Histórias de Amor Moderno: “Lá em casa, tínhamos uma vida normal, só que, de vez em quando, o meu pai batia na minha mãe.”
“Fui obrigada a escolher entre deixar a minha mãe sozinha com o meu pai ou permanecer em casa, sabendo que eventualmente eu podia sucumbir.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

O meu pai batia na minha mãe. Esta não é uma frase fácil de escrever, muito menos de pronunciar, mas ela precisa de ser dita porque não pode morrer comigo, dentro da minha caixa dos segredos. Não sei como são os outros contextos de violência doméstica, não faço ideia se existe um padrão, um traço comum, um comportamento expectável que se reproduz e repete de caso para caso, de casa para casa, de família para família. Acredito que cada situação tenha os seus próprios contornos e idiossincrasias.
Quando digo isto, “o meu pai batia na minha mãe”, talvez muitos imaginem uma rotina de abusos físicos, gritaria e prepotência, ameaças, agressões e lesões numa base diária, apenas interrompidos por dias em que, temerosos, os elementos da família permanecem em silêncio - tensos, tolhidos pelo pânico. Lá em casa não era assim. Lá em casa, tínhamos uma vida normal. As nossas rotinas eram feitas de momentos positivos, de espírito alegre e até de uma união que, comparando com outros contextos familiares que conheci, era bastante forte. Só que, de vez em quando, o meu pai batia na minha mãe. Uma vez, à refeição, enquanto assistíamos ao telejornal, os meus pais discutiam acerca de qualquer coisa. Já não me recordo do assunto, mas teria alguma coisa a ver com um evento recente em que o meu pai se comportara como em tantas outras ocasiões: como uma fera febril que desafia os outros em redor. Por norma, os outros tinham mais bom-senso do que ele, desvalorizavam, ignoravam. Mas ele gostava de fazer aquela figura de durão.
Lembro-me de a minha mãe lhe ter dito isso mesmo, de maneira direta: “Muito gostas tu de ser o mau da fita.” Parou tudo. Suspenderam-se respirações. E então ele bateu com ambos os punhos na mesa e começou a respirar muito fundo, parecia prestes a transformar-se num lobisomem ou noutro monstro qualquer. “O mau da fita?”, gritou ele, “ai eu tenho a mania que sou o mau da fita?” Atirou a faca da refeição contra a parede. Ficámos caladas. Depois, o meu pai levantou-se, pegou na minha mãe pelo pescoço, encostou-a à parede, sensivelmente sobre o sítio onde a faca tinha embatido - eu e a minha mãe chorávamos, ela manietada, levantada pelo queixo, pendurada contra a parede, eu impotente, uma miudinha de sete ou oito anos; chorávamos, mas muito baixinho, para dentro, em pânico -, “diz-me lá outra vez que eu gosto de ser o mau da fita. Diz!” E deu-lhe um par de estalos antes de a atirar ao chão, com desprezo. Pegou no casaco, na carteira, nas chaves de casa e no maço de cigarros. Saiu e bateu com a porta.
Num outro episódio, em casa de uns amigos dos meus pais que tinham filhas da minha idade, tudo corria bem até que, a certa altura de uma conversa, ainda antes de nos sentarmos para jantar, a minha mãe teve o azar de observar em voz alta que o meu pai “às vezes” parecia uma velhinha à janela - porque registava o que via e depois contava. A minha mãe disse isto com a maior ligeireza, mas ao meu pai aquela tirada não caiu bem. E lá começou a transformação, a respiração ofegante, muito funda, como se o seu lado obscuro estivesse prestes a quebrar a carapaça e a libertar-se. “Como uma velhinha à janela? Eu pareço uma velhinha à janela?”, repetiu num tom agressivo e ameaçador. Quando ia repetir uma vez mais, chegou perto da minha mãe e puxou o braço como se lhe fosse dar com as costas da mão na cara - mas sem intenções de concretizar a ameaça. “Ó Manel, tem calma, pá. Então o que é isso?”, protestou o homem do casal de amigos. “Ó Manel, por favor, tem calma”, suplicou a mulher. “Uma velhinha à janela?”, repetia novamente o meu pai, e ia aproximando cada vez mais as costas da sua mão forte e robusta do rosto frágil, branco, pálido e assustado da minha mãe, que só conseguia balbuciar “ó Manel, mas… ó Manel, eu”.
“Vamos embora”, e lá fomos nós. Sentia-me envergonhada. Profundamente envergonhada. Aquela cena diante daquelas pessoas, das minhas amigas. E a seguir, quando a porta se fechou e nos encaminhámos para o carro, a vergonha deu lugar ao desespero. Porque o medo era outra coisa - o medo era o que eu sentia quando pressentia que alguma coisa de mal podia acontecer. Não era o caso. Naquele momento, eu sabia que tudo ia correr mal. Que a minha mãe ia apanhar. Que íamos acabar em lágrimas até o monstro sossegar e regressar às entranhas de onde tinha saído - até que o meu pai voltasse a si. E depois viria o silêncio envergonhado, o medo esquivo das conversas, as desculpas pedidas, mas sempre com meias palavras, sussurros embaraçados e uns quantos “mas” - “mas eu enervo-me”, “mas às vezes não me contenho”, “mas tu, também, tem dias que exageras”. No fundo, o meu pai sentia o peso da culpa, mas nunca era uma culpa absoluta e abertamente sua - era uma culpa nossa, de todos. Da família.
Certas vezes, é verdade, a minha mãe podia ter travado mais cedo. Houve momentos em que era fácil pressentir que o monstro se preparava para furar a casca e saltar cá para fora. A iminência era demasiado evidente. Mas ela, nesses dias, fazia como se se vingasse de todos os silêncios: ia em frente, destrutiva, bruta, impiedosa, e dizia as coisas. Às vezes, dizia-as com a língua especialmente afiada - para magoar, para ferir. Desafiava-o. Sabíamos que ia acabar mal. Hoje, quando recordo esses momentos, acredito que ele hesitava antes de se transformar. Talvez a temesse um bocadinho, nem que fosse por escassos instantes. E esse temor era como oxigénio para a minha mãe, que aspirava sofregamente aquele balãozinho de ar antes de receber o castigo.
Numa dessas ocasiões, o meu pai nem conseguia falar. Derrotado, esmagado, levantou-se e deu um murro na cabeça da minha mãe. Assim mesmo, no alto da cabeça. Foi tão bruto que ela caiu no chão, quase insconsciente. Eu chorei e berrei, agarrei-me às pernas dele, “chama um médico, pai, chama uma ambulância”, e ele, aterrorizado, pegou-me ao colo e disse “eu chamo, Laurinha, o pai chama, o pai chama um médico, uma ambulância, a mãe já fica boa”. A seguir, pousou-me no chão e ajudou a minha mãe a levantar-se. Aconchegou-a. Ela estava trôpega, baralhada. Não conseguiu ripostar. Limitou-se a chorar. Acho que chorava metade de dor, metade de vergonha. No ar, ficou o susto, o medo, o embaraço e a culpa partilhada. Éramos todos culpados. O meu pai, claro, tinha sido o autor físico e prático e concreto daquele momento de violência. Mas, no fundo, segundo ele próprio, tudo aquilo tinha sido resultado de um cúmulo de situações, enfim, não era assim tão simples. Ele discursava e as palavras entranhavam-se em mim.
Fui crescendo, tive uma adolescência razoavelmente saudável. A vida familiar era, como disse, bastante normal, exceto quando saía de dentro do meu pai aquele seu alter-ego extraordinariamente violento, que cegava de raiva sem que nunca conseguíssemos decifrar o ponto frágil nem o ponto de não-retorno. Só que essas exceções eram como uma maldição secreta, uma nuvem invisível sobre mim e dentro de mim. Uma nuvem feita de receios, de ansiedades, de pensamentos indizíveis que não podia partilhar com ninguém. E de culpa. O que é que eu podia fazer para evitar que o monstro se erguesse e fizesse mal à minha mãe?
Aos 18 anos, saí de casa. Fui viver com o meu primeiro namorado de faculdade. Eu não o amava assim tanto, mas pareceu-me um pretexto suficiente para me afastar daquela realidade que me atormentava e ameaçava acabar comigo. O meu coração dividiu-se. Fui obrigada a escolher entre deixar a minha mãe sozinha com o meu pai ou permanecer em casa, sabendo que eventualmente eu podia sucumbir aos maus pensamentos (por essa altura, já tinha passado, primeiro, dos arranhões nos braços para cortes com lâminas de depilação e, mais tarde, passei dos golpes nos braços para as feridas fundas nas coxas - era uma questão de tempo). Esse meu namorado foi a primeira pessoa que viu as minhas marcas dos cortes, a cicatrizes da minha dor secreta e silenciosa, do meu pânico, do meu desespero, do meu beco sem saída. Perguntou-me que marcas eram aquelas. Prometi-lhe que, um dia, quando fôssemos suficientemente íntimos, lhe contaria a história completa. Mas ele, passados alguns meses, durante uma discussão por causa de uma insignificância qualquer, levantou-me a mão. Parti-lhe o nariz, “comigo, não”.
Até hoje, ainda não construí intimidade suficiente com nenhum homem ao ponto de partilhar com ele a minha história. Todos fazem a mesma pergunta, a todos dou a mesma resposta: “Um dia, quando lá chegarmos.” Esse dia ainda não chegou, mas eu não perdi a esperança.

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