Depois de dar o seu consentimento para um ato sexual, uma mulher, regra geral, deveria sentir-se segura. Ou, pelo menos, seria expectável que assim fosse. No entanto, a realidade continua a não ser assim tão simples, como prova um abaixo-assinado que foi posto a circular no sábado passado, a pedir a criminalização do stealthing e que já superou as nove mil assinaturas – muito mais do que as 7500 assinaturas necessárias para que seja apresentado e discutido no Parlamento. O stealthing, pode ler-se na petição endereçada ao presidente da Assembleia da República e à ministra da Justiça "é a prática de remover o preservativo durante o ato sexual, sem o conhecimento ou consentimento da outra pessoa, numa violação clara do consentimento sexual". Um ato que "expõe as vítimas a riscos graves, como a transmissão de doenças sexualmente transmissíveis, gravidez indesejada e danos emocionais significativos". Traduzindo do inglês, stealthing significa algo que é feito subrepticiamente, um ato furtivo – como tirar um preservativo às escondidas.
Na verdade, o stealthing não implica, exclusivamente, a remoção do preservativo. Pode ser também o ato de o danificar antes do ato sexual, com o objetivo, por exemplo, que a mulher engravide ou de a contagiar com uma doença sexualmente transmissível – não que o propósito seja relevante, o simples ato já consiste numa agressão e na violação do consentimento. Afinal, o consentimento só existe perante todas as informações. Se assim não fosse, qualquer prática sexual seria lícita e aceitável, depois de ter sido dado o consentimento inicial, e é fácil perceber que isso não corresponde à realidade. É importante, ainda, referir, que o stealthing não é, exclusivamente, um ato de violência exercido por um homem sobre uma mulher. Podendo ocorrer entre dois homens, ou até ser exercido por uma mulher, caso seja ela a danificar ou a remover o preservativo sem o consentimento do parceiro.
De acordo com um estudo de 2019, da responsabilidade do Jacobs Institute of Women's Health, 12% das 503 mulheres questionadas, com idades entre os 21 e os 30 anos, tiveram um parceiro que praticou stealthing com elas. Esta prática já é punível em países como a Suíça, os Países Baixos, o Reino Unido, a Alemanha, o Canadá, a Nova Zelândia, a Austrália ou Singapura. E em estados norte-americanos como a Califórnia, ou Washington, onde, desde julho deste ano, as vítimas podem processar os autores do ato por danos cíveis e receber até cinco mil dólares por infração. Outros estados, como Nova Iorque, Maine, Massachusetts e Nova Jérsia, têm propostas legislativas em discussão para abordar o stealthing. A nível federal, há esforços para classificar a prática como uma forma de violência sexual, mas nenhuma legislação federal foi aprovada até agora.
Em Portugal, este tema, não sendo desconhecido, chegou à ordem do dia na sequência das denúncias de assédios e outros crimes sexuais, incluindo pelo menos uma violação, alegadamente cometidos João Pedro Coelho, o pianista e antigo professor de música no Hot Clube, escola de jazz em Lisboa. E também de César Cardoso, diretor pedagógico da Escola de Jazz de Leiria, diretor da Orquestra Jazz de Leiria, presidente da direção da Associação de Jazz de Leiria. Casos que não são recentes, mas que só agora chegaram ao conhecimento do público, através das redes sociais, com dezenas de outras denúncias a corroborar as acusações iniciais e a implicar outros músicos de jazz.
A petição foi lançada pela DJ Liliana Cunha, conhecida como Tágide, que diz ter sido violada e alvo de stealthing por João Pedro Coelho, que nega as acusações. De acordo com o jornal Público, desde que a DJ tornou a sua história pública, recebeu, através das redes sociais, mais de 100 mensagens com testemunhos sobre o pianista – muitos de ex-alunas – e outros músicos do jazz português.