriso nos lábios. A assistente de fotografia diz-lhe, enquanto, se apresenta: "chorei tanto, mas tanto, a ver-te no teatro no outro dia." Ficam as duas a falar de mãos dadas, durante alguns minutos. Uma experiência teatral bem-sucedida tem este efeito. O momento de uma noite de representação efémera fica gravado na memória de um espectador. Um sentimento de intimidade liga os atores de palco ao seu público, ou liga os atores à nossa vida secreta, num jogo de projeções e identidade. Há mais de uma década que o nome da Rita circula no meio teatral, o seu percurso tem recebido um destaque merecido num país com poucas tradições de teatro.


A jovem assistente de fotografia diz ter chorado ao vê-la representar num espetáculo encenado por Beatriz Batarda, onde se questionava a força da Arte nas nossas vidas. Foi também com um nó na garganta, próximo das lágrimas, que mergulhámos na interpretação de Rita Cabaço no filme da realizadora suíça Jeanne Waltz, O Vento Assobiando nas Gruas.
A pureza da sua personagem Milene põe a nu a ambição de um pensamento com reminiscências do Estado Novo. O seu destino denuncia também o racismo enraizado na sociedade portuguesa. Filme inspirado num romance de Lídia Jorge, a ação leva-nos a Tavira no final dos anos 90. Uma jovem perde a avó com quem vivia numa casa gigantesca, fica sozinha, a família aristocrata e distante não consegue resgatá-la nem do luto nem da solidão.
É numa família africana, entre mornas e conversas, que Milene vai encontrar um rumo nos dias em que anda à deriva. A sua avó tinha dado guarida àquela família numa fábrica, por um valor simbólico.

Milene gagueja, tem uma sensibilidade fora do comum, pode estar perto do autismo, "ela está muito bem escrita no livro, o trabalho da personagem no fundo já estava feito, e eu só precisava de trazer a personagem para o chão", diz-nos. O que fez para que tal fosse possível?
"Não se sabe nunca o que diferencia a Milene das outras pessoas e isso não é importante, ela é uma lufada de ar fresco, uma mulher em processo de emancipação".

Uma semana antes da sessão fotográfica que acompanha esta entrevista, conversámos com Rita no Bar/Livraria Casa do Comum, no Bairro Alto.
Sozinha à nossa frente está rodeada de posters, livros e movéis antigos. O ambiente recorda-nos uma cidade de há dez anos, onde ainda não se falava de gentrificação ou de lisboetas infelizes sufocados pelos preços das casas, expulsos com tanta frequência que se tornou um hábito.


A Arte consegue expor esquemas de preconceito? – Perguntamos.
"Sim, tem várias funções, várias riquezas, e uma delas é a de nos encontrarmos e de sermos capazes de ver outras realidades, de sermos capazes de nos pôr no lugar do outro, de gerarmos empatia...E, ao contrário de nós, a Arte é eterna, fica e é História", diz-nos Rita.
"Eu não vivi o 25 de Abril, mas sei que ele existiu, não só porque os meus pais me contaram, mas porque a Arte me conta." E bate com o pulso três vezes na mesa de madeira à sua frente, "se calhar ainda vamos viver coisas muito más, isto tudo são ciclos e outras gerações virão e poderão ver o que aconteceu através da Arte, eu tenho sempre esperança que ela nos possa trazer um lugar de empatia." O Vento Assobiando nas Gruas ecoa estranhamente com o período de campanha eleitoral para as próximas legislativas, vivido no último mês pelos portugueses.
Um discurso ficcionado por alguns políticos associa os imigrantes a viver em Portugal a uma ideia de perigo. Uma retórica ameaçadora tomou conta das campanhas eleitorais dos partidos de direita. A presença do cantor Dino D’Santiago em algumas cenas do filme (e na banda sonora) traz-nos de volta à tal "Nova Lisboa" utópica cantada por ele em tempos, essa canção tornou-se um hino para uma geração que acredita no futuro de um país multicultural, uma geração que o celebra e aceita. "São ciclos, isto tem muito a ver com a memória, a minha geração não viveu a ditadura, não sabe o que isso é (...) estamos em 2024 ainda a conhecer histórias iguais à do filme que se passa nos anos 90, portanto, olha...", Rita suspira.
No filme, é a comunidade africana que a salva. "A Milene, até conhecer as pessoas daquela fábrica, não sabia o que era pertencer, ela não sabia como se comportar, ela é um corpo estranho para os tios dela (...) Agora estamos prestes a ter eleições, o perigo está à espreita, há ameaças e há ódio contra pessoas que são de culturas diferentes. É importante que os filmes, o teatro ou a literatura continuem a dar exemplos de indivíduos que vêm de um lugar diferente. É a diversidade que nos enriquece".
Rita diz ter um estranho fascínio por personagens que estão sozinhas no cinema, diz-nos isso quando a lembramos que o filme é transportado sobretudo por ela.

Está em quase todas as cenas, muitas vezes sozinha, "a solidão é das coisas que mais me atrai nos filmes, não é algo que consiga descodificar ainda, talvez seja assim que eu nos veja a todos nós." Faz uma pausa e perguntamos: ‘sozinhos? Estamos sempre sozinhos?’ "Quando vejo a Jeanne Dielman (1976) de Chantal Akerman ou o Paris, Texas (1984) de Wim Wenders, olho para aquelas personagens e não quero acompanhar mais nada, essa ideia de olhar para alguém sozinho e de o/a conhecer através das suas ações tanto me faz lembrar a minha avó, como me faz lembrar a História que eu não vi." Todos os corpos contam histórias e para encontrar esta sua personagem, Milene, Rita filmou-se sozinha.
Ficava no espaço a viver como ela, pensou em endireitar as costas como se tivesse tido aulas de boas maneiras, "e o ritmo da personagem veio num processo natural, foi como se o corpo fosse aprendendo quem ela era."
Nos últimos anos têm sido muitos os papéis secundários que tem interpretado no pequeno e no grande ecrã, no cinema de Sérgio Tréfaut e Marco Martins ou na série da Netflix Glória, o seu rosto deixa sempre um rasto no ecrã, vontade de mais. Desta vez é protagonista, algum peso na ascensão? "Senti só responsabilidade, porque são temas que requerem bastante cuidado ao serem contados, esta questão do racismo é um exemplo."
Estava no liceu em Carcavelos, na linha de Cascais, quando começou a ter aulas de teatro extracurriculares. Em plena adolescência, Rita não tem recordações de ir ao teatro (para além das aulas) até a sua mãe encontrar numa revista um anúncio para a Escola Profissional de Cascais (EPTC). "Acho que teria ido para Humanidades se não tivesse tentado ir às audições como a minha mãe me disse para fazer." O zelo parental salvou-a de se perder num percurso de enganos.

A ideia de que as obras artísticas podem iluminar o percurso de jovens, Rita reforça-a.
"A nossa educação precisa de ser reformulada, acredito que os clássicos têm de continuar a ser estudados e conhecidos, mas é estranho que as crianças de hoje estudem as obras que se estudavam há 50 anos, podem continuar a fazê-lo, mas podiam ler também As Novas Cartas Portuguesas que mesmo assim são textos dos anos 70... ou outras coisas, estudar a obra de pessoas como Kae Tempest [artista, performer e poeta], são exemplos de percursos que poderiam aproximar os jovens à realidade."
A sua primeira vez em palco foi por volta de 2008, num exercício da EPTC enquanto fazia o Auto das Regateiras de Lisboa, teve um ataque de pânico e uma sensação magnífica num momento quase logo a seguir - "entrei, houve o impacto do público e as reações daquilo ser tão bem recebido, e eu fiquei com um ego do tamanho desta sala e para além disso foi muito revelador" (pausa)."Eu na altura não sabia o que era a responsabilidade de fazer teatro, aquilo era unicamente o prazer de fazer teatro... mas com aquela idade parece-me que era legítimo."
Rita para de falar e fica a sorrir como se estivesse a viver uma recordação desse momento. "As aulas na EPTC para mim foram muito importantes porque me deram um espírito de sacrifício e maturidade que eu nunca antes tinha tido, sei que foi ali que me fui fazendo adulta. Passei do ‘não sei bem o que quero fazer’, até a minha mãe me dar aquela revista, para ‘é só isto que quero para toda a minha vida’. Foi sorte."

Segue-se um percurso de espetáculos no TEC dirigidos por Carlos Avilez, onde fez sobretudo textos de reportório, Shakespeare, Tennessee Williams ou Arthur Miller.
Mais tarde, com Luís Miguel Cintra diz começar a perceber o quanto uma obra teatral pode servir como divisa de reflexão, "o trabalho do texto no Teatro da Cornucópia, na análise e na pesquisa, fez-me perceber as repercussões que um texto teatral pode ter no mundo, foi ali que ganhei uma consciência política e comecei a pensar em quem eu era enquanto mulher e atriz...Tinha talvez uns 18 anos, antes disso talvez fosse cedo demais."
Ao sair do Conservatório, fundou com alguns colegas a companhia Teatro da Cidade, tentou assim manter vivos alguns dos ensinamentos da sua passagem pela Cornucópia, companhia teatral entretanto extinta.
Há algo no seu olhar, na sua presença felina, que a colou a um sem fim de personagens dramáticos ou trágicos, isso aconteceu logo? Como se colou o drama ao seu corpo? Rita ri-se, "sim calharam-me bastantes papéis trágicos logo no TEC, e se calhar por isso é que me dá tanto prazer fazer comédias, quando fiz a peça A Estupidez encenada pelo João Pedro Mamede nos Artistas Unidos foi uma lufada de ar fresco." Com esta peça recebeu o prémio de melhor atriz em teatro da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) e o Globo de Ouro da SIC na mesma categoria.
Num discurso de agradecimento disse não sentir grande alento para festejar por ser desconsoladora e perigosa a desconsideração dada à comunidade artística.

Perguntamos-lhe como vive a precariedade da profissão e a desistência de alguns colegas dos percursos artísticos respetivos. Os atores querem mesmo saber uns dos outros? Estas desistências têm a ver com um percurso que se traça sozinho?
"Não sei se sei responder a isso. Esta é uma profissão muito cruel e muito difícil, onde não há mercado para toda a gente e muitas vezes nós perdemos a escuta, perdemos a atenção porque as coisas acontecem muito rápido. O trabalho é pouco e quando existe fica-se imerso nele e perde-se a capacidade de ver o que realmente importa. Só quando acontece uma tragédia é que paramos." Rita pensa nas palavras. "E sim, eu vi muitos colegas meus a não terem oportunidades ou espaço e tenho a certeza que não foi por falta de qualidade, foi porque o mercado foi demasiado duro e injusto com eles...E o mercado está cheio de balizas normativas que dizem estar a trabalhar sobre a realidade, mas não o estão a fazer realmente, porque se o fizessem isto tudo seria de uma diversidade imensa. E não é isso que acontece."
Estamos na sessão fotográfica, Rita permanece concentrada. Faz algumas perguntas, diz nunca ter participado em nenhuma produção de moda. Olha para as roupas expostas nos charriots com curiosidade, pede depois instruções ao fotógrafo.
Rapidamente os seus movimentos sugerem uma coreografia. Percebe as poses sugeridas, liga-as com gestos em movimentos contínuos. O seu corpo procura naturalmente a luz e os movimentos seguem uma lógica. É como uma performance. Não sabemos em que pensa. Lembramo-nos então de algo que nos disse sobre a escuta entre o público e os atores, quando se faz teatro. "Há momentos em que estás em palco, está tudo em silêncio, não vês ninguém, mas sentes que aqueles corpos... Estão contigo."

Na sessão fotográfica a presença de Rita levou-nos para uma ficção, não percebemos como, o tempo ficou suspenso e ficámos só a olhar para ela.
O Vento Assobiando nas Gruas está em exibição nos cinemas
Créditos
Fotografia: Luís Fonseca @luismigueldcf
Styling: Maria Nobre @noble__mary
Maquilhagem e Cabelos : Daisy Marques @daisymakeups
Assistente fotografia: Cristina Andrade @criscrisuh
Look 1
Tank top e calças - stylist own
Stilettos - Luis Onofre
Look 2
Blazer - Alves Gonçalves
Calças e anel dourado - stylist own
Anel prateado - Hermès
