Há
uma semana um homem esfaqueou 150 vezes uma mulher num parque de
estacionamento. Ocorre-lhe uma razão que possa justificar o ato deste homem?
Imagina uma circunstância em que seja razoável um homem decidir cometer este
crime? Uma semana após esta atrocidade, falamos do assunto porque, sobre ela, Cristina Ferreira usou a expressão mil vezes repetida quando se fala de
violência física e sexual contra as mulheres: “pôs-se a jeito”.
Depois
da frase dar a volta às redes sociais, a apresentadora comentou o tema nas
estórias do seu perfil de Instagram: acusou quem se manifestou contra o uso
desta expressão de “estimular o discurso de ódio” ao descontextualizar uma
frase sua. Este foi o contexto: num
segmento dedicado a comentar crimes no programa de entretenimento Dois às 10,
falava-se do assassinato de uma mulher pelo ex-companheiro. “Nós daqui a pouco
já vamos ao caso da mulher que foi agredida 150 vezes no parque de
estacionamento — sabemos agora que tinha conhecido essa pessoa e trocou
mensagens no Tinder. Nós temos mesmo de avisar as pessoas de que hoje em dia é
muito complicado… mesmo relações que possam ter sido de amor, do que quer se
seja, quando já entram aqui nesta fase de perseguição, de algum controlo, é
preciso a polícia estar avisada, os familiares estarem avisados. Eu não sei se
esta mulher depois do baile entrou no carro com ele e aí é que se calhar se pôs
a jeito para que isto acontecesse”, terminou falando da mulher assassinada, mas
refletindo sobre os dois casos.
A
sua declaração por extenso só muda alguma coisa se aceitarmos que há situações
em que alguém possa estar a jeito de ser assassinada por um companheiro ou de
levar 150 facadas — isto é, em que seja razoável alguém matar uma companheira
ou desferir 150 facadas.
No
dia seguinte a estas declarações, Cristina Ferreira sublinhou, no mesmo
programa, que queria passar a mensagem de que “estamos a viver um tempo tão
perigoso” que é preciso que as mulheres se protejam.
“Chama-se
responsabilidade pelo risco”, acrescenta a advogada Sofia Matos, “se eu for a
200 na autoestrada é óbvio que eu me estou a pôr a jeito ou para matar alguém
que vá calmamente com a sua família à missa ao domingo ou para ter um acidente
e morrer. É uma situação clara em que eu me coloco numa situação de risco” — e
assim uma vítima de esfaqueamento e um condutor negligente e potencialmente
homicida são postos no mesmo saco. E siga que agora vem aí o jogo do 760.
Ao
pé disto, a expressão da apresentadora parece banal. Voltaria a parecer se
olhássemos com atenção para o que todos os dias é dito nos dois canais de sinal
aberto quando dedicam uma meia hora (ou mais) dos seus programas de
entretenimento a crimes sangrentos e chocantes. O crime agarra audiências desde
os jornais do século XIX e isto é televisão privada: agarrar audiência é
inegociável.
A
mensagem do programa pode ser bem intencionada, mas fortalece a conceção
estabelecida de que é possível à vítima evitar o crime e, consequentemente, de
que há qualquer coisa nela ou na sua ação que espoleta o crime. Se aceitarmos
isto, estamos a aceitar que a ação do agressor não é errada em absoluto — há
circunstâncias em que pode ser enquadrada e atenuada. Sobretudo não estamos a
colocar a ação onde ela tem de estar: no agressor.
Como
sociedade, parecemos não ter um discurso para os agressores: resumimo-los a
demónios. O discurso mediático não sabe falar sobre eles, dirigir-se a eles,
não sabe influenciar um homem para não se tornar um deles. Prefere dizer que,
se aconteceu, é porque houve ocasião para isso e não porque houve um homem para
isso.
Com
este discurso vão-se convencendo as mulheres de que uma sociedade que atenta
contra a sua integridade física se resolve através do seu comportamento
individual, censurado e auto-censurado; que a sua antecipação da violência — o
seu medo — é a forma de escapar à violação ou ao feminicídio. E não é. Roubo as
palavras de Nina Simone: “Eu digo-vos o que é liberdade para mim: não ter
medo”.
É
especialmente chocante que uma comunicadora de carreira como Cristina Ferreira
não assuma o poder e as consequências de dizer “pôs-se a jeito”. É uma frase
com uma longa história na culpabilização de vítimas mulheres. É o que se diz
sobre a mulher que usou mini-saia à noite, que bebeu numa discoteca, que voltou
para o marido.
A
linguagem é esta coisa caprichosa: escolher uma expressão ou outra não é
indiferente. A expressão que se escolhe é sempre anterior e maior do que nós.
Carrega significados além daqueles que gostaríamos de lhes dar e é a partir
desse significado partilhado por todos que se dá direção ao discurso. Ao
escolher usar “pôs-se a jeito" não é possível apagar todo o seu peso
histórico e cultural, assume-se toda a sua carga. Uma palavra não é uma chave
de fendas que se experimenta e, se não servir, se troca por outra. É mais como
um martelo: cada martelada deixa uma mossa, forma uma ideia e cria o sentido
das seguintes.
A
linguagem informa, mas também enforma — cria os limites subtis da conversa.
Denuncia o ponto de partida do nosso pensamento e enquadra a forma como o outro
recebe as nossas ideias. É ingénuo pensar que dizer “pôs-se a jeito” é
irrelevante e “o que conta é a intenção”.
Em
cima disto, a cartada do discurso de ódio para fixar a polarização foi um uso
desnecessário das estórias do Instagram. Teria sido mais útil usá-las para
explicar porque é que dois canais de que é acionista passaram, num horário de
grande audiência, um anúncio com conteúdo político ou religioso, contrariando o
que determina a lei da publicidade. Além disto, um anúncio que diaboliza um
direito dolorosamente conquistado pelas mulheres portuguesas. Talvez não se
sinta à vontade para o fazer, tendo sido (sendo ainda?) influenciadora da
Prozis.
Tudo
isto faz parte do mesmo caldo cultural em que estamos metidos que tem no corpo
da mulher um dos seus campos de batalha.