Ainda existem amores épicos?

Na era das redes sociais, dos encontros imediatos e do desejo descartável, ainda existe encontro, romance, conquista? Conhecemos duas estórias de amor épico e conversámos sobre esse grande mistério com os especialistas.

Foto: Instagram @barackobama
12 de fevereiro de 2019 às 11:44 Patrícia Barnabé

O amor é um cocktail exaltado, mistura de fragilidade e força, entorpecimento e desassossego, sentidos toldados em alerta, hormonas, neurotransmissões e químicas complexas. É dos maiores mistérios, não só para nós, mas para psicólogos, filósofos e cientistas. "É universal, já foi estudado em quase todas as culturas do mundo o que chamamos de amor romântico", explica José Manuel Palma, professor universitário de Psicologia Social. Segundo ele, o amor define-se por três dimensões: a paixão, ligada ao desejo, a intimidade e a partilha. Há amores que só têm uma delas, outros têm todas e há diferentes combinações. "Contudo, existe um amor, psicológico e fisiologicamente diferenciado, que é um estado de transtorno que te deixa dependente: o amor romântico. Passas a dividir o mundo, com o outro e sem o outro, porque é assoberbado, ficas numa excitação só por falar na pessoa." Esta forma próxima da paixão é como imaginamos o amor, mas nem todas as paixões se tornam amores românticos. "Nestes, toda a consciência, emoção e prazer está dependente da pessoa amada." De tal maneira que ultrapassa os filtros sociais e automáticos que nos levam a escolher sempre os amores, como os amigos, no nosso grupo de interesses ou classe social. "Não somos livres de amar", costuma dizer o professor aos seus alunos. Mas o amor romântico leva tudo à frente.

Mas este amor que nos habituámos a ver nos filmes de domingo à tarde, de ler nos romances ou sublimados numa canção precisa de uma disponibilidade e gestos largos que não parecem existir nos tempos modernos. Marta Crawford, especialista em terapia de casal, diz não saber se todos os gestos de amor têm a intensidade dos romances clássicos, mas agora muitos fazem-se "para o resto do mundo ver. Nas redes sociais queremos mostrar que somos românticos e maravilhosos, e esta necessidade de confirmar o amor pelos outros leva-nos a pensar se o fazemos mesmo um pelo outro. Muitas vezes esses casais-maravilha que fotografam tudo, depois não conseguem alimentar a relação na intimidade. Muitos estão em esforço ou em compensação de outras ausências", diz-nos ao telefone. E faz um paralelismo com a sexualidade, que é sempre um barómetro de saúde emocional: "Agora o mais importante é a excitação, é mais interessante vivê-la do que propriamente o orgasmo, porque valorizamos sempre mais o fim do que a viagem. Mas quando não valorizamos a viagem, é tudo rápido e sem grande memória. Antigamente, o desejo durava, era levado a outro tempo, havia um código de namoro que impedia a vontade, e a inquietação ia crescendo. Hoje, no Tinder, é ver a pinta do outro e escolher o local, o objetivo é a rapidez." No entanto, continuam a existir grandes amores, gestos e sacrifícios, "por mais afastamento e dificuldades, há quem faça com que a relação resulte", garante. Mas também "quem se aborreça mais facilmente. Nem sempre o amor chega para os desafios do dia a dia e para completar os nossos desejos ocultos. Hoje, todos temos uma ideia dos outros e fazemos show off porque queremos ser espetaculares, parecer aventureiros, até casamos em festivais, mas na vida real somos assim tão extraordinários e capazes de lidar com o outro profundamente? Como dizia José Gameiro, é como os cabazes de Natal, cheios de produtos lindos, mas trazem as salsichas lá atrás".

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Por outro lado, as expectativas baixaram e é tudo mais fácil e fluido, casar ou divorciar, "o compromisso é mais fácil de desmontar" e num divórcio "já não és visto como o falhado ou o incompetente, como eram os nossos pais, que só se separavam com um grande drama". Agora os casais pedem "ajuda para problemas com menos tempo" e ao mínimo senão "já não há (tanta) paciência ou o outro tem de comportar-se de acordo com as nossas expectativas". "Oiço, na casa dos 20 anos: ‘Já sei que não vou ter uma vida tradicional.’ Aquela ideia do caso perdido porque tiveram uma expectativa que não resultou. Como há muita gente nova que chega a casa e se atira para o sofá: sempre cansados, não fomentam a vida social porque acham que devem viver um para o outro, que são ideais muito antigos. Há a ideia de que trabalhas e trabalhas e depois é que és feliz, nas férias ou quando te reformares", graceja. Mas priorizar casar e ter filhos, ou a mulher ficar em casa a cuidar deles, passou a ser "visto de lado" como se toda a gente tivesse de ser "independente e moderna e não pudéssemos gostar da simplicidade da vida. Quando as pessoas estão a ter as suas casinhas na aldeia, a tratar da terra e estamos todos mais ecológicos".

São vários pesos e várias medidas que Madalena Lobo, que dirige a Oficina da Psicologia, diz serem definidoras das novas gerações "menos polarizadas. Para elas, vale tudo e isso inclui também ser tradicional. Há mesmo um novo conservadorismo no ar: o recrudescimento do modelo religioso e da ideia de culpa e de vergonha", diz a psicóloga. "Estamos a falar de malta nova, ativa profissionalmente e sem ar piedoso. E são muitas vezes opções da vida adulta." Soa a uma vontade de resgatar um passado que tem aquela cartilha de regras, uma ideia de estrutura, a bem do conforto e da permanência. "Uma geração liberal é seguida de uma geração conservadora. A nova geração dos 20 e dos 30 é muito mais conservadora do que a dos 40 e dos 50, da religião à ideia do amor para toda a vida." Vivemos num período em que estamos um pouco "a boiar na vida", impreparados para aguentar a frustração. "O aumento de divórcios e ruturas relacionais já anda à volta dos 40 a 60%, e uma boa parte são divórcios que se repetem. Mas o delírio do amor continua a ser o mesmo, porque é uma realidade delirante alguém aos 20 anos dizer a outra pessoa que vai ficar com ela para sempre."

O amor dá trabalho. "Claro que não podes estar num estado transtornado a vida toda", sublinha José Manuel Palma. Para se manter, o amor "tem de se transformar noutras dimensões. Ou não. Muitas vezes desaparece mesmo porque não se adapta a ver aquela pessoa e perceber que já não se é dependente. Passar para um estado mais calmo é complicado. É uma faca de dois gumes. Todas as pessoas querem estar apaixonadas, mas é um estado idealizado porque, pela sua natureza, não se pode manter." A maioria dos amores vem da intimidade e não do amor romântico e existem estudos interessantes que comparam as taxas de divórcio na Índia e nos Estados Unidos, entre uma sociedade onde os casamentos são arranjados e uma onde se casa por amor, "e os primeiros são mais felizes, porque aprenderam o amor, construíram o amor com uma base sólida, ele veio pela intimidade, pelo compromisso e eventualmente houve paixão. Enquanto nós justificamos os casamentos pelo amor romântico e muitas vezes casamos ainda em estado de maluquice. Mas podem vir problemas porque não foi consolidado".

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Madalena Lobo adverte: "Grandes amores só no tempo da minha bisavó, com um olhar para as coisas e uma prova do tempo dada. Se não, é infatuation. Sabemos que o amor é uma realidade que vamos construir, vou fazer os possíveis, mas a cada dia estou a tentar perceber e a negociar. Qualquer relação muito próxima tem tendência a irritar-nos a um determinado momento. Se a noção de familiaridade nos dá a sensação de pantufa feita ao pé, também amplifica coisas muito pequeninas. Há que ter alguma capacidade de resiliência emocional e gerir a irritação e as coisas que não são sexy", diz. "Acreditar piamente nos contos de fadas, o romantismo e o otimismo totais, como o pessimismo convicto, deixam-nos despreparados para as coisas que nos acontecem. É uma ilusão pensar que o universo está estruturado para evoluir de forma justa. É o cinismo (uma era iniciada nos anos 80) que nos ensina a ter os pés na terra. As relações de longa duração não vivem de floreados, nem nascem puff! A tolerância trabalha-se, a capacidade de estar com os outros, a compaixão, é tricotar as relações com um ponto firme. Não é mudar as pessoas, mas o espaço relacional, que é onde as coisas acontecem, enriquecê-lo. A idade dá-nos sabedoria ou estupidez. A vida é uma renda, não conseguimos encapsulá-la em conhecimento. Quando julgamos que estamos quase a perceber as coisas, elas são tantas e tão complexas que nos escapam entre os dedos. Cada vez é mais difícil dizer que se sabe e não é por falta de proliferação científica. Cada vez percebemos menos disto."

Para Marta Crawford, tudo depende "da capacidade de trabalhar o eu, o outro e depois o nós. E oxigenar a vida, cada um com os seus amigos, família, etc. A comunicação interna é a grande questão: conseguir comunicar as nossas fragilidades, expectativas, vontades. E não é com intensidade ou ao de leve, é com franqueza. Senão, não se sabe do que o outro gosta. E não verbaliza porque acha que o outro não faz melhor porque não quer, e muitas vezes é só porque não sabe. São tantos os casais que não se conhecem intimamente. Faço mesmo um apelo para se reinventarem, saírem do seu compartimento. No fundo, é ser só o melhor possível. No Walt Disney era tudo difícil até ao momento do beijo e aí viviam felizes para sempre, que é a parte mais difícil da história", ri-se. "A grande mentira é dizer que o difícil é encontrar alguém e depois não ser muito feliz, essa é a grande questão e a parte tramada. Há que regar a relação, ser um jardineiro, atento às flores e folhas secas, às regas, podas, e mudas da terra, e ficar feliz a cada nova folhinha."

Pluralidade de amor. O psicólogo social diz que hoje temos múltiplas culturas, "há mais microgrupos, podes ser hetero, homo, sadomaso, romântico, etc. E temos uma capacidade muito maior de comunicar, de criar culturas detalhadas." Só a forma é que mudou. "Quando um desconhecido oferece flores? Os putos fariam outras coisas. Se ficares apaixonado romanticamente fazes o que for preciso." A intensidade não mudou, tem é de haver sintonia. "As coisas só são ridículas, como diria o nosso Fernando Pessoa, quando apenas um está romanticamente envolvido. Juntos são a hipérbole comportamental e do sentimento." Agora, o que aconteceu foi que a cultura abafou o amor romântico, e os sinais não são fáceis de perceber. "Como é que aprendes a ser romântico? O conteúdo é-te dado pela cultura, pelos filmes, e antigamente (dos anos 30 até meados dos anos 90) havia uma consistência sobre o que é ser-se romântico. Na Europa Ocidental, o amor romântico foi bem endoutrinado. Mas às vezes as pessoas estão à espera daquela coisa que arrebenta e às vezes não aparece. Ou não se consegue reconhecer. Quando estou com a pessoa tenho as emoções, mas como se diz o que é gostar? Como é que se sabe?"

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Esta negociação de emoções pessoais deriva de cartilhas várias, novas morais, "a fragmentação do sistema de valores", como diz Madalena Lobo. "Não é universal, são pessoais, uma âncora profunda em nós próprios" e, segundo ela, é o que vale nestes últimos 15 anos. Hoje, as pessoas dizem "posso tudo", mas é preciso perceber: "O que me faz sentido? Como gerir expectativas? Como atualizar e renovar as regras relacionais? São raciocínios que fazemos pouco, antes porque não pensávamos nisso, não vivíamos em processos democráticos, não seria hábito, agora porque estamos em vidas alucinantes, demasiado globais e afogadas em pseudoinformação." Não cultivamos o longo prazo, mas vivemos momentos "extraordinariamente interessantes e assustadores", uma velocidade de mudança. "Só existe aprendizagem quando estamos num nível ótimo de desafio e acionamos mecanismos protetores, mas hoje sabe-se que há uma neuroplasticidade também no cérebro adulto, isto é, estamos a aprender, a evoluir. Nós descobrimo-nos ao longo da vida, como podemos saber alguma coisa se não vivermos?"

Diana Ralha diz que o segredo é descomplicar, porque não há fórmulas mágicas. "Andamos todos muito desatentos e por vezes passa-nos ao lado o que pode ser o amor da nossa vida, tão absorvidos estamos no prazer imediato e em paliativos. Há muita dispersão e muita pressa. E há desconfiança com o amor, por isso arrisca-se pouco, pelas convenções e pelas aparências. O medo de sofrer é legítimo. Eu senti-me a morrer de amor várias vezes, aquela coisa de Romeu e Julieta, que é mesmo uma dor física. Mas não se pode ter medo porque o amor é um ato de coragem."

Marta e Tiago

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"Tínhamos 12 anos e foi o primeiro beijo", conta Marta Marques da Silva. "Ele era amigo da Maria, da escola e da rua, e fazia anos." Estávamos em 1984 e depois da escola, Marta e a amiga foram a casa dele lanchar. "Lembras-te da dança da vassoura?", ri-se. Foi amor à primeira vista. E deram o primeiro beijinho ao som do Sailing, do Rod Steward, ele diz que foi do Bryan Adams. Começaram a namorar por carta e telefone, as férias duravam três meses. Mas tudo acabou num dia em que ele a deixou pendurada no cinema, "cheguei a casa a chorar". Voltaram a cruzar-se tinham 15 anos, ele entrou para o Colégio Moderno, que ela frequentava, e partilharam disciplinas. "Voltei a apaixonar-me, mas ele diz que não lhe ligava nenhuma. Tinha vergonha." E depois aos 18, no 12.º ano da Cidade Universitária, mas não falavam e Marta já tinha um "namorado à séria". Um dia viram-se no Bairro Alto, "mas foi só um olá" e, ao longo dos anos, a propósito do primeiro amor, ela "contava sempre esta estória". "Uma vidente disse-me uma vez que o amor da minha vida era loiro de olhos azuis", brinca. Entretanto casara e tivera um filho, ele uma filha. Já com 46 anos, procurou-o no Facebook, "mas não tive coragem de dizer nada". "Mas uma amiga publicou uma fotografia da turma antiga e trocaram mensagens, tipo: ‘Marta, és tu?’’Sou!’ Conversa de circunstância. E combinámos um cafezinho. Bem... o nervoso! Voltei a ser adolescente. Escolhi a roupa, não sabíamos nada um do outro, levo sandálias ou não? Mudei de roupa, nunca mais chegava o dia e a hora...", recorda. "Estava a descer a Ferreira Borges e reconheci-o pelo andar, parámos no sinal que nunca mais ficava verde", cada um no seu passeio. Assim que abriu, abraçaram-se no meio da estrada. "Caminhámos e demos a mão, até ficámos sem jeito. Onde vamos jantar? Houve logo um entendimento, um à-vontade, como se tivéssemos estado todos estes anos em contacto. Estava contente de o voltar a ver. A conversa era tanta que parávamos para dar abraços. Jantámos muito nervosos, duas garrafas de vinho. Ele conta que eu disse: ‘Tiago, cala-te e dá-me um beijo na boca.’ ‘Acho muito bem’, ouviu-se da mesa ao lado", ri-se. Isto foi em abril de 2017. Em junho passado entraram no Village Underground ao som do Avé Maria num arranjo para cordas, "nós aos beijinhos e a conservadora à espera!", ri-se. "Conhecemo-nos há 30 e tal anos, mas estamos a conhecer-nos agora. Gostar só não chega, tem de fazer-se muito ? se calhar isso é que é o amor."

Diana e João

"Tinha tudo para dar errado", avisa Diana Ralha. Saída de um casamento "muito complicado", vivia sozinha com o seu bebé e criou o empantanas.blogspot em 2004, "um espaço de catarse: estava numa cena suicida e precisava de sangrar". Até inventou uma frase que hoje seria uma hashtag ("e nada extraordinário acontece") e tinha cerca de 1.000 visitas diárias. "Pus na cabeça que na visita 50 mil a minha vida iria mudar" e, na madrugada de 21 de março de 2006, uma amiga escreve um post sobre ela num blogue político e publica um parágrafo "muito sofrido". Começam a chegar novos visitantes ao blogue e quando estava quase nos 50 mil "e ele foi lá, perfil anónimo, e pôs um ponto de interrogação. Os pontos que parecem perdidos, ligados levam-te ao lugar onde te esperam. Se não tivesse vivido o que vivi, não teria conhecido o João". Nesse mesmo dia, em louvor da primavera, "foram plantados 50 mil amores-perfeitos ao longo da Avenida da Liberdade ? não estou a brincar!", conta. Começaram a conversar no chat: "Estávamos de coração aberto, namorámos à moda antiga, à janela do e-mail. Ele sabia muito sobre mim, até via a minha fotografia, eu só sabia que ele era revisor, mais nada!" Investigou onde ele morava pela descrição que fazia das vistas da janela, e um dia deixou-lhe um dicionário do século XVIII que tinha herdado debaixo de uma roseira de Santa Teresinha no Jardim da Estrela, onde ele passeava à noite. E debaixo dela começaram a trocar recados. Numa noite, ela queixa-se no chat que não tem cigarros e 20 minutos depois ouve pelo intercomunicador: "Os teus cigarros estão à porta." Desce as escadas e um vulto desaparece na esquina. No dia 29 de abril conheceram-se ao pé da roseira: "Combinei com uma amiga um sinal caso ele fosse velho e chato!...", recorda, mas era "lindo de morrer – loiro, magro e introvertido ? e eu morena, gordinha e extrovertida". Foram jantar e conversaram até às seis da manhã. "Ninguém conseguiu dormir até às nove, por isso encontrámo-nos de novo no jardim. Começámos a viver juntos desde esse dia." Decidiram casar-se, exatamente um ano depois e debaixo daquela roseira. Tiveram vários desaires. Diana perde o pai e o trabalho durante a lua de mel, depois um bebé, mais tarde nasceram três. "Eu queria tudo e tenho: amor, quatro filhos, dois cães e dois gatos. Encontrei o meu Euromilhões, ele é inteligente, bonito, um pai e um marido excecional (nunca fiz uma sopa para os bebés, nem uma máquina de roupa, ele faz tudo e nem quer saber se ganho mais do que ele)." Treze anos, não passam uma noite afastados: "Temos a responsabilidade de ser para a vida."

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