A inveja portuguesa e a cultura da comparação

Foto: IMDB
07 de junho de 2023 às 07:00 Patrícia Barnabé

"Vives só e não esperas nada, e eles têm medo da tua grande riqueza" - Rabindranath Tagore.

Há uns bons anos entrevistei o filósofo José Gil, a propósito do seu livro, Portugal Medo de Existir, e fui arrebatada pela definição daquilo que sempre senti à minha volta, principalmente por ter uma personalidade combativa e ativista e quase sempre dizer o que penso: a inveja não é um sentimento, em Portugal é um sistema. Ligado à infantilização que o salazarismo e a pobreza criaram e que, se nos dá uma natureza mais generosa, humilde e festeira, também alimenta uma invejazinha pequena e provinciana, aquela história da galinha da vizinha ser maior do que a minha.

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Segundo o professor, os portugueses não têm intensidade de vida, de pensamento e de ação, por isso, os poucos que o têm são facilmente aplacados ou puxados para baixo, engolidos pela grande massa letárgica do bem parecer, dos bons costumes e do politicamente correto que tudo nivelam pela mediania. Para um português, e até há bem pouco tempo, quase tudo parecia vaidade. Estar feliz por qualquer coisa que fizeste soa a gabarolice, discordares com uma mesa de jantar inteira é um ultraje, e não um sinal de caráter. Tudo parece vaidade na medida do amor-próprio de quem observa.

Crescemos num certo miserabilismo, mas não, e apenas, porque sempre fomos pobres. Sentimo-nos reconfortados reconhecendo-nos como "irmãos na desgraça", e também porque crescemos em aldeias, uma boa parte de nós. Este lugar contentado é bonito, claro, mas até certo ponto, porque pode ser profundamente paralisador, até ignorante. Não há muito tempo vivia-se uma generalizada hostilidade à iniciativa porque ela sacode a placidez dos dias e obriga-nos a agir, a suar, a cansarmo-nos. E a termos de nos responsabilizar, o que é uma grandessíssima seca. A inveja, que sempre foi da maior à tão pequena que quase parece insignificante, é uma daquelas formas de operar profundas, subtis, insidiosas, de que as sociedades estão cheias. É uma espécie de mecanismo de controlo para manter-nos todos junto do rebanho. E é como os maus vícios, que as pessoas demoram a perceber e tomam conta da sua vida e minam as dos outros, como se não tivessem permissão para sobressair, ser mais do que médio, discreto, bola baixa. Por isso, o queixume português vem do mesmo lugar que a inveja. 

O que é ainda mais curioso, e triste, na nossa inveja portuguesa - e José Gil refere-o extensivamente-, é que quando alguém se evidencia, a primeira reação não é a de responder fazendo algo que se evidencie também, por contágio, vontade de participar, dialogar ou até aprender. Não. É como se o talento, a graça, a inteligência ou o que seja que o outro emana, nos fizesse sentir mal. Um efeito de espelho que nos faz dar de frente com a nossa baixa auto-estima crónica e generalizada. Como se o brilho do outro nos encadeasse o caminho em vez de o iluminar. E funciona como uma sanção pela sorte que o outro tem, o desgraçado, como ousa? Depois, como sabemos, a frontalidade também não é o maior forte dos portugueses, aliás, tendemos a gostar mais das pessoas que nos suavizam a vida e nos distraem. Tal como sentem as crianças, mais uma vez. A inveja é a irmã pobrezinha da hipocrisia, mas nunca se torna Cinderela.

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Agora imagine-se isto tudo crescendo rapariga, cheia de perguntas e vontades num país patriarcal – e matriarcal, feito de enfermeiras e assistentes do machismo. Esqueçam, nem se imagina. As miúdas diferentes sempre se sentiram na borda do prato como se dizia nas aldeias, e o pior disso ainda sermos postas de parte, na maior parte das vezes, por outras raparigas, precisamente. Então agora que chega o tempo para andar mais descascado, meio mundo tira a medida a outro tanto. E isso não parece mudar com a evolução dos tempos, muito pelo contrário: a cultura da calhandrice, do voyeurismo e do perfeccionismo artificial não nos dão muita esperança.

Também vivemos tempos terríveis em que todos estão à defesa, e que é como quem diz que todos estão preparados para o ataque, mas hoje o moralismo é superficial, rápido e generalizador, como quase tudo. Por isso, nem chega a fazer mossa. Porque como o psicólogo Pedro Strecht sumarizou no diário Público, claramente a pegar no que o filósofo desenvolveu brilhantemente no seu mencionado livro: a inveja é uma espécie de pulsão de morte, "uma vez que a sua existência em larga escala não transforma, não elabora nada da própria pessoa ou dos outros: apenas se apropria e extingue."

A excelente notícia é que as novas gerações são tão look at me que já não estão para certas merdas grupais. Se parecem já ter nascido ensinadas (quem sabe se pelo tio Google), este excesso de autoestima numa novíssima era de individualismo e das redes sociais também os protege da censura. Ou pelo menos do que sentem ao serem vítimas da falta de liberdade e de ecrã que significam. Estas pequenezes já não os afetam, muito menos os minam. Nós crescemos entre procurar uma identidade e pedir desculpa por ela. Agora estamos na era dos makers, das aceleradoras e incubadoras, que mais parecem nomes de pequenos eletrodomésticos de cozinha, a era dos empreendedores, dos nómadas tech e ecologistas, que são sempre os mais giros. E ainda que às vezes soe a canseira, e seja mesmo, é sempre preferível pecar por excesso.

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