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Campanha anti-aborto: Miguel Milhão, não brincas com o meu corpo

"É gravíssimo que um homem sem útero se ache no direito de julgar qualquer mulher que o faça. É gravíssimo que os milhões de Milhão possam comprar canais de televisão, influenciar cabeças fraquinhas." Opinião de Maria João Veloso.

"Obrigado, Mãe" é o título da campanha lançada pelo fundador da Prozis
"Obrigado, Mãe" é o título da campanha lançada pelo fundador da Prozis Foto: "Obrigado, Mãe"
28 de maio de 2025 às 17:41 Maria João Veloso

“My body, my choice”, reivindicam várias meninas e mulheres no Instagram de Miguel Milhão, fundador da Prozis e autor do anúncio “Obrigado mãe!”, que foi transmitido domingo, a meio da tarde, no intervalo do jogo da final da Taça entre Benfica e Sporting, na TVI. Curiosamente, num dia em que milhares de pessoas estavam à frente de um televisor nas suas casas ou cafés. Crianças também. 

O dito vídeo mostra uma mulher fragilizada, numa maca, a ser inquirida por uma profissional de saúde que parece que vai cometer uma carnificina. No vídeo, o Estado Português é um homem vestido de preto a quem só falta a foice para personificar a morte. Os batimentos cardíacos do feto (?) intercalam com a voz de Joelisa Campos, que canta: “sou eco do impossível / depois de tanto sofrer / sou um milagre a sobreviver”. Uma letra sem nexo à qual se juntam doses abundantes de sangue nas mãos enluvadas dos atores que aceitaram vestir a pele de obstetras. É demasiado absurdo. É mesmo um horror: a estética (será discutível), o tom e a mensagem. É inadmissível este telelixo passar numa televisão de canal aberto e difundir a mensagem que cometer aborto é crime. A Entidade Reguladora da Comunicação Social já recebeu várias queixas por causa deste vídeo “antiaborto”, e muitas figuras públicas manifestaram-se nos seus campos de batalha. “Boicotem quem tenta controlar os vossos corpos”, diz Rita Ferro Rodrigues. Ou Capicua, que numa história do seu Instagram avisa que é "com o dinheiro dos consumidores de Prozis que se pagam estes anúncios”.  

Já muita tinta correu sobre a interrupção voluntária da gravidez (IVG). Em Portugal só desde 2007 é que o “Sim” ao aborto até às dez semanas de gravidez venceu o “Não”, com 59,25% dos votos. Um processo que começou em 1998, num primeiro referendo em que a despenalização do aborto foi chumbada, mas por pouco. Longos nove anos foi o que a mulher portuguesa esperou para poder interromper a gravidez num ambiente asséptico sem parecer uma criminosa a fazê-lo, em vãos de escada, nas mãos de outras mulheres sem qualificações, com utensílios enferrujados. Esta é apenas uma forma demasiado sintética de pôr o problema. A decisão de fazer um aborto é complexa. E as mulheres que passam por este episódio trazem consigo traumas associados, não é necessário que venha mais um escarafunchar a ferida.

Como descreveu na sua obra , a mulher portuguesa sempre fez abortos em condições de vida sub-humanas. Eça de Queiroz descreve-o de forma bastante realista, por exemplo, em O Crime do Padre Amaro, escrito em 1875 (há 150 anos).  Todas nós conhecemos histórias de senhoras que disseram em jeito de confissão: tive que fazer um desmancho, porque não tinha condições financeiras para ter mais filhos. A mulher pobre, claro, porque a rica e burguesa viajava com os pais ao outro lado da fronteira para fazê-lo.

 Um filho é um assunto sério. Não são os milhões de Milhão que decidirão o que vou fazer com o meu corpo, o que tu vais fazer com o teu corpo, o que nós vamos fazer com o nosso corpo. Ou decidir o que faço com a minha vida. O direito à autodeterminação do corpo da mulher era, até agora – em Portugal –, um dado adquirido, mas a julgar pelas beatas a saírem de vela em banda do túmulo, teremos que ir ao fundo de nós puxar pelas “bruxas que o lume não queimou”, como canta Capicua. Para que não nos calem, nem invadam o nosso corpo com leis que nos privam dos nossos direitos, e que não consentimos. É gravíssimo que um homem sem útero se ache no direito de julgar qualquer mulher que o faça. É gravíssimo que os milhões de Milhão possam comprar canais de televisão, influenciar cabeças fraquinhas, ou doutrinar discursos próximos do ódio. É gravíssimo que eu receba comentários de ódio, ainda que em português arcaico, por defender o direito das mulheres a fazer com os corpos delas o que quiserem. Não tememos os milhões de Milhão. Há milhares de anos que carregamos no nosso ventre a humanidade, queremos apenas escolher. A hora, o dia e o momento de fazê-lo. Ou termos as condições que só a nós nos dizem respeito de dizer: não. Não chegou a minha hora, não vou ter este filho. É isto.

Em janeiro de 2025 o parlamento português declinou as propostas de reforma da lei do aborto. O Partido Socialista e o Partido Comunista pretendiam alargar o prazo legal de dez para 12 semanas, enquanto o bloco de Esquerda e o Livre defendiam que a IVG pudesse ser feita até às 14 semanas. Do outro lado da barricada, fossem submetidas a um exame para ouvir o batimento cardíaco fetal. O mesmo que se ouve no vídeo. Só que o coração ainda não está formado.

O estivessem presentes nas consultas prévias à IVG. As propostas foram todas rejeitadas.  A Organização Mundial de Saúde pede o acesso seguro e legal ao aborto, alertando que as restrições ao mesmo podem levar as mulheres a procedimentos perigosos e mortais.

A Organização Mundial de Saúde ignora a existência de Milhão na vida de milhares de mulheres portuguesas. Espero que a sociedade civil portuguesa também. Assim seja.

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