A nova fase de Ana Moura. “Sabia que ao tomar esta decisão corria o risco de perder algum público"
E depois da tempestade, a bonança, que chega sob a forma de um álbum “disruptivo”, de (auto)descoberta e libertação. Chama-se Casa Guilhermina, o novo disco de Ana Moura, que também podia ser apresentado como o disco da nova Ana Moura.
09 de dezembro de 2022 às 15:51 Miguel Judas
Já há muito que o lançamento de um disco não provocava tanto burburinho. Afinal, também não é todos os dias que uma das mais consagradas artistas portuguesas de fado, um género musical ainda tido como bastante conservador, se atira assim, sem boia, para fora de pé, nadando pelas águas profundas de todo um novo oceano, onde a tradição, mais que uma âncora, serve antes de bússola para chegar a novos portos. Sim, porque também há fado, e muito, de forma assumida ou mais subliminar, em Casa Guilhermina (título que é uma homenagem à avó da Ana Moura), mas em coabitação com estilos tão diversos como o semba e a kizomba da Angola de sua mãe, o malhão do Minho do seu pai, o fandango do Ribatejo onde viveu grande parte da vida ou a eletrónica de uma nova Lisboa onde tudo isto se junta e vive em feliz harmonia. Em entrevista à Máxima, Ana Moura, 43 anos, revela como chegou até aqui, a este trabalho "disruptivo", segundo palavras da própria, feito com a ajuda de parceiros aparentemente tão improváveis, ou se calhar não, como Conan Osíris, Pedro da Linha ou Pedro Mafama – companheiro de Ana Moura também fora da música. Mas em vez disso, talvez fosse melhor chamar-lhe pioneiro, como quase tudo o que tem feito até aqui.
Experimentou cantar com auto-tune, escreveu letras pela primeira vez, recorreu a beats eletrónicos e assume uma série de influências inéditas na sua música, pode-se afirmar que Casa Guilhermina é um disco de libertação?
Se considerarmos que foi feito da forma que eu quis e com quem eu quis, sim, sem dúvida. Mas essa libertação é sempre uma demanda constante, porque as pessoas mudam e evoluem. No caso dos artistas, muitas vezes até em conflito com a imagem que o público tem deles próprios, pois apesar de nos últimos anos se ter tornado mais fácil para os fãs seguirem os seus ídolos, as redes sociais apenas mostram uma parte. E sim porque também é a primeira vez que assumo uma série de estilos musicais que também fazem parte de mim, como o semba e a kizomba, porque parte da minha família é angolana. Mas também tem o fandango do Ribatejo onde cresci, viras e malhões do Minho, que é a terra do meu pai, música eletrónica e muito fado. Diria mesmo que é um álbum maioritariamente de fado, mas no qual quis contar a minha história e a da minha família. Talvez por isso soe assim tão disruptivo.
Não foi algo planeado nem aconteceu de repente, foi antes um processo natural que começou num período muito intenso da minha carreira, com muitos concertos e compromissos. Na altura pedi ao meu agente para abrandar um pouco o ritmo, porque comecei a sentir a necessidade de conhecer outras pessoas e outras realidades musicais. Comecei a sair muito mais à noite em Lisboa e a frequentar as festas da editora Príncipe e a noites Na Surra, do Branko, nas quais conheci novas linguagens musicais que também têm muito a ver comigo e com as minhas origens. Comecei cada vez mais a perceber o que queria e como poderia fazer aquilo que já há muito desejava, mas as estruturas com quem trabalhava, agência e editora, não estavam interessadas nesse caminho. Só tornando-me uma artista independente seria possível e foi isso que fiz.
E não teve receio de dar esse passo?
Claro que sim, ainda hoje tenho receio de falhar, porque agora está tudo do meu lado. A responsabilidade é toda minha e isso torna tudo mais trabalhoso, mas também é mais estimulante e livre, lá está.
De que forma é que alguns acontecimentos marcantes na sua vida pessoal, como o desaparecimento do seu irmão ou o nascimento da sua filha Emília, contribuíram para este novo rumo?
Quando somos confrontados com situações extremas, sejam elas de perda ou de alegria, percebemos quão efémero tudo é e começamos a questionar se vale a pena continuarmos a fazer o que não queremos. No meu caso fez-me sentir ainda mais urgência em realizar-me, em ser fiel a mim própria, porque como disse há pouco, o público só conhece um plano do artista e nós somos muito mais que isso. Aliás, ninguém é só uma coisa a vida inteira, as pessoas vão mudando e evoluindo, é apenas disso que se trata.
Como é que Conan Osíris, Pedro da Linha e Pedro Mafama aparecem neste disco?
A partir das tais festas que frequentava comecei logo a ter uma ideia com quem queria trabalhar. Senti-me muito próxima da linguagem musical deles e acreditava que podíamos criar algo muito bonito todos juntos. E a oportunidade surgiu durante o primeiro confinamento, quando os desafiei para irem viver comigo. Tenho uma casa que nos permitia passar grande parte do dia separados e só ao final da tarde é que nos juntávamos para discutir o que havíamos feito. Estivemos lá meses, a compor e a criar de forma totalmente livre, sem nunca mostrarmos nada a ninguém. E a verdade é que conseguimos criar algo novo, sem qualquer tipo de amarras, foi um processo muito interessante e feliz.
Este disco levou a que fosse comparada a Rosalía, pela forma como reinventa o fado, tal como ela tem vindo a fazer com o flamenco, colocando-o em diálogo com outras linguagens musicais...
O fado e o flamenco são linguagens diferentes, mas a forma como as trabalhamos são muito semelhantes, no sentido de podermos e querermos explorá-las livremente. É de facto uma figura muito inspiradora, que nos faz questionar uma série de preconceitos, como o da apropriação cultural, por exemplo. Em Rosalía tudo faz parte dela e ao tornar-se dela torna-se também nosso, de quem a ouve, sem qualquer tipo de constrangimento. Consegue criar uma música unificadora que a torna, na minha opinião, na artista mais surpreendente e livre da atualidade.
Como um disco de fado feito por uma fadista, resultante de um processo de experimentação livre. Os meus discos sempre tiveram diversas influências, mas este é de facto, lá está, o mais disruptivo, porque foi feito sem pensar que pertenço a uma coisa só.
Sendo o fado um género ainda tão conservador, como têm sido as reações ao disco? Esperava todo este burburinho?
Não estava à espera de tanta discussão, confesso, mas acima de tudo tem-me chegado imenso carinho. Também tenho acompanhado as discussões nas redes sociais, que às vezes tornam-se um pouco extremadas. Sabia que ao tomar esta decisão corria o risco de perder algum público, mas também tenho a certeza que ganho outro e isso acaba sempre por trazer mais gente para o fado.
Esta fadista começou a sua carreira nos festivais de verão, onde os públicos tendem a não ser grandes apreciadores de fado. Para os atrair, Bia teve de ser imaginativa. Desse exercício nasceu o projeto "É Fado?", com fusões com techno, rap e muito mais. A artista quer por a "malta" a ouvir fado nas discotecas.