Cristina Ferreira: o que dizemos quando dizemos “pôs-se a jeito”

Um homem que decidiu desferir 150 facadas, um feminicídio, um programa de entretenimento e uma frase repetida para meter medo. Assim vai o corpo de uma mulher. Opinião de Catarina Moura.

Foto: IMDB: "Malèna"
04 de junho de 2025 às 13:34 Catarina Moura

Há uma semana um homem esfaqueou 150 vezes uma mulher num parque de estacionamento. Ocorre-lhe uma razão que possa justificar ? Imagina uma circunstância em que seja razoável um homem decidir cometer este crime? Uma semana após esta atrocidade, falamos do assunto porque, sobre ela, Cristina Ferreira usou a expressão mil vezes repetida quando se fala de violência física e sexual contra as mulheres: “pôs-se a jeito”.

Depois da frase dar a volta às redes sociais, a apresentadora comentou o tema nas estórias do seu perfil de Instagram: acusou quem se manifestou contra o uso desta expressão de “estimular o discurso de ódio” ao descontextualizar uma frase sua. Este foi o contexto: num segmento dedicado a comentar crimes no programa de entretenimento Dois às 10, falava-se do assassinato de uma mulher pelo ex-companheiro. “Nós daqui a pouco já vamos ao caso da mulher que foi agredida 150 vezes no parque de estacionamento — sabemos agora que tinha conhecido essa pessoa e trocou mensagens no Tinder. Nós temos mesmo de avisar as pessoas de que hoje em dia é muito complicado… mesmo relações que possam ter sido de amor, do que quer se seja, quando já entram aqui nesta fase de perseguição, de algum controlo, é preciso a polícia estar avisada, os familiares estarem avisados. Eu não sei se esta mulher depois do baile entrou no carro com ele e aí é que se calhar se pôs a jeito para que isto acontecesse”, terminou falando da mulher assassinada, mas refletindo sobre os dois casos.

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A sua declaração por extenso só muda alguma coisa se aceitarmos que há situações em que alguém possa estar a jeito de ser assassinada por um companheiro ou de levar 150 facadas — isto é, em que seja razoável alguém matar uma companheira ou desferir 150 facadas.

No dia seguinte a estas declarações, Cristina Ferreira sublinhou, no mesmo programa, que queria passar a mensagem de que “estamos a viver um tempo tão perigoso” que é preciso que as mulheres se protejam.

“Chama-se responsabilidade pelo risco”, acrescenta a advogada Sofia Matos, “se eu for a 200 na autoestrada é óbvio que eu me estou a pôr a jeito ou para matar alguém que vá calmamente com a sua família à missa ao domingo ou para ter um acidente e morrer. É uma situação clara em que eu me coloco numa situação de risco” — e assim uma vítima de esfaqueamento e um condutor negligente e potencialmente homicida são postos no mesmo saco. E siga que agora vem aí o jogo do 760.

Ao pé disto, a expressão da apresentadora parece banal. Voltaria a parecer se olhássemos com atenção para o que todos os dias é dito nos dois canais de sinal aberto quando dedicam uma meia hora (ou mais) dos seus programas de entretenimento a crimes sangrentos e chocantes. O crime agarra audiências desde os jornais do século XIX e isto é televisão privada: agarrar audiência é inegociável.

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A mensagem do programa pode ser bem intencionada, mas fortalece a conceção estabelecida de que é possível à vítima evitar o crime e, consequentemente, de que há qualquer coisa nela ou na sua ação que espoleta o crime. Se aceitarmos isto, estamos a aceitar que a ação do agressor não é errada em absoluto — há circunstâncias em que pode ser enquadrada e atenuada. Sobretudo não estamos a colocar a ação onde ela tem de estar: no agressor.

Como sociedade, parecemos não ter um discurso para os agressores: resumimo-los a demónios. O discurso mediático não sabe falar sobre eles, dirigir-se a eles, para não se tornar um deles. Prefere dizer que, se aconteceu, é porque houve ocasião para isso e não porque houve um homem para isso.

Com este discurso vão-se de que uma sociedade que atenta contra a sua integridade física se resolve através do seu comportamento individual, censurado e auto-censurado; que a sua antecipação da violência — o seu medo — é a forma de escapar à violação ou ao feminicídio. E não é. Roubo as palavras de Nina Simone: “Eu digo-vos o que é liberdade para mim: não ter medo”.

É especialmente chocante que uma comunicadora de carreira como Cristina Ferreira não assuma o poder e as consequências de dizer “pôs-se a jeito”. É uma frase com uma longa história na culpabilização de vítimas mulheres. É o que se diz sobre a mulher que usou mini-saia à noite, que bebeu numa discoteca, que voltou para o marido.

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A linguagem é esta coisa caprichosa: escolher uma expressão ou outra não é indiferente. A expressão que se escolhe é sempre anterior e maior do que nós. Carrega significados além daqueles que gostaríamos de lhes dar e é a partir desse significado partilhado por todos que se dá direção ao discurso. Ao escolher usar “pôs-se a jeito" não é possível apagar todo o seu peso histórico e cultural, assume-se toda a sua carga. Uma palavra não é uma chave de fendas que se experimenta e, se não servir, se troca por outra. É mais como um martelo: cada martelada deixa uma mossa, forma uma ideia e cria o sentido das seguintes.

A linguagem informa, mas também enforma — cria os limites subtis da conversa. Denuncia o ponto de partida do nosso pensamento e enquadra a forma como o outro recebe as nossas ideias. É ingénuo pensar que dizer “pôs-se a jeito” é irrelevante e “o que conta é a intenção”.

Em cima disto, a cartada do discurso de ódio para fixar a polarização foi um uso desnecessário das estórias do Instagram. Teria sido mais útil usá-las para explicar porque é que dois canais de que é acionista passaram, num horário de grande audiência, , contrariando o que determina a lei da publicidade. Além disto, um anúncio que diaboliza um direito dolorosamente conquistado pelas mulheres portuguesas. Talvez não se sinta à vontade para o fazer, tendo sido (sendo ainda?) influenciadora da Prozis.

Tudo isto faz parte do mesmo caldo cultural em que estamos metidos que tem no corpo da mulher um dos seus campos de batalha.

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