A bióloga, que tem várias vezes criticado a atuação da Direção Geral da Saúde (DGS), prefere falar como cidadã do que como cientista, mas a verdade é que a Professora Auxiliar do Departamento de Biologia da Universidade do Porto e investigadora do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos - CIBIO se tornou num dos nomes mais requisitados para falar da evolução do novo coronavírus em Portugal. Especialmente desde que na edição do programa Prós e Contras dedicada ao tema, Mariana Sottomayor explicou em "10 minutos" aquilo que "horas a ver os telejornais" não conseguiram, como comentou um telespetador no Twitter. Com o número de casos no país ainda a aumentar, fomos saber o que pensa sobre a evolução pandemia do novo coronavírus em Portugal.
Como olha para a evolução da situação da covid-19 em Portugal desde o desconfinamento?
Tal como tem sido constante ao longo deste processo, o desconfinamento tem sido muito pouco acompanhado em termos de comunicação, que deveria ser clara e abrangente, capaz de chegar a toda a população. Na minha opinião esta tem sido uma falha grave e constante. E claramente continua a falhar a ação das autoridades sanitárias. Só assim se explica o que aconteceu na região de Lisboa e os surtos que continuaram a aparecer nos lares – não parecem ter sido implementadas ações preventivas, nomeadamente de testagem frequente ou de controlo das visitas. Por exemplo, no documento da DGS de recomendações no que toca às visitas aos lares, o uso da máscara não aparece no sumário das recomendações gerais, só vem no final. E muitos dos órgãos de comunicação social apenas publicaram a parte inicial, ou seja, o resumo dos principais cuidados, pelo que a necessidade essencial de usar máscara na visita aos lares não foi divulgada à população em geral.
Em termos gerais penso que a situação tem evoluído de forma razoável, muito graças à consciência e iniciativa própria de muitos dos portugueses, com zonas de descontrolo resultantes da atuação deficiente das autoridades sanitárias.
A questão do uso da máscara tem sido um dos maiores erros das autoridades sanitárias?
O erro crasso e brutal da DGS foi não implementar o uso da máscara desde o início, já que é absolutamente essencial no controlo da pandemia. Veja-se o que aconteceu no Norte. Esta região foi durante imenso tempo o epicentro da pandemia com centenas de casos diários e neste momento tem muito poucos casos. Isto aconteceu não porque a DGS tenha sido clara na sua comunicação, mas porque as pessoas, por iniciativa própria, perceberam que precisam de ter cuidado, usam máscara e mantêm uma atividade social limitada. Houve também uma ação importante das autarquias e de alguns agentes de saúde pública do Norte, mas o que tem havido muito é uma atuação de baixo para cima, tal como aconteceu no início, porque pela DGS nem tinha havido confinamento. As pessoas, as escolas, as universidades e as empresas é que começaram a fazê-lo por si.
Ou seja, ao contrário do que aconteceu na região de Lisboa e Vale do Tejo depois do confinamento com os casos a subirem em flecha…
A questão aí é que o contágio chegou a determinados grupos populacionais cujo acesso à informação é provavelmente mais limitado, e com condições de vida muito mais complicadas e propícias à transmissão do vírus. Quando se vive em casas pequenas e com muita gente, por exemplo. Mas tornou-se patente pelas notícias que foram surgindo que não havia nenhum seguimento consequente dessas situações pelas autoridades sanitárias, no sentido de quebrar as cadeias de transmissão. Só ao fim de algumas semanas de negacionismo oficial da situação é que se chegou à conclusão que não havia técnicos suficientes para fazer o serviço de orientação das pessoas infetadas. Esteve-se a tapar o sol com uma peneira durante semanas antes de atuar. A DGS tem sido, de resto, de uma inconsciência e incapacidade operacional e comunicativa constantes. Não tem sabido definir as regras em tempo útil, muito menos comunicá-las de forma eficiente, e está sempre a aligeirar as situações de uma forma que pode ter e tem tido consequências gravíssimas.
A pandemia veio mostrar o quão difícil é comunicar ciência às pessoas. Como se pode fazer passar a mensagem de forma eficaz?
Uma pandemia é um desafio de gestão operacional que ninguém percebeu ou só alguns países perceberam, como a Grécia, a República Checa ou a Alemanha. Esta última, apesar de eu não considerar que o seu comportamento seja o melhor em todos os aspetos, está a gerir a pandemia desde janeiro. Não acordou com as pessoas a chegar moribundas aos hospitais, como aconteceu em França, Itália ou Espanha. Nem a Organização Mundial de Saúde (OMS) tem sabido gerir a situação. Ainda há umas semanas dizia que quase não há assintomáticos e que estes não transmitem, o que vai contra tudo o que já sabemos. Muitas das autoridades sanitárias, OMS à cabeça, emitem constantemente comunicados de acordo com o que eles querem que seja a verdade e não de acordo com a realidade e os dados científicos. A ciência está a ser ignorada. A ciência evolui com diferentes artigos e estudos, lentamente, até haver verdadeira validade científica. Sendo uma doença/agente infeccioso novos, estamos numa altura em que a capacidade de tirar conclusões definitivas é muito limitada, seria essencial atuar segundo um princípio de precaução máxima. Mas as autoridades sanitárias, muito particularmente a OMS, anunciaram como verdades absolutas aquilo que não eram mais do que pressupostos, citando artigos que apenas referiam sugestões não validadas, que não eram sequer o objeto do seu estudo. Isso aconteceu por exemplo quando a OMS anunciou ao mundo "FACT CHECK - Covid-19 is NOT airborne", ou seja, a COVID-19 não é transmissível por aerossóis (gotículas de tamanho mínimo que podem viajar pelo ar até distâncias muito superiores a 2 metros e permanecer a pairar por períodos prolongados). Esta afirmação peremptória da OMS de que a doença não é transmissível por aerossóis não tinha qualquer suporte científico, nenhum dos artigos citados nos comunicados da OMS dessa altura conclui ou sequer sugere que o vírus não se pode transmitir dessa forma. Sendo uma doença nova e com carácter de pandemia, jamais se devia ter dito uma coisa dessas, muito menos ter dado instruções anti-transmissão ao mundo inteiro com base nessa conclusão! Afirmação que, como se sabe, está agora a ser posta em causa por inúmeros estudos científicos, que indicam precisamente que o vírus da COVID-19 é transmissível por aerossóis. Conclusão: pelo menos em espaços fechados, o distanciamento de 2 metros não tem eficácia anti-contágio!
Outra coisa que é muito grave é o facto de não ser explicado claramente às pessoas a importância das máscaras para evitar a transmissão, que é acima de tudo evitar a emissão de gotículas infetadas, particularmente ao falar, por potenciais assintomáticos. Sendo que potenciais assintomáticos somos todos. Pior, na Assembleia da República, que é uma situação descrita como de potencial supertransmissão, os deputados e governantes continuam a discursar sem distância e sem máscara quando já se sabe que as gotículas emitidas (aerossóis) ficam a pairar durante períodos longos de tempo e podem disseminar-se a distâncias de muitos metros. É um comportamento de alto risco e é profundamente deseducativo, pois aparece diariamente na televisão. Como é que se quer que depois as pessoas ponham as máscaras? Só põe quem tem medo! Mas como pensam que é para se proteger a si e não aos outros, é muito frequente ver as pessoas baixar a máscara para falar, exatamente a situação de emissão que se pretende prevenir com a máscara. E as pessoas que têm uma vida difícil e que não sabem sequer se conseguem comprar pão, têm lá tempo ou espaço mental para sequer ter medo da Covid-19! Se essas pessoas ligam a televisão e vêm toda a gente sem máscara a mensagem não passa. No entanto, neste momento já se vê cada vez mais entrevistados com máscara na televisão, o que é positivo.
Quais os desafios de comunicação nesta fase? Como se pode chegar às pessoas de facto?
Nesta fase como em todas, o que os governos deviam ter feito era ter criado uma equipa multidisciplinar em termos científicos e em termos de competências operacionais, nomeadamente com pessoas ligadas à comunicação, à engenharia operacional e à gestão de massas. O que aqui está em causa é gerir o comportamento de milhões de pessoas, é um desafio hipercomplexo. Nós confinámos durante mais de dois meses e todos os dias víamos na televisão políticos desconfinados e quase aos abraços, sem cumprir a distância física. Nessa altura a DGS dizia que não era preciso máscara e começou mesmo por dizer que as máscaras não protegiam os médicos e enfermeiros, e como tal estes não precisavam de as usar. Não lhes passou pela cabeça que os próprios técnicos de saúde ficariam contaminados e iriam começar a transmitir a doença aos doentes, o que aconteceu, muito contribuindo para a elevada taxa de mortalidade dos primeiros meses de pandemia em Portugal.
Na sua opinião, as falhas de comunicação têm sido constantes numa altura em que a mensagem devia ser clara e direta?
A DGS tem sido de uma inconsciência mortífera. Ter-se dito por exemplo, quando começaram os surtos na região de Lisboa, que se tratava de jovens e que por isso não havia problema, foi outro erro gravíssimo. Pois sabemos que existem pessoas jovens perfeitamente saudáveis que podem desenvolver doença grave, ficar com sequelas, e até morrer. Existem predisposições genéticas que já começam a ser compreendidas mas ainda não estão divulgadas, embora não deva demorar a que tal aconteça. Não podemos aligeirar a situação, ela é grave e não está controlada. Se tivéssemos tomado todas as precauções que deviam ter sido tomadas desde o início, não teríamos tido metade dos mortos que tivemos.
Nesta fase já seria de esperar que o número de casos já estivesse mais controlado?
Muito mais. E toda a operacionalidade no terreno já devia estar mais bem montada. Isto já era de prever, que nos locais em que há grandes densidades populacionais a viver em más condições o vírus seria muito difícil de controlar. Onde é que este vírus chega primeiro? Às pessoas que viajam para o exterior, como aconteceu aqui no Norte quando passamos por uma altura de feiras e encontros internacionais. Como não havia nenhum controlo nem testagem em condições, essas pessoas trouxeram o vírus e começaram a contagiar os seus contactos. A doença já estava em disseminação comunitária e só se testava quem tinha vindo de fora, não se testavam pessoas com imensos sintomas nem se lhes davam indicações de quarentena. Já para não falar dos assintomáticos. Por isso o surto inicial atingiu as dimensões enormes que se observaram no Norte. Em Lisboa não se viajou tanto naquela altura do ano por isso a doença entrou devagarinho e foi facilmente controlada pelo confinamento numa fase inicial de propagação. Mas claro que chegando aos subúrbios de Lisboa, às classes económicas mais baixas, com condições de vida e cohabitabilidade altamente propensas ao contágio, os números poderiam disparar. Isto era óbvio que ia acontecer e devia ter sido previsto. Não só não o foi, como foram precisas semanas e o bloqueio do Reino Unido para se começar a agir. Claro que os transportes públicos também podem ser um foco de transmissão, mas estando as pessoas de máscara, mesmo próximas, penso que não será por aí. O problema são as condições em que as pessoas vivem. Neste momento devia haver distribuição maciça de máscaras e de viseiras nos bairros carenciados e uma ação imediata junto dos núcleos familiares dos positivos. Obviamente quando aparecem casos positivos numa casa pequena com muitos habitantes o núcleo familiar não escapa. Nessas situações, as pessoas deviam ser levadas para locais específicos requisitados pelo Governo para que as pessoas possam curar-se sem contagiar quem está próximo. E os familiares deveriam ficar todos em quarentena e ser testados várias vezes, em vez de continuar a ir trabalhar e só serem testados se tiverem sintomas! São precisas medidas sérias e uma ação mais educativa.
Quais deveriam ser os próximos passos na gestão da Covid-19 em Portugal?
Eu continuo a achar que tem de ser criado um órgão específico para a gestão da pandemia com pessoas especializadas não só nos aspetos científicos mas também em comunicação, na orientação de massas e operações multifactoriais, como psicólogos e gestores operacionais. E tem de haver trabalho junto das populações através dos agentes de saúde e das juntas de freguesia. Os vídeos que existem por exemplo no site da DGS são patéticos e estão completamente desatualizados. Têm de ser vídeos bem feitos e que passem constantemente na televisão. O dinheiro devia ser gasto na diminuição da disseminação da pandemia porque tudo isso vai diminuir os impactos. Ou seja, o que eu penso que deve ser feito, devia ter sido feito desde o primeiro momento, e continua sem ser feito, é investir o máximo na PREVENÇÃO! Tem-se investido fortunas a tentar reparar os impactos da pandemia e quase nada na prevenção, que passa pela comunicação eficiente de regras claras devidamente fundamentadas, e pelo reforço dos agentes de saúde pública operando segundo metodologias bem definidas, eficientes e plásticas, que quebrem de facto as cadeias de transmissão, especialmente as silenciosas (os telejornais do início de agosto referiram que cada ARS usava metodologias diferentes, umas mais eficazes do que outras, o que é incompreensível).
Ao longo do seu percurso, o facto de ser uma mulher na ciência tem-lhe trazido mais dificuldades?
Quando fui convidada para o Prós e Contras, da RTP, eu pedi para ser convidada como cidadã. A minha especialidade científica não está relacionada com vírus embora seja bióloga molecular e celular e tenha uma visão de conjunto dessa área. Mas eu acho que o facto de me importar imenso vem do facto de ser mulher. Eu não consigo ver pessoas a sofrer ou ver ameaças à vida das pessoas e ficar indiferente. Essa consciência do sofrimento dos outros talvez seja um instinto feminino, não sei, sei que não me deixou ficar parada, tive de escrever, porque achava que não se estava a fazer o que era necessário para evitar muito sofrimento. Foram os artigos que escrevi que levaram ao convite para os Prós e Contras. Acho que as pessoas deram importância à minha voz porque tenho essa base científica, o que também me permitiu explicar as coisas de uma forma que tornou claro aspetos que nunca tinham percebido antes em horas de notícias. Isso tem a ver também com o facto de eu ser docente.
Pode dar um exemplo?
Todas as notícias e informação, nomeadamente da DGS, para explicar a COVID-19 e o que é o seu agente infeccioso, começam sempre por dizer que se trata de um vírus e elaboram a partir daí. Se as pessoas não sabem o que é um vírus, fica tudo comprometido pela base. O que fiz foi explicar o mais simples. O que é um vírus, o que é uma doença respiratória, como é que ela se transmite, etc., sempre de uma forma clara. Tem de haver uma comunicação oficial pensada. Tem de existir liberdade para se explorar e divulgar diferentes ideias, a estratégia da imunidade de grupo, as possíveis medidas e estratégias de gestão da pandemia, etc., mas tem de existir uma versão oficial muito bem definida e cautelosa, bem fundamentada, e continuamente acessível aos 10 milhões de portugueses. É como educar uma criança. A informação correta tem que ser explicada e transmitida continuamente. E claro que, neste caso, a posição oficial vai ter que evoluir com a evolução do conhecimento. Sendo essencial que, à medida que há informação que vai ficando obsoleta, esta seja retirada. Continua a haver cartazes da DGS acessíveis no seu site e colados por todo o lado que estão obsoletos.
Que outros conselhos são importantes para quem usa máscara no local de trabalho?
Todas as pessoas que têm que usar máscara o dia inteiro no seu trabalho devem contrariar a tendência para fazer inspirações e expirações muito curtas, e devem fazer intervalos regulares em que retiram a máscara e respiram livremente no exterior, nem que seja por alguns minutos. Fazendo algumas inspirações profundas, para renovar todo o ar dos seus pulmões. Isto porque o uso prolongado da máscara pode levar a uma eficácia menor da respiração, com cansaço e outras possíveis complicações. Deverão também substituir a máscara uma ou mais vezes durante o dia, dependendo do esforço e condições do seu trabalho.
O momento das refeições em empresas e escolas (quando estas abrirem) são momentos de elevadíssimo risco de supertransmissão, em que um único positivo pode infetar um número elevado de pessoas. Por muito que seja totalmente anti-natura e desumano, a única maneira de minimizar o risco de transmissão durante as refeições é que as pessoas mantenham o distanciamento e não falem enquanto estão a comer. Sabemos neste momento que falar pode ser praticamente como tossir no que diz respeito à transmissão. O ideal será que as pessoas se habituem a usar a máscara em todos os momentos em que não estão a comer e falar apenas quando têm a máscara colocada.
O mais importante é que o Governo invista de todas as formas e o máximo na PREVENÇÃO! Todo o dinheiro investido na prevenção resultará em vidas salvas e muito mais dinheiro poupado à posteriori em impactos sanitários, sociais e económicos.