Ghosting, a arte do não compromisso (ou as regras modernas para brincar ao amor)

"Fazer ghosting, que é uma forma de tortura silenciosa, diz mais sobre quem a exerce do que sobre as suas vítimas."

Foto: IMDb
17 de novembro de 2020 às 07:00 Patrícia Barnabé

Numa era de redes sociais e aplicações para encontros, o amor tornou-se num lugar mais banal e confuso. Desconfio sempre dos que dizem que dantes é que era, esquecendo que a memória é seletiva e prega partidas, mas nem tudo o que é novo é bom só porque é novo. Às vezes perdem-se coisas pelo caminho. A vida online, por exemplo, tornou-se de tal forma obrigatória, rápida e impositiva que se esqueceu que a maioria do mundo nasceu antes dos anos 80. O tempo também devia servir as pessoas.

O primeiro prémio para o pior da modernidade é o ghosting, isto é, o abandono inesperado de uma conversa, combinação, vida, sem dar explicações. Puff! E, como se foge de um lugar do crime, a velocidade é sempre maior à saída do que à chegada. O toca e foge, que não tem qualquer interesse, passou a fazer parte de muitas equações. Dantes gerava escândalo e ódios de morte, pelo menos espanto e na melhor das hipóteses os amigos tomavam o nosso partido, e as nossas dores. Hoje encolhem-nos os ombros. Ainda mais se o assunto for amor e fores rapariga hétero: os romances são bons balões de ensaio para todo o tipo de patifarias, e os rapazes, já se sabe. Nos tempos modernos, já nem tem género, ou seja, piorou, porque os maus exemplos aprenderam-se depressa.

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O ghosting irrita-me sempre, e julgo que assim sempre será, e mesmo quando não é comigo. É vulgar e rasteiro: o que pode levar uma pessoa a deixar outra sem aviso? Cobardia? Egoísmo? Imaturidade? Não há desculpa que cole, nem a superficialidade dos tempos modernos. Nada justifica o abandono gratuito do outro diminuindo-o ao ponto de não ser merecedor de uma palavra. Nem a possibilidade de a devolver. O ghosting é um golpe baixo e cruel, e o pior é que nunca foi tão popular e aceite. E se te queixas estás armado em maricas, ou seja, ainda se arma em herói depois. Sou só eu ou isto soa a palermice de liceu?

O mais desconcertante para mim é o ghosting dos amigos. Caramba, o amor dos amigos é muito mais livre, mas todos já tivemos amigas que nos trocaram por um namorado. Faz sentido nos primeiros tempos? Claro, paixão e loucura. Mas e depois? Depois voltam quando se zangam ou se separam. Nos rapazes, o clássico é abandonarem-te quando arranjam uma namorada espaçosa ou controladora que não "deixam" o namorado ter amigas. São muitas ainda – e eles deixam, os bananas. Aceito melhor quando a razão são os filhos, embora tenha bons amigos que nunca fizeram grupinho à parte. Imagino que se fique à toa quando se tem um menino nos braços, mas muitos nem percebem que começam a esquecer-se de si próprios, o que é bem pior do que se esquecerem de nós. Mas cá estaremos, ou não, quando os putos forem à sua vida.

Foto: IMDb

O ghosting também já chegou ao trabalho, inesperadamente num mundo que se torna freelancing onde a resposta e o acordo e a palavra têm de ser fundamentais e a boa educação requisito básico. Mas quantas vezes te contactam para um trabalho e nunca mais dizem nada? É muito fora. Normalmente aparece um amigo de um amigo que dá um jeito e fica com o teu trabalho, mas, mais uma vez, não custa nada avisar. Só naquela.

Não é triste mudar de ideias, triste é não ter ideias para mudar. E ‘não querer saber’ nem egoísmo é que se apresente. Todos temos direito às nossas dúvidas, até à nossa pequena dose de egoísmo, mas o ghosting é uma infra atitude que se tornou comum. Com as redes sociais, a cobardia passou a ser permitida como um hábito. Pois bem, sabemos que os corajosos são sempre menos, mas se calhar agora nota-se mais. Tudo se nota mais. O ghosting vive feliz na sociedade líquida, como descreveu Zigmunt Bauman, onde estamos todos mais acessíveis, na verdade todos mais inacessíveis, além de dispersos. É fácil inventar desculpas na net, estamos todos conectados, mas poucos estão mesmo ligados.

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O lado bom é que a Psicologia nos diz que o problema "não é meu, é teu": fazer ghosting, que é uma forma de tortura silenciosa, diz mais sobre quem a exerce do que sobre as suas vítimas. Normalmente são personalidades hesitantes e ambíguas, que evitam lidar com situações desconfortáveis, muitos têm problemas de confiança e/ou de dependência, alguns foram eles próprios rejeitados. Da mesma forma, os que acreditam em relações construídas saem mais airosamente destes embustes. Um vez um psicólogo que entrevistei disse-me uma frase que guardo comigo desde então: "O medo é o contrário do amor".

Entretanto nasceram outros termos a partir do ghosting, todos admiráveis, como o caspering, o fantasma bonzinho e honesto que diz o que sente e sai de mansinho; o hauting, quando o fantasma reaparece como uma assombração nas redes sociais, num like ou numa referência, para ver se ainda cola. O que é rodar a faca depois da facada. Também existe o ghostbusting, quando se tenta forçar o fantasma a responder. E o breadcrumbing, que é levar alguém na conversa, mas sem qualquer intenção "séria" (até sabe bem dizer isto agora); o benching, deixar a pessoa no banco, como um suplente num jogo de bola, a quem se vai lançando perfume, às vezes combina-se, às vezes desmarca-se. É um ghosting mais inconsequente, superficial e consentido. Na mesma linha, temos ainda o submarining, que é aparecer semanas depois de fazer ghosting, como se nada tivesse acontecido, a chamada grandessíssima lata. O mais básico é o sidebarring, olhar para o telefone e enviar mensagens aos amigos durante um date; o mais comum, já muitos adolescentes o fazem, é o phubbing, phone e snubbing, isto é ignorar uma pessoa ou uma conversa olhando para o telefone. Para mim tudo se resume a gente mal educada. Mas se o tivesse dito logo, não tínhamos crónica este mês. Claro que bate com esta era de individualismo narcísico, é coisa de gente sem grande interesse ou empatia, mas se pensarmos bem é só infantilóide. É nestas alturas que gosto de ser velha guarda, uma romântica nascida nos sexy anos 70 para quem o sexo, paixão e amor são crescendos para viver ao vivo e a cores, em encontros reais e sem apps, de preferência com o vinho e as canções certas e abandonando o telefone horas e horas a fio.

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