Era domingo e havia cozido à portuguesa na tasca perto de minha casa. Por norma, costumo dar-me a esses prazeres, sou feliz a lambuzar-me com uma travessa de cozido à portuguesa sozinha. Ninguém diria ao observar os meus míseros 50 quilos, pesada calçada e com casaco, mas gosto da arte de bem comer. Porém, não gosto de comer por necessidade, isso aborrece-me. O conceito de ter fome e necessitar de me alimentar difere do conceito de bem comer. Isto é, nem sempre consigo desfrutar do prazer de ter uma boa refeição. Às vezes, tenho de me alimentar com uma sandes reles, um pastel de bacalhau insípido. O maravilhoso desta necessidade de alimento surge quando, inesperadamente, comemos algo que nos surpreende. A última vez que isso me aconteceu foi com uma queijadinha de laranja pela qual não dava grande coisa. Porém, trinquei e fui levada aos céus, essa queijadinha de laranja tinha alcançado o estatuto de "melhor coisa que comi nos últimos tempos". Desejei ter alguém com quem partilhá-la. Alguém a quem pudesse dizer "tens de provar isto!". Esse é um dos infortúnios dos solteiros. Tendem a viver muitos prazeres que se esmorecem ali. Passado o momento, caem no esquecimento, no vácuo da existência.
Mas voltando ao tema sobre o qual escrevo, era domingo e na missão de encontrar o amor, aquele pelo qual as pessoas escrevem canções e livros desde que há registo, decidi alterar a minha logística de dates. Novo ano, nova roupagem na vida amorosa. Em vez de embarcar num jantar regado a vinho que – se tudo corresse bem e mesmo não correndo -, acabaria comigo a desviar as cuecas à entrada do prédio, ofegante por um toque atrevido, optei por investir na arte de ser bem-comportada – aliando-a à arte de bem comer. "O que achas de almoçarmos um cozidinho no domingo? Conheço um sítio!", sugeri ao novo contactozinho que prontamente aceitou. E dei-me por feliz por desta vez ter alguém com quem compartilhar o meu regozijo.
Como disse, era domingo. Preparei-me com recato. Antes fui à missa, invocando a vontade de ser ajuizada. Terminado o sermão dirigi-me ao restaurante. Ele esperava por mim quando cheguei. Sentado na esplanada fazia proveito do bom tempo de fevereiro, uma coisa assustadora, mas apetecível. Estávamos em pleno inverno e eu usava uma saia preta fluida sem collants. Quando me sentei à mesa, o tecido dançando sobre a pele das minhas coxas ligeiramente arrepiadas, desviou-me a mente para o sexo. Sempre o sexo, esse desejo que me desencaminha o juízo. O empregado chegou e pedimos o cozido à portuguesa para ambos. Era domingo, a esplanada estava cheia, o meu date era bonito e bem cheiroso. No entanto, durante todo o almoço ficámos atentamente a ouvir um homem desabafar com uma amiga sobre como os últimos dois anos, desde que a filha nasceu, foram os mais miseráveis da sua vida. Falava alto e de forma desesperada, desculpava-se muito, mas nunca se calou.
A relação com a mulher acabou, o único momento feliz que recordava foi o dia em que as levou para casa. A partir daí, a vida tal como conhecia terminou para dar lugar a uma nova onde tudo gira em torno da bebé e é um inferno. Comentava que todas as pessoas lhe diziam que ia melhorar, "mas vai melhorar quando?", questionava. E sentia-se culpado, porque devia estar feliz, tem uma filha, mas está tristíssimo. Não lê um livro, não vê um filme, não tem um momento para si, não tem sexo, nada que realmente o preencha. Deixou-se consumir por essa filha e por uma relação que se tornou de ocasião, onde já não existe cumplicidade que não passe pela metódica troca de fraldas. "Mudas tu ou mudo eu?". Entre lamúrias, eu e o meu date, lá íamos trocando algumas palavras. "Está bom o cozido". "Está, está". Mas não conseguíamos afastar o ouvido da mesa do lado, ofegantes não um pelo outro, mas por mais pormenores desta vida que ambos, se calhar, não ambicionamos assim tanto. Não sei o que lhe passava pela cabeça, a mim ocorria-me a falta de interesse por estes temas. Não me imagino do outro lado, a ter este tipo de conversas banais, a falar sobre cocós e ranhos, mudas de fralda ao almoço. É uma dúvida que carrego: se não falamos sobre o cocó dos adultos, não entendo porque as pessoas teimam em falar sobre o cocó das crianças, porque se perdem em banalidades sem interesse intelectual nenhum. Serei sempre a pessoa que se levanta quando a conversa entra neste registo, porém, ali, tive de permanecer sentada. Pior, sentada e confrontada com a rotina, o tédio, a mesmice daquilo que, supostamente, ambiciono.
Era domingo, estava um dia de sol maravilhoso em fevereiro, eu estava num date e ocorreu-me que, se calhar, talvez fosse "incasável"- não estou certa de que o conceito exista, talvez o tenha criado ali enquanto ouvia um homem queixar-se sobre a vida comum que levava com uma mulher que se tornara banal. Tenho lido muitos livros escritos por mulheres sobre relações e conclui que existem dois tipos de mulheres: as mulheres como eu, que apreciam o sexo, que transpiram coito, que são desejadas e desejam, por norma, estão solteiras ou divorciadas, e as outras, as que se casam e têm relacionamentos aborrecidos, vivem vidas copiadas e rotineiras, mas permanecem nos casamentos. Mulheres como eu não parecem transmitir confiança para assegurar o matrimónio, nem a maternidade, não é suposto uma mulher casada gostar de sexo. É suposto negá-lo, ter dores de cabeça, estar cansada, ocupada com os filhos, usá-lo como ferramenta de poder sobre o marido. No entanto, parece ser isso que os homens procuram. É quase um desnexo, mas foi assim durante anos, porquê mudar agora? "Então e o trabalho? Vai bem?", perguntou ele. "Sim, podiam pagar melhor, mas sabes como é", respondia eu e voltava para o tormento que, entretanto, se tinha gerado na minha própria cabeça.
No livro O Amante, Marguerite Duras escreve algo que o homem mais velho que se apaixona por ela lhe declara depois de fazerem amor pela primeira vez. Ela tinha 15 anos. "Diz que soube logo, desde a travessia do rio, que eu seria assim com o meu primeiro amante, que amaria o amor, diz que sabe já que o hei de enganar e também que hei de enganar todos os homens com quem virei a estar." O meu disse-me que não precisava de lhe ter mentido, que lhe poderia ter dito que já não era virgem. É quase como se, à nascença, houvesse de imediato uma marca, um sinal, que separa as putas das virtuosas. E por muito que desejem as putas, as mulheres livres e que emanem sexualidade, acabam sempre por ficar com as púdicas. Preferem viver no aborrecimento, na insatisfação, a ter bravura para lidar com as outras. Isto é um tamanho cliché. Os homens não gostam das mulheres pelas quais se sentem loucamente apaixonados, não gostam das mulheres pelas quais sentem desejo sexual, desconfiam dessas mulheres ou desses sentimentos como se não pudesse existir um amor sossegado onde existe um fogo que teima em arder. Preferem a segurança das outras, que possuem uma chama amena, e da qual se queixam enquanto almoçam com uma velha amiga ao domingo. "E que belo que está o dia hoje, já viste?", comentava ele. "Pois, é das alterações climatéricas", dizia eu, desejando que a conversa fosse curta para continuar compenetrada na mesa do vizinho e nos meus próprios pensamentos.
Era domingo, eu estava num date, focada em ouvir a miséria da vida alheia. Se, ao início, o tecido fresco da saia a roçar-me na pele nua me excitava, agora, não me provocava nada. A minha vulva ressecava perante as incongruências da vida. Matrimónio não tem de ser sinónimo de amor carnal, é certo - e largos anos de história confirmam isso. Nem o contrário, o amor romântico não tem de atingir o seu auge no matrimónio, mas todo aquele discurso sofrido sobre as relações estava a conspurcar o meu encontro bem-comportado de domingo. Só a arte de bem comer permanecia intacta, cada um, comendo a sua dose de cozido, trocando olhares e sorrisos tímidos, cúmplices, mas desconfortáveis com a situação.Eis quando ouço o último queixume. Da mesa ao lado, o lamuriador dizia-se desempregado há quase dois anos, a falta de tempo era relativa, talvez fosse mais uma questão de falta de boa ocupação do mesmo, falta de propósito de vida. Tive uma epifania. Dei uma gargalhada por dentro. Uma hora de choradeira para concluir que se tratava de um idiota conformista, incapaz de assumir a sua responsabilidade na situação. Não tem sexo, nem paixões na vida, porque está depressivo e nenhuma mulher se interessaria por alguém assim. Não porque foi pai, não porque a relação caiu na rotina, mas porque ele sim, se perdeu. Voltei mentalmente para o meu date. "Dividimos um doce da casa?", sugeri. Cada um comeu da sua metade, colheradas contidas e sem invasões de território alheio. O nosso vizinho pedira um queijo e continuava com a lamúria. "Próximo domingo repetimos?". Acenei com a cabeça que sim, enquanto lambia o que restava de nata na colher. "Mas pedimos takeaway e comemos em minha casa, não vá o diabo tecê-las". Pisquei o olho. Ele riu-se. Ao sair da esplanada, uma aragem entrou-me pela saia e foi como um sopro de vida. O bom-comportamento não será para mim. Há um inconformismo que me assola. Virei-me e perguntei: "E se fossemos beber um copo?".