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Qual é o preço de se ser solteira em Portugal?

Quem casa quer casa, mas quem opta por ficar sozinha também. O problema está em tudo o resto. O aumento desmesurado das rendas devido à invasão estrangeira e a consequente subida do custo de vida que daí advém está a colocar sérias dificuldades no quotidiano de quem não divide contas. Fomos entender qual é, afinal, o preço de se ser solteira nessas condições, em Portugal.

20 de março de 2019 às 12:40 Pureza Fleming

"Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria." Reconhece este excerto? Faz parte de uma crónica publicada no Expresso, nos idos de 2000, da autoria de Miguel Esteves Cardoso. Intitulada de Elogio ao Amor, o autor desenhava nela um retrato idílico daquilo que, para si, deveria ser o amor. E daquilo que ele, na realidade, era: "O amor dos contratos pré-nupciais, passível de ser combinado, ou das sopas e descansos." Ao longo do texto, Esteves Cardoso vai repetindo e reforçando que "o amor é uma coisa, a vida é outra", revoltando-se contra a ideia do amor moderno, o amor que dá jeito. Relembro-me do alarido em torno da peça, principalmente por parte de uma maioria solteira que assistia a uma declaração pública (e aplaudida) dos seus ideais: casar só porque sim, nem pensar. Uma amiga (solteira) dizia-me, a propósito do tema que resolvi trazer à superfície: "Não estou para engolir ‘sapos’ e aturar um homem só para ter estabilidade financeira. Só estou com alguém por amor."

A verdade é que o estigma da solteirice suavizou com o tempo. Há cada vez mais mulheres solteiras que vivem até bastante bem com isso. O problema, porém, passou a ser outro: com o aumento "pornográfico" das rendas de casa e do custo de vida, no geral, graças à investida estrangeira, em Portugal , e o não acompanhamento dos rendimentos, como vive quem não divide? "Não só os salários em Portugal são dos mais baixos da Europa, como as mulheres são as mais mal pagas, com a agravante de que este é um cenário que acontece em todas as fases das suas vidas e não apenas no início da vida profissional. Além disso, o número de contratos não permanentes nas empresas incide com maior percentagem no sexo feminino." A injustiça mostra-se ainda maior se se considerar que "são [as mulheres] quem tem, no percurso escolar, maior taxa de sucesso. A precariedade no feminino é uma realidade". Quem o diz é Bernardo Coelho, sociólogo investigador do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género (CIEG) pertencente ao Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa e professor-auxiliar convidado no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas daquela Universidade. 

Sónia Vladimira Correia, socióloga, mestre e doutora em Ciências Sociais, docente na Universidade Lusófona, investigadora integrada do CPES-Lusófona e life-coach, confirma: "Sim, os homens em média continuam a receber mais e melhor que as mulheres." Explica à Máxima que "segundo a CIG (Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género), em 2015, os homens em média ganhavam 990,05 euros de remuneração base mensal, ao passo que as mulheres auferiam 824,99 euros, um diferencial de 16,7%. De acordo com o gabinete de estatísticas da União Europeia, entre 2011 e 2016 o fosso salarial entre homens e mulheres, em Portugal, cresceu 4,6%, situando-se, em 2016, nos 17,5%, menos 0,3% do que no ano anterior". Além disso, acrescenta, "o Instituto Europeu para a Igualdade de Género aponta que as mulheres enfrentam um maior risco de pobreza na terceira idade do que os homens, com 18% das mulheres e 12% dos homens, com mais de 75 anos, em risco de pobreza monetária". A socióloga acrescenta que, no que respeita às pensões, as mulheres portuguesas recebem, em média, menos 30% que os homens, que é, ainda assim, um valor abaixo da média europeia de 38%.

Como vive quem não divide?

Diana tem 28 anos, é jornalista a tempo inteiro e assistente de uma blogger, em part-time. Leia-se: sair do trabalho nunca antes das 19 horas e ir para casa com mais trabalho. "Se o trabalho da redação me ocupa muito tempo, o segundo não me ocupa menos: além de escrever conteúdos, há sempre alterações a serem feitas e uma agenda para ser gerida." Apesar dos dois vencimentos, não tem casa própria, dividindo um apartamento, na zona de Alvalade, com um amigo. Se era possível viver sozinha com os rendimentos? Acredita que sim. No entanto, o segundo trabalho não é fixo: "Morro de medo de ficar sem ele [o segundo trabalho]…" Depois, há a questão do conforto: "Neste momento eu conseguia alugar uma casa - ou antes um ‘buraco’ - sozinha, mas pagando as contas ‘ficava a zeros’. E quero manter algum bem-estar na minha vida: jantar fora, ir ao cinema, ir a festas, etecetera…", conta com a alegria descomprometida que tão bem caracteriza esta geração. Perspetivas para viver sozinha é que nem pensar. "Não tenho sequer um ‘pé-de-meia’ ", riposta. "Nunca pensei que ao trabalhar desde os 24 anos, o meu salário pudesse subir tão pouco. O vencimento não acompanha a minha evolução no trabalho. Aceito, mas não me resigno." Quanto ao seu estado – solteira –, diz que nos seus pensamentos vai imaginando a pessoa ideal e a vida estável e organizada que encontrar alguém lhe poderia dar. Mas acrescenta, entre risos: "É a expetativa versus a realidade." Conta que conhece quem se mantenha junto por comodidade e de que tem plena noção da facilidade que é viver-se em casal – numa perspetiva financeira, claro. Refere também várias amigas que querem sair de casa dos pais e não conseguem: "É difícil arranjar-se alguém para partilhar casa. Assisti ao fim de amizades entre pessoas que foram viver juntas. Vivo com um amigo de um amigo e considero que tivemos sorte porque nos damos bem." Ainda assim, conta que não foi fácil conseguir a casa e é aqui que o estigma da solteirice vem, novamente, à superfície: "Tivemos de fingir que éramos um casal! A senhoria de uma outra casa chegou a dizer que preferia casais porque as amigas se chateavam." O que resta, então? "Viver no presente! Um dia de cada vez e sem qualquer tipo de expetativas. O meu irmão vive num T0, aos 34 anos, e a minha irmã, de 25, está em casa dos meus pais e não há previsão para a sua saída. É surreal porque trabalhamos muito mais que os nossos pais e temos muito menos!". Bernardo Coelho relembra que Portugal faz parte do conjunto de países (constituído por países do Sul e do Leste da Europa) onde os jovens saem mais tarde de casa dos pais. Dez anos mais tarde que na Suécia, por exemplo. O sociólogo refere que ao contexto de precariedade já conhecido, a pressão imobiliária só veio agravar, tratando-se assim de um "ciclo vicioso muito grande", alerta.

Contudo, há quem não viva em casa dos pais nem divida apartamento com estranhos. Ou não o queira fazer, apesar das consequências. Carlota, de 37 anos, vive sozinha. É consultora de Relações Internacionais e tem um ordenado de 1.100 euros que, no entanto, não recebe por inteiro, há cerca de dois anos. Vive numa casa de 35 metros quadrados, cuja renda foi recentemente aumentada e ainda está a pensar no que vai fazer em relação a isso: "O valor continua abaixo da média do mercado. Ainda assim, em termos percentuais o aumento foi de 26,3 por cento." Sim, a consultora vai ao detalhe das percentagens e diz que esta organização obsessiva (mantém um rigoroso excel onde coloca, até, a despesa do café) é a base para a sua sobrevivência enquanto solteira, a viver sozinha. Sabe que no início pagava 12 a 13 euros de água e que o valor, agora, é de 24 a 25 euros, com o mesmo consumo: a lavar a mesma loiça e a tomar os mesmos banhos. Durante cinco anos não teve televisão, tendo, entretanto, aproveitado uma promoção para aderir à mesma. Não compra roupa, não janta fora de casa, não vai ao cinema e não viaja. Parte das férias passa-a com os pais que têm uma casa de férias e considera-se, por isso, uma privilegiada. E vive na Lapa, o que também a deixa satisfeita, apesar de tudo. Ao contrário de Diana (a jornalista que divide a renda com um amigo), para Carlota a diversão e alguns "mimos" são pasados para segundo plano. A idade não é a mesma e ter de dividir uma casa com amigos ou desconhecidos, a caminho dos 40 anos, não é o objetivo de alguém que investiu na construção de uma carreira com cursos e pós-graduações. Em última instância, sabe que poderá vir a dividir casa com alguém que não seja um parceiro, mas, para já, prefere os pequenos sacrifícios do dia-a-dia, como saber que não deve gastar mais de 100 euros mensais no supermercado. De resto, o óbvio: o carro – que só tem porque os pais o ofereceram – é usado apenas em caso de necessidade extrema e usar o aquecedor durante o Inverno está fora de questão. "A mulher-a-dias da minha mãe ganha mais do que eu com todos os subsídios a que tem direito", reclama Carlota.

É certo e sabido que pessoas com dificuldades sempre existiram, mas, na maioria das vezes, referimo-nos a classes socias mais baixas e sem instrução. Ou assim era. Hoje, estamos perante mulheres com estudos, cursos superiores, experiência profissional e competências. Ouve-se, nas suas vozes, um certo tom de frustração sustentado por uma boa dose de esperança: "Já ponderei tudo o que não tem a ver com a minha área: trabalhar à noite num bar, num restaurante, etc.", confidenciava-me a jornalista, "mas adoro o que faço e é isso que me mantém na luta com um sorriso na cara". Carlota, por sua vez, decidiu-se por mais uma pós-graduação para, posteriormente, tentar mudar de trabalho ou mesmo de ramo. Uma mudança na vida profissional é o que mais deseja, neste momento. "O resto", remata num tom relaxado, "logo se verá".

Ser mãe (solteira)

Há dias, a caminho de casa ao final do dia, encontrei na rua uma amiga e parámos para dois dedos de conversa. Estávamos perto do Marquês de Pombal e dizia-me, esbaforida: "Venho a pé desde o Saldanha e ainda tenho de chegar a Santos [zona em que vive]. Demoro uma hora nisto; depois, é chegar a casa lá para as sete e meia [19h30m] e entrar na ‘parte 2’ do dia: os jantares e a lida da casa." Ou seja, ser a mãe e a empregada doméstica que ainda não tem. Sofia tem 37 anos e é mãe solteira. Trabalha numa empresa de Contact Center que tem ganhado prémios como uma das melhores empresas para se trabalhar. Conta-me que esta multinacional, com cerca de 8 mil colaboradores, paga um ordenado mínimo a licenciados. Sofia vinha a pé desde o local de trabalho porque, reclamava, não queria comprar o passe: "É da maneira que poupo no ginásio", brinca. Confirma-se: continua a parecer que tem 18 anos, no seu look casual a transbordar de estilo. Combinámos juntarmo-nos para falar um pouco mais acerca deste tema, e de como é, para uma mãe solteira licenciada, viver na Lisboa dos dias de hoje. Encontrámo-nos em casa dela, um achado, em Santos, onde paga 635 euros de renda mensais (sim, já é considerado um achado): "Tive imensa sorte com esta casa, encontrei-a através de um amigo do meu irmão". Sofia nasceu, cresceu e sempre viveu nesta privilegiada zona lisboeta e conta que sair dela só mesmo em última instância. Relativamente ao atual panorama – das rendas das casas à precariedade laboral –, encolhe os ombros como quem tem mais que fazer. "Recuso-me a entrar no sistema. Não faço parte da carneirada nem ambiciono fazer. Cargos chorudos que são uma palhaçada só para ter status ou casamentos de fachada apenas para satisfazer um certo estilo de vida? Nem pensar. Ambiciono ser feliz e estar de acordo com os valores em que acredito." E é feliz. Mesmo que não vá a determinado jantar porque acha caríssimo, tem sempre um vinil a rodar no gira-discos de casa. Adora passar as noites (ou mesmo as manhãs de fim-de-semana, enquanto limpa a casa) a ouvir música com o filho (que, aliás, aos nove anos se encontra a estudar música), enquanto cantam e dançam. Regista os momentos em vídeos que vai publicando na sua conta de Instagram e que provam que uma casa com música é uma casa feliz.

De acordo com o panorama atual das rendas e o aumento paralelo do custo de vida, o sociólogo Bernardo Coelho considera que se torna insustentável a situação para uma mãe solteira: "Por um lado, há a pressão para se sair da casa arrendada, em caso de aumento de renda, que só deixa duas hipóteses: ou se muda para uma casa em piores condições a um preço comportável (isto, enquanto houver), ou resta a periferização, sendo que mesmo na periferia os preços já estão a aumentar." Para o sociólogo que insiste que "ter-se um teto é uma necessidade básica", a solução da periferização leva a outro problema: "Primeiro, a rede de transportes [públicos] de Lisboa não tem capacidade para responder aos cidadãos. Depois, há a questão da violência simbólica que implica a reconstrução de um quotidiano. E este pode ser extremamente exigente, entre horários de trabalho, escolas, o ATL das crianças: "O lufa-lufa do dia-a-dia passa a ser um turbo lufa-lufa!", assevera.

No estudo desenvolvido no âmbito da sua tese de doutoramento Conciliação Família-Trabalho em Famílias Monoparentais , a socióloga Sónia Correia confirma: "As mães solteiras são as que têm mais dificuldade em conciliar família-trabalho. Dentro deste grupo são as mães solteiras pouco escolarizadas, com trabalhos precários e baixos rendimentos, que apresentam níveis de stress na conciliação mais elevados, têm menos pessoas a quem recorrer na ajuda e apoio nos cuidados às crianças, ao mesmo tempo que, por terem poucos recursos económicos, não podem pagar serviços de cuidados às crianças que lhes permitam cuidar dos seus filhos de forma continuada e segura." Explica que entre as estratégias que se encontram na conciliação estão associadas, em larga medida, o voltar a casa dos pais, o recurso aos irmãos mais velhos para cuidar dos mais novos, aos vizinhos que ‘vão dando um olhinho’ e, em alguns casos, ao abandono parcial, o que obriga, por momentos, ao desabafo "Eu já não sou mãe dos meus filhos". Retomando as palavras de Miguel Esteves Cardoso que insiste que "o amor não é para ser uma ajudinha, o alívio, o repouso, o intervalo, ou a pancadinha nas costas" e perante a realidade torna-se impossível não questionar: continuará o amor a ser uma coisa e a vida outra? Ou a união – com ou sem amor romântico – faz mesmo a força?

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