Amamentação. "Há mães que abdicam da licença para manter o seu posto de trabalho. Eu sei porque fui uma delas"
Carolina Almeida, fundadora do maior site de alimentação infantil em Portugal, Comida de Bebé, conta à Máxima a experiência que viveu no âmbito laboral durante a sua licença de amamentação. O testemunho chega numa altura em que o governo está a propor uma alteração no Código de Trabalho que pode impactar os direitos das mães.

Na última semana, assistimos a uma onda de comentários e indignação em torno das declarações da Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, que anunciou a intenção de investigar casos de mães que prolongam a licença de amamentação para além dos dois anos. O tema rapidamente ganhou eco nos media e nas redes sociais, com o foco colocado na possibilidade de abuso de um direito previsto por lei. No entanto, esta discussão diz muito mais sobre o país que somos do que sobre qualquer eventual abuso.
Comecemos pelos factos. A licença de amamentação permite às mães que trabalham por conta de outrem ausentarem-se do trabalho até duas horas por dia para amamentar ou alimentar os seus filhos enquanto estes estiverem a ser amamentados. Este direito é reconhecido até aos doze meses de idade do bebé, sem necessidade de atestado médico. Após essa idade, a sua continuação depende de comprovação médica da manutenção da amamentação. É um direito que existe para proteger a saúde da criança e da mãe, em linha com as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), que defende a amamentação até, pelo menos, os dois anos.
A pergunta que se impõe é: quantas mães em Portugal continuam a amamentar os filhos depois dos dois anos? Dados recentes do Childhood Obesity Surveillance Initiative (2022) mostram que apenas 16% dos bebés continuam a ser amamentados após os 12 meses e este número cai para os 5,7% para crianças com mais de 24 meses. Não sabemos quantas dessas mulheres continuam a usar a licença de amamentação. Mas parece que estamos a falar de uma minoria estatisticamente irrelevante da população ativa.
Manter a amamentação para além dos dois anos exige condições excecionais — físicas, emocionais, profissionais e sociais — que estão longe de estar ao alcance da maioria das mulheres. Requer disponibilidade, apoio e um contexto que permita dar continuidade a essa escolha. Ainda assim, é essa minoria quase residual que parece concentrar agora a atenção do governo. A suposição de que há mães a prolongar a amamentação apenas para beneficiar de uma redução no horário de trabalho revela um profundo desconhecimento da realidade vivida por estas famílias e dos desafios que enfrentam diariamente.
O que acontece, com muito mais frequência, é o oposto: mães que, mesmo tendo direito às duas horas, abdicam delas para conseguir cumprir horários ou manter o seu posto de trabalho, em contextos laborais muitas vezes hostis à parentalidade. Eu sei, porque fui uma delas. E porque, entre as mais de 90 mil pessoas que seguem a minha página, conheço centenas de mulheres que fizeram o mesmo. A amamentação prolongada, longe de ser um privilégio, é muitas vezes um ato de resistência.
Por isso, a verdadeira questão é: por que motivo, num país onde as mulheres continuam a ganhar menos, a acumular mais responsabilidades de cuidados e a estar mais expostas à precariedade, se escolhe investir recursos públicos e atenção mediática em fiscalizar esta pequena fração da população? Não estaremos, uma vez mais, a apontar o dedo às mulheres em vez de resolver os problemas estruturais?
Há tanto por fazer. Portugal continua a ser um dos países europeus com piores taxas de natalidade e uma das piores respostas de apoio à parentalidade. A licença parental é ainda curta para os padrões nórdicos - e inferior aos 6 meses de amamentação exclusiva recomendado pela OMS -, o acesso a creches públicas ou comparticipadas está longe de ser universal, e faltam políticas robustas de apoio à conciliação entre vida familiar e profissional. Um exemplo evidente dessa falta de conciliação é o facto de o horário das escolas públicas não ser compatível com o horário de trabalho da maioria das famílias.
É esse o debate que devíamos estar a ter: como incentivar a amamentação e apoiar as mulheres que optam por ela. Como apoiar verdadeiramente as famílias. Como melhorar as condições de trabalho dos pais de crianças pequenas. Como garantir acesso a creches públicas. Como fazem países como a Suécia ou a Dinamarca, onde os períodos de licença parental são mais longos, mais bem pagos e muitas vezes partilhados entre os dois progenitores, promovendo uma verdadeira igualdade de género.
Em vez disso, preferimos gastar tempo e energia a fiscalizar mães que, contra todas as dificuldades, continuam a amamentar. Esta inversão de prioridades revela uma desconfiança estrutural em relação às mulheres – como se, num sistema em que tudo joga contra elas, ainda fosse necessário policiar os seus poucos direitos.
A mensagem que se passa é clara: neste país, desconfiamos das mulheres. E isso, para além de injusto, é perigoso. Um país que não apoia as suas famílias, que não confia nas suas mulheres, que não protege os seus bebés, é um país que está a falhar com o futuro.

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