Não me admira nada que a taxa de natalidade tenha baixado e que continue a baixar. Não me admira mesmo nada. Como não me espanta que em duas décadas tenha triplicado em Portugal o número de mulheres que não querem ter filhos.
Não me apanha de surpresa porque se no tempo em que os meus ovários estavam a carburar tivesse sido confrontada com a interminável lista das supostas qualidades maternais exigidas para o cargo, somadas às condições económicas necessárias para levar o “projeto” a bom termo, teria fechado a loja, antes de a abrir.
(Francisco, Ana e Madalena, meus queridos filhos, vocês teriam ficado indefinidamente sentados no banco corrido onde vos imagino à minha espera, porque não concebo que alguma vez não tenham existido e ainda menos que tivessem escolhido outra mãe).
É claro que os preços das casas e das escolas estão demasiado altos, os salários demasiado baixos e o caos dos transportes e da saúde não ajudam, mas que ninguém se iluda, há razões mais profundas. Medos que cresceram exponencialmente à medida que fomos insuflando a ideia de que as crianças sofrem (e muito) se não tiverem pais perfeitos. Se, sobretudo as mães — sempre as mães! — não estiverem suficientemente instruídas e preparadas, se não forem suficientemente dedicadas e altruístas e dispostas a sacrificar literalmente tudo.
Deixámos para trás o mote de que “tudo se cria”, em que basicamente as crianças iam andado a reboque dos adultos, integrando-se progressivamente na vida dos pais, adaptando-se como podiam, substituindo-o por uma realidade absolutamente centrada nelas. Passámos a encará-las como gente com direitos próprios, e a infância como um período sensível que deixa marcas para a vida, e se isso foi uma coisa indiscutivelmente boa, o pêndulo arrisca-se a ter oscilado para o outro lado, transformando a parentalidade numa missão impossível, que exige quatro doutoramentos e uma dedicação a 100 por cento, sem garantias de sucesso. Afinal, de que outra forma podemos alimentar a criança da forma mais equilibrada, estimular o bebé para o período de desenvolvimento neuronal em que se encontra, criar padrões de sono que potenciem a sua aprendizagem, sustentar a sua criatividade e o seu potencial, respeitando as suas diferenças, preparando-a para o futuro, que por acaso não fazemos a menor ideia qual será? Como a podemos proteger de tudo e mais alguma coisa, num mundo onde acreditamos que os predadores já não estão só a cada esquina e, claro, nos parques infantis e nas más companhias, mas dentro de casa, dentro do quarto, escondidos atrás de perfis falsos e de outras mil armadilhas. Ui, e sem uma pós-graduação como é que uma mãe cria a capaz de aguentar o peso das comparações, do juízo alheio, que se sempre esteve pronto a apontar o dedo, mas que agora subiu a parada nas redes sociais, nos jornais, nas queixas...
Diga-me lá quem, na plena posse das suas faculdades, subscreve este contrato, sobretudo quando já assinou um igualmente exigente na empresa em que trabalha, e onde esperam uma dedicação exclusiva e sem interregnos, ao ponto de financiarem que congele os óvulos para uso posterior (de preferência para a reforma).
Falando muito a sério, para alguém de uma geração que conquistou o direito a conciliar família e carreira, é mesmo muito preocupante ouvir pregar que, basicamente, as mulheres devem escolher uma “profissão” ou a outra. A serem pressionadas com um discurso que basicamente lhes diz que o lugar das mães é no lar, a gerar e educar os filhos, que só lhes pode dar vontade de fugir, antes que lhes cortem as asas.
E é tão estúpido. Porque apesar de todos os erros, apesar de nem sempre termos dedicado aos nossos filhos a atenção de que precisavam, apesar da impaciência gerada pelo cansaço, fomos boas mães e, profissionalmente, não só chegamos muito longe, como, e mais importante, sentimo-nos profundamente realizadas. Sendo assim, que sentido faz que as nossas filhas e netas imaginem que não podem ter o melhor dos dois mundos, ainda para mais agora que – vitória! – os pais estão muito mais presentes e envolvidos no cuidado das crianças do que até aqui?
A sério, fico enraivecida quando penso que esta “ideologia da parentalidade” pode estar a privar mulheres de conhecerem a felicidade de ser mães. Apetece-me andar por aí com um megafone a gritar que estão a ser enganadas, mas em vez disso, dou por mim a procurar na estante o Le Conflit – La Femme et la Mére da conceituada filósofa e historiadora, Élisabeth Badinter, que li avidamente em 2010, quando foi publicado em França. Releio-o agora com outros olhos, e sorrio quando penso na horde de haters que atrairia nas redes sociais, com o que escreveu sobre o que considera ser a propaganda a favor do “natural” — o parto natural, o contacto pele com pele como essencial para a vinculação, a amamentação prolongada com a exclusão do leite artificial, o co-sleeping, e por aí adiante. Não fala ao calhas: analisa detalhadamente os estudos que fundamentam estas opções, acusando muitos deles de não serem científicos, explica que o “naturalismo” é uma corrente filosófica e não uma verdade absoluta, e contesta o revivalismo do “instinto maternal” como sendo exclusivamente feminino — considera, aliás, que criaram terreno propício para a desconfiança nas substâncias ditas “não-naturais”, como a epidural, as vacinas, o leite artificial. Defende, também, que o facto de algumas coisas fazerem parte do nosso equipamento de base não significa que nos devemos submeter a elas ou mesmo encorajá-las, já que o grande sucesso da humanidade é, exatamente, saber usar a cabeça para procurar as melhores soluções.
Badinter não pretende dissuadir as mulheres que se sentem bem com estes modelos, que sejam muito felizes, é tudo o que lhes tem a dizer. As mulheres que a preocupam, e a quem dirige o livro, são as que sentem permanentemente em conflito entre serem mães ultra-zelotas, obsessivamente dedicadas à maternidade, e o desejo de manterem a sua carreira, os seus outros interesses, uma outra vida. Essas, diz a historiadora, vivem atormentadas por culpas absurdas, que oprimem aliás as mulheres que não desejam amamentar, que tiveram um parto complicado e não puderam segurar o bebé acabado de nascer, as que passaram por uma cesariana em vez de um parto natural, as que não têm paciência para brincar indefinidamente com os seus filhos, e que são rotuladas (e se auto-rotulam) como aberrações. Recorda, ainda, que quando se considera que os filhos são assunto de mulheres, volta-se a empurrar o pai para longe do cuidado dos filhos e da partilha de tarefas em casa.
Decididamente, quinze anos depois e num tempo em que Donald Trump considera a proposta de instituir uma “Medalha Nacional da Maternidade” destinada às mães que tenham seis ou mais filhos, todas nós fazíamos bem em estar atentas.