A falta de amor-próprio português

Foto: @IMDB/ A Gaiola Dourada
01 de novembro de 2024 às 07:00 Patrícia Barnabé

Já muito se escreveu sobre a maneira de ser nacional, dos filósofos ao comum dos mortais, todos temos uma opinião sobre o que significa ser português. Mas a nossa crónica falta de amor próprio como país, explica quase todas as outras. Se, nas pessoas, a falta de amor está na base de pequenas maldades e invejas, e fazemos mal porque nos fizeram mal, o que também já foi melhor desculpa, de todos os defeitos que um povo pode ter, não gostar de si próprio é dos mais tristes.

Uma parte explica-se historicamente, na mentalidade chico-esperta que tudo faz para se safar e pisa o canteiro do vizinho só para fazer corta-mato. Nós nem temos o belo, e civilizado, hábito dos jardins, tirando os românticos e os que têm jardineiro, e tendemos a preferir um lugar para o carro. E os poucos jardins de Lisboa estão cheios de acampados, perdidos e pobres, de turistas e nómadas digitais, ébrios e ricos, de cães que pouca terra escavam numa vida inteira no cimento. E quem cá vive, que aguente. Lá está, porque não se pensa no outro. E se formos falar de airbnb, então, é fartar, vilanagem.

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Lembro-me, como se fosse hoje, de uma frequência de História do 10º ano. O professor Luís Viana destacava-se, exigente, culto, coloquial e humano, como só os excepcionais. Era uma única questão: "No século XV, Portugal era um país de homens ricos, mas não era um país rico. Comente." A chamada pergunta era com volta na ponta, das que trazem água no bico, e a maioria estatelou-se ao comprido porque pensamos pouco sobre o mundo que nos rodeia. Referia-se ao facto de a maioria da riqueza criada na Expansão Marítima ter ficado em meia-dúzia, os donos disto tudo, ainda que fosse criada em nome de um reino e com o trabalho de todos. Do muito que se arrecadou pouco entrava nos cofres do Estado, por isso a antiga glória das conquistas não chegou ao país remediado que somos hoje. Foi o venha a mim o nosso reino.

Também se refere à ideia de rico-homem que "nos séculos XIII a XV, em Portugal, era a designação para o grau mais elevado da nobreza. Os membros deste estrato social, além de deterem os principais cargos públicos, possuíam bens consideráveis e tinham o título nobiliárquico de Dom. (...) No entanto, o rei podia, quer por galardão de serviços prestados, quer por valimento pessoal do nobre ou até por compra, "fazer" rico-homens." (em Wikipedia). Ainda hoje o clientelismo português é traço evidente, ainda se compram lugares com favores e a graxa funciona no século XXI. Basta ligar o noticiário e as burlas constantes dos amigos dos amigos chegam-nos intocadas. Subentende bolhas de privilégio, que são universais, mas germinaram legítimas nesta determinação de quem ia, ou não, para as novas terras "conquistadas" e com que cargos. Ainda hoje, são sempre os mesmos apelidos. Experimente enviar um currículo e descubra depois quem ficou com o lugar que era a sua cara. Se há coisa que se aprende é que a profissão não te ama de volta, por muito talento, experiência e dedicação.

À primeira oportunidade, muitos fazem o mesmo, no oportunismo não há ricos nem pobres, todos querem mais só para si, se puderem. Valoriza-se a esperteza e o sentido de oportunidade, não a inteligência ou a generosidade.

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É a falta de amor ao país que nos faz descuidar do espaço público, e que é também coisa do sul: a casa é limpa, a rua é suja. Largamos os carros em qualquer lado (em segunda fila e sem pisca!), sem pensar se tapamos uma porta, uma cadeira de rodas ou um carrinho de bebé. Somos um país de simpáticos, mas não queremos saber de quem vem a seguir. Do lixo à porta de casa, aos tapetes de beatas, ao presente do cão.

É a falta de amor ao país que nos faz tirar cursos pagos por todos e fugir para o estrangeiro sem olhar para trás, para um país sem médicos, enfermeiros, engenheiros. Sou das que levou bastonadas nas manifestações contra as propinas, e das que ficou porque estava tudo por fazer, serão estas novas gerações look at me que vão fazer mais por todos? Mmm. As gerações dos anos 80 e 90 criaram uma Lisboa cosmopolita, um bairro alto, o Frágil que depois foi o Lux, o design de moda e a ModaLisboa, as revistas femininas todas. E agora? Ainda nos arriscamos a ser fascistas se falamos em civismo ou amor ao país, os woke moralistas que são awakes da moda e nem voluntários foram alguma vez.

Depois, tudo o que é estrangeiro é melhor, clássico, aquela inveja misturada com cobiça e com subserviência, própria de país (e cabeça) pobre e periférico, rural e estreito, manigante e sobrevivente. Até os nossos emigrantes em Paris nos falam em francês a julgar que não percebemos de onde vêm. E qualquer marca moderninha cria um site todo em inglês, "para inglês ver", a velha expressão que é uma velha verdade. Tudo vem do amor-próprio, ou da falta dele. Os espanhóis e os italianos também sofreram ditaduras ferozes e a mão acusadora e persecutória do catolicismo, mas ai de quem receba em inglês num restaurante no seu país. Portugal é um país pequeno e encantador, tão mais do que um resort para os velhos ricos estrangeiros virem apanhar sol. Se a humildade é a sofisticação última, saltámos para a falta dela, onde construímos os nossos jardins de futuro?

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