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"Esta epidemia é também uma epidemia do medo"

Especialista em saúde pública e epidemiologia, Inês Fronteira discorre sobre a evolução da Covid-19 em Portugal, perspetiva o Natal e reflete sobre as outras pandemias desta pandemia: a do medo e a da desinformação.

13 de novembro de 2020 às 15:15 Rita Silva Avelar

Professora auxiliar de Saúde Pública e Epidemiologia no Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa há 9 anos, mas também investigadora nesta e noutras áreas relacionadas, Inês Fronteira conhece bem os meandros científicos da evolução da Covid-19 em Portugal. Mas, e como enfermeira que também foi - embora não exerça há mais de uma década - sabe o quão exigente do ponto de vista humano esta profissão pode ser.

Entre junho e setembro, Inês Fronteira foi ainda diretora de Serviços de Informação e Análise da DGS, e tráça-nos agora um retrato de como a covid-19 tem evoluído em Portugal e do que poderemos esperar do futuro próximo. Pelo meio, não deixa de dar o seu ponto de vista sobre as epidemias que se cruzam com esta, a da desinformação e do medo, e alerta que aquilo que vivemos também veio agravar problemas de solidão, de abandono, de pobreza, de violência e sobretudo de saúde mental.

Vivemos uma situação de pandemia há vários meses. Como vê a evolução do vírus em Portugal?

Comparativamente a outros países europeus e de outros continentes, Portugal registou os primeiros casos de infeção por SARS-CoV-2 mais tardiamente, quase dois meses depois de países como Itália, Espanha ou os Estados Unidos. Tal teve um efeito de alguma forma "protetor": os portugueses estavam cientes do impacto desta nova doença nos serviços de saúde e muitos optaram por um recolhimento voluntário. Uma semana antes de ser decretado o confinamento em Portugal já muitos pais não deixaram as crianças ir à escola e quem podia ficou a trabalhar a partir de casa. As pessoas estavam assustadas e protegeram-se. O confinamento que vivemos em março e abril foi fundamental para que os serviços de saúde se organizassem na resposta à Covid-19 e tornando-a mais efetiva e eficiente, mas foi, sobretudo, fundamental para evitar a transmissão da doença na comunidade, o que se conseguiu.

E o desconfinamento? Achámos que era o fim da pandemia demasiado cedo?

O desconfinamento cauteloso e progressivo e o verão, com uma descida da incidência do SARS-CoV-2, levou a que se instalasse uma mensagem em Portugal, mas também nos restantes países europeus, de "que o pior já tinha passado". Era necessário reavivar uma economia, nacional, mas também europeia, que se baseia na livre circulação das pessoas, e em que o turismo tem uma preponderância importante. Penso que existiu uma preocupação grande do Governo em inverter a tendência de depressão económica, de desemprego e de aumento das assimetrias sociais e económicas entre os portugueses. Foi nesta altura, também, que se iniciou a politização da epidemia em Portugal, o que em nada veio ajudar no estabelecimento de uma estratégia clara e inequívoca para lidar com este desafio para o qual a ciência ainda não consegue encontrar todas as explicações e em que às sociedades desenhadas para massas é pedido que se viva com a aconselhada distância social.

O que é que este aumento dos casos nos vem mostrar? O que é que começou a correr mal?

O aumento dos casos de Covid-19 desde setembro mostra-nos que temos de aprender a viver com o SARS-CoV-2 pelo menos este inverno porque não podemos mais deixar que as crianças e os adolescentes não frequentem a escola; porque não temos todos os mesmos meios, nem todos temos internet; porque as escolas fornecem a muitas crianças a alimentação e o espaço para fugirem a situações familiares complexas e a pobreza. Também não podemos deixar de trabalhar nos sectores que agora têm de suportar a economia, já que o turismo enfraqueceu. Não podemos regredir nos serviços à população, nesta reengenharia forçada dos processos de trabalho. Não podemos deixar que aquilo que o trabalho e a escola têm de fundamental para a saúde humana – as relações sociais – seja mais um factor detrimental para a saúde dos portugueses.

O que esperar do inverno?

A evolução da epidemia em Portugal vai depender de todos de nós, de mim e de si, mais do que qualquer Governo ou autoridade de saúde. O inverno vem aí e é de esperar que a situação se agrave – pela concomitância de outras infeções respiratórias que são em tudo semelhantes à Covid, pelas condições que podem favorecer a transmissão, pelo número elevado de casos que já temos.

Como disse, a evolução da epidemia vai depender de cada um de nós: vai depender de todos usarmos a máscara quando em proximidade, mesmo que seja com a nossa família ou amigos, de não sairmos de casa se tivermos sintomas sugestivos de Covid-19, de contactarmos as autoridades de saúde, via SNS24, se precisarmos de ajuda e antes mesmo de recorrer às urgências, de nos abstermos de festas e eventos.

Havia mais que poderíamos ter feito para travar a curva, no início?

Olhando agora para trás, todos nós temos várias ideias sobre o que poderíamos ter feito diferente para travar a curva mas nenhum de nós sabe se o resultado seria diferente, nem se conseguiríamos implementar essas medidas. Certamente poderíamos ter feito diferente mas prefiro pensar que essa avaliação será muito mais correcta se a fizermos no final desta epidemia. Ainda não é momento de olharmos para trás porque isso só nos enredará e toldará a capacidade de olhar para a frente e de responder a esta epidemia.

Do ponto de vista da ciência, quão imprevisível pode ser um vírus como este novo coronavírus?

Não sei responder a esta questão.

Foi consultora para a Direção-Geral de Saúde de Portugal. Qual é a sua perspectiva sobre as medidas da DGS, como especialista em saúde pública e epidemiologia?

Fui Diretora de Serviços de Informação e Análise entre junho e setembro de 2020, pelo que prefiro não comentar as medidas da DGS por não ter o distanciamento suficiente para um julgamento imparcial.

Quão articulada está a DGS com os media? Sente que existe um desfasamento de realidades, ou em Portugal vemos uma concordância/coerência?

Esta epidemia é diferente em muitos aspectos e um dos mais diferenciadores é o da comunicação. Desde março que a vida de muitos portugueses se suspende nos "números da Covid". Todos os dias, nos media, pululam o número de casos, de mortos, de ativos, de recuperados, numa cacofonia de informação que, na minha opinião, é pouco efetiva. Políticos, portugueses comuns vivem na dependência destes números que, na sua essência diária, pouco ou nada nos dizem. Que proveito tiramos nós, cidadãos comuns, de tudo isto? Recorro a um exemplo de Henry Levy, autor do livro "Este vírus que nos enlouquece". Imagine que existiam painéis nas estradas a informar os automobilistas do número diário de feridos, de mortos, de vítimas. Faz sentido? Esta epidemia é também uma epidemia do medo.

Quais seriam as alternativas a estes moldes de comunicação?

Penso que as autoridades de saúde deveriam repensar este modelo de informação. Poderiam disponibilizar online toda a informação transformando esta vertente da comunicação mais reactiva – os interessados procuram.

Outro desafio que esta epidemia nos trouxe em termos de comunicação foram os novos meios de comunicação – as redes sociais. A comunicação já não se faz apenas nos media tradicionais onde sempre existiram mecanismos de controlo da qualidade. Nas redes sociais, o desafio é duplo: primeiro, passar as informações relevantes para que as pessoas tenham o conhecimento suficiente para que, com os recursos que possuem, lidarem eficazmente com a epidemia, aquilo que se chama literacia em saúde; segundo, e muito mais difícil, combater a desinformação. Esta epidemia é também uma epidemia da desinformação.

Que comportamentos devemos, mais do que nunca, adotar nesta fase? Como controlar o comportamento de milhares de pessoas no ponto em que estamos?

Todos temos de nos compenetrar que somos responsáveis por esta epidemia. Como tal, depende de nós a sua evolução. Não conseguimos controlar o comportamento dos outros, mas conseguimos controlar o nosso e é nisso que nos devemos focar. Que a vida mudou mas que podemos continuar a apreciar a vida, mais protegidos, com maior respeito pelos outros.

Devemos usar máscara quando estamos próximos de outras pessoas que não daquelas que vivem na nossa casa. É preciso que todos compreendamos que as máscaras que usamos, as máscaras "comunitárias", não nos protegem a nós mas aos outros. Se todos usarmos, protegemos e somos protegidos.

Lavar as mãos, adoptar a etiqueta respiratória, manter a distância social e todas as regras que são recomendadas pelas autoridades de saúde.

Há alguma coisa que não estejamos a fazer do ponto de vista da higiene que deveríamos?

Não.

Qual a sua opinião sobre a medida que visa confinar só os mais velhos?

Discordo. John Donne, um poeta inglês do século XVI/XVII escreveu que "Nenhum homem é uma ilha isolada" e esta pandemia veio exatamente demonstrar isto, independentemente da localização geográfica, da cultura, do contexto social e económico. Somos seres de relação que precisamos de afeto, de estar próximos, de sentir, de cheirar. Principalmente nas sociedades ocidentais e mais desenvolvidas, as pessoas de idade perderam relevância social, são esquecidas e confiná-las apenas agravaria o seu isolamento, a sua solidão. Que sociedade é esta que para proteger isola aqueles que precisam de afeto e carinho, que, em muitos casos, já não têm mais ninguém senão a sua família? Quem são os mais velhos? Ditaremos uma idade acima da qual serão obrigados a ficarem isolados? Será acima dos 65 anos? E porquê os 65 e não os 66 anos? Ou os 59? Ou os 80? Já lhes perguntámos se querem ser isolados? Por que motivo não os ouvimos? Não estaremos a ser demasiado paternalistas? Não será possível netos visitarem avós? Será que nesta sociedade tão avançada, não conseguimos inventar um processo que permita esta interação em segurança?

Iremos ter um Natal normal como quer o primeiro-ministro? Que Natal normal será esse? Toda a gente junta como de costume?

Não sei o que acontecerá no Natal. Do ponto de vista epidemiológico, um Natal igual aos dos outros anos, aquele Natal que conhecemos, é muito arriscado. No natal há movimento de pessoas e concentração de pessoas, condições que favorecem a transmissão do vírus. Se não houver restrições, e se se manter o panorama atual com mais de 120 concelhos com incidências elevadas, o risco de transmissão do vírus irá aumentar o que significará mais casos, mais internamentos e mais pressão para os serviços de saúde. O aumento da pressão nos serviços de saúde significa, em última análise, que pode ser necessário tomar decisões "à cabeceira" dos doentes. Numa sociedade socialmente justa e equitativa temos o dever de evitar esta situação.

Interessa-se pelo impacto do trabalho no bem-estar dos profissionais de saúde. Como é que esta pandemia vai afetar a saúde mental e física deste grupo?

A pandemia vai afectar a saúde de todos, não apenas dos profissionais de saúde. A vida de todos nós alterou-se por completo: crianças, adolescentes, adultos e idosos; e alterou-se principalmente na nossa vida de relação. Somos animais sociais e esta pandemia exige-se que nos refreemos nos contactos. Mas esta pandemia também veio agravar problemas de solidão, de abandono, de pobreza, de violência, entre outros, e todos eles têm um profundo impacto na saúde mental. Por outro lado o confinamento, o "ficar em casa" agravou situações pre-existentes como diminuição da mobilidade e agravamento de algumas doenças crónicas, neste caso, com um denominador comum de medo, também.

E relação a quem está na linha da frente?

No caso específico dos profissionais de saúde, talvez possamos falar de um duplo fardo desta pandemia. Em primeiro lugar, são pessoas como nós, têm família, filhos e pais e enfrentaram exatamente os mesmos desafios (a diminuição das interações sociais, a restrição do voluntarismo, e os outros que já mencionei). Em segundo lugar, os profissionais de saúde, pelo facto de serem profissionais de saúde, por lidarem com vidas humanas, por terem trabalhos emocionalmente exigentes encontram-se à partida, mais vulneráveis a problemas de saúde. No primeiro caso, os profissionais de saúde possuem exatamente os mesmos recursos que todos nós; no segundo, a sua formação ajuda-os a encontrar mecanismos para lidar com essas questões.

De qualquer forma, esta pandemia trouxe vários desafios adicionais aos profissionais de saúde: o medo de ser infetado, de infetar os familiares, de infetar os doentes e, para aqueles que trabalham nas unidades de cuidados intensivos, por exemplo, o medo de decidir entre a vida e a morte. Aos quais acresce o risco de esgotamento físico e psicológico, quer pela exigência em recuperar o tempo perdido, quer pela necessidade de substituir colegas, por exemplo.

Começa-se a falar na necessidade de medir o impacto da pandemia nos profissionais de saúde, e a nível da União Europeia há esforços nesse sentido. Penso que seria fundamental para o SNS português implementar nos serviços de saúde ocupacional programas de acompanhamento dos profissionais de saúde, em particular na área da saúde mental.

Como enfermeira que foi, o que sente que continua a ser menos valorizado nesta crise de saúde que vivemos quanto ao papel dessa classe em particular? 

Apesar de não exercer enfermagem há 16 anos, altura em que optei pela carreira universitária, continuo a ser enfermeira. A valorização dos enfermeiros tem de acontecer de dentro para fora. Não podemos pedir para ser valorizados se não nos valorizamos, se não demonstramos pela nossa prática, pelos cuidados que prestamos, pela forma como cuidamos das pessoas, pelo que sabemos que temos valor. À semelhança do uso das máscaras, a valorização da enfermagem começa por cada enfermeiro.

Há que perceber que cada profissão tem uma identidade e um papel que se pode completar e acrescentar, deixar de lado as quizilas corporativas e pensar no que é melhor para o país, para o Serviço Nacional de Saúde e para as pessoas. O que tem faltado nesta crise na saúde é compreender exatamente isto, quer em relação aos enfermeiros, quer em relação aos outros profissionais de saúde.

A Humanidade parecia não estar preparada para um vírus desta natureza. Deve esta ser uma lição de higiene e saúde pública para o futuro?

A Humanidade não estava preparada para esta pandemia e pode correr o risco de continuar a não estar. As epidemias serão sempre uma realidade para qualquer população animal e a população humana não é exceção. A diferença atualmente é que o potencial de disseminação é muito maior porque o modo de vida das sociedades contemporâneas assenta num modelo de grande mobilidade das populações.

O mais curioso desta epidemia, em termos de higiene e dos princípios básicos da saúde pública, é que nos relembra aquilo que há séculos sabemos - que medidas tão simples como a lavagem das mãos, o resguardo quando estamos doentes ou com sintomas respiratórios e a não aglomeração de pessoas continuam a ser medidas verdadeiramente importantes e que salvam vidas, o desafio é implementar estas medidas numa outra (nova) era.

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