Como viajar sozinha em segurança?
Uma viagem sem ninguém a quem prestar contas é uma experiência enriquecedora e inesquecível. Não deixe que os medos e as inseguranças de ser mulher a impeçam.
Nos últimos anos, ainda mais com a pandemia de Covid 19, que pôs alguns de nós a pensar fundo e outros tantos a mudar de vida, triplicaram as ofertas de serviços nas práticas místicas milenares. Dantes eram esquecidas, até vilipendiadas, eram coisa de malucos, hoje são uma moda em crescimento, para o bem e para o mal. E agora que Portugal foi descoberto pelo slow living natural, num tempo em que a globalização atropela tudo em inglês, nunca tivémos tantos simpatizantes. Por isso, tem ainda mais valor quem não faz de tudo negócio para inglês ver e americano pagar. Por isso, nada de mais feliz para um praticante sério de yoga há mais de duas décadas do que encontrar the real thing, sem atropelos à essência. Lembro-me, em adolescente, filha de mãe teósofa, de ler os livros do monge budista Lobsang Rampa nos quais ele repetia: "Desconfie sempre de quem lhe pede muito dinheiro por um trabalho espiritual."
Os retiros da escola Sivananda são o exemplo acabado das coisas generosas e honestamente bem feitas. Por isso, quando chegamos a Minde, uma casa em madeira, despretensiosa no meio do bosque, com pessoas a acordar demasiado cedo para um sábado, sentimo-nos em casa. Somos logo chamados a estar presentes, no momento, a despertar lentamente e a libertar a semana, mãos para cima, introspeção e mergulho interno para libertar toxinas, e ficamos em silêncio uns dez minutos, o que é sempre um lugar de espanto neste mundo demasiado. "O retiro é um recreio da consciência", diz Surya, que orienta a aula. "O sítio onde o nosso lado infantil vem experimentar coisas, práticas e técnicas, e descobrir-se a si próprio, lados que estão menos treinados no dia a dia."
A ideia é desfrutar do fim de semana, enquanto se aprendem técnicas que, a médio-longo prazo, trazem mais saúde e equilíbrio. Um retiro deve ser "um momento bonito, agradável e confortável, todos juntos, onde podemos perceber o que nos pode ajudar, e não ver isto como um trabalho, esse já temos que chegue". Muitas vezes esperamos que os retiros sejam para descansar, tudo pacífico e silencioso, e é verdade, mas às tantas concluímos "que sonhamos mais e imensos pensamentos vêm à superfície", acrescenta Surya. "Como nos apetece tirar o suor e o pó do corpo depois de uma viagem, todos devíamos ter, pelo menos semanalmente, este duche mental."
Os asanas, que são as posturas de yoga, e a respiração, estão pensados para nos ajudar a tomar esse duche interno e "limpar o congestionamento de imagens e experiências que ainda não foram digeridas, mandadas embora. Mas nunca ninguém nos ensinou a fazer isso", como na Índia, na China e no Japão, culturas que valorizam o recolhimento e a discrição como ponto de partida e de chegada. Trata-se de procurar um certo estado "contemplativo" da mente, à qual se dá espaço e tempo, para se limpar um pouco, para se abrir. É no silêncio que se ouve melhor e mais longe.
Surya significa sol, simbolicamente a nossa consciência interna, e é o nome de paz de Isabel Badouin Serrano, que estuda yoga desde 2002. Foi para a Índia formar-se como instrutora no centro Sivananda Vedanta, no intervalo dos seus estudos em Sociologia e Psicologia. Dá as aulas de hatha yoga, atenta e paciente, como os melhores. Niranjana, ou seja, Maria Helena Abreu, é particularmente talentosa a trabalhar a respiração (pranayama), o relaxamento e a meditação. Começou a praticar yoga aos 15 anos e formou-se como professora em 2003, ambas fundaram a Escola S(h)ivananda, uma escola internacional de yoga, que tem sede no Areeiro, em Lisboa.
Os Centros Internacionais Sivananda Vedanta existem por todo o mundo. O original foi fundado por Swami Sivananda Saraswati, nascido em 1887, nas castas altas da Índia, um médico que se tornou líder espiritual, filósofo, escritor e instrutor de yoga, filho de um sacerdote do Hinduísmo (bramânico), que o próprio estudou, assim como a Bíblia, durante a Índia britânica. Formou-se em medicina, fundou um jornal que lhe pagou os estudos, e foi para a Malásia dirigir um hospital. Um dia estava junto ao leito de um corpo que já não conseguia salvar e pensou que queria ser "um médico da alma" e ter respostas para o que acontece a seguir. Deixou tudo e foi viver para um vale nos Himalaias onde fundou uma ordem monástica num ashram (mosteiro) em Rixiquexe para fazer um estudo mais profundo em yoga, meditação e filosofia vedanta da Índia.
Mas agora que o Ocidente está a despertar para estas filosofias, elas começam a chegar deturpadas e marcadas por um forte mercantilismo. Por isso, e mais uma vez, é extraordinário e refrescante encontrar quem o faça sem luxos, da forma mais tradicional, autêntica e humana. Este trabalha o hatha yoga, as raízes mais tradicionais que incidem nas técnicas fundamentais do yoga, uma técnica ancestral que inclui a respiração (pranayama), o exercício (asanas) e o relaxamento (yoga nidra). Através destes, trabalhamos não só o corpo, a sua elasticidade, força, alcance, resistência à dor, tudo isso, mas as emoções e os pensamentos que afloram quando nos focamos no essencial. Como complemento, cantam-se mantras (algumas escolas dispensam-nos ou ficam-se apenas pelo Om), que nos ajudam no relaxamento e na concentração, e ganham outro estatuto e força na meditação ao cultivar um pensamento positivo. E a alimentação é vegetariana, isto é, baseada na não violência como professam os budistas, mas não é estrita nem castradora.
O que recebemos nestes três dias é um workshop de técnicas simples para o bem-estar, que começa "numa ausência de desconforto, de dor ou de doença. Um bem-estar que não está só no corpo, mas nas nossas emoções", explica Surya. Fazemos meditação de energia e atenção que pretende que sejamos menos duros connosco, "é sair da energia de dureza que é de bloqueio, e esses bloqueios espalham-se pelo corpo", diz Niranjana. Também fazemos auto-massagem em pontos onde a energia parece bloqueada: "Quando uma parte do corpo não está equilibrada, acumulam-se pontos de tensão dolorosos que precisam da nossa atenção", acrescenta. Para "aliviar desperdícios metabólicos onde se fixam as toxinas, e ajudar a fluir a energia positiva". O maxilar tenso, e que range ao dormir, e as têmporas a latejar dão-nos alerta. E aqui aprendemos a encontrar aquele ponto nas clavículas ou nas costelas. Em nenhum momento nos sentimos doutrinados, são ferramentas generosas e "ficamos a ser os nossos melhores médicos, porque aprendemos a reativar a energia e a libertar as tensões".
Este retiro também ensina exercícios de respiração simples ou a massajar os pés à noite e a importância de reparar no que parece não precisar da nossa atenção. "Temos padrões de respiração muitas vezes ligados a padrões de pensamentos. Parar e reparar na respiração e mudar de direção pode ser fundamental para a nossa vida. Tem imensos benefícios biológicos aos quais os orientais dão imensa importância, do yoga ao tai chi, porque estão ligados à nossa vitalidade. Quando a temos, tudo flui e a vida acontece sem esforço". Respirar bem e fundo é uma técnica meditativa e dá uma certa "moca", porque o oxigénio parece chegar a todo o lado, uma sensação que os ioguis conhecem bem. A respiração tem muito impacto no nosso estado energético, mental e psicológico, na nossa disposição. Quando nos custa respirar é um óbvio sinal de falta de vitalidade. Meia hora de Pranayama traz ao de cima o que o sistema nervoso precisa: catarse. Vai ao fundo e toca as emoções e os pensamentos como agulhas que fazem acupuntura no sistema nervoso e periférico. Primeiro liberta e depois empodera, porque o fluxo da respiração oxigena e energiza.
Fazemos duas aulas de yoga por dia, de manhã e ao fim da tarde: "O mais importante é trazer consciência aos processos internos, às emoções, às dores, e tensões, e sabê-lo é o começo", diz-nos Surya pela fresca. Por isso, é importante percebermos, cada um de nós, onde e como o nosso corpo está, a cada dia, para percebermos até onde podemos ir. E isto podia ser uma metáfora das nossas vidas. Cada aluno tem o seu nível de prática, alguns há décadas, outros começaram agora. "Quando deitamos o lixo, não o abrimos e analisamos cada coisa, certo? Às vezes é só deixar irem pequenas coisas que criam tensões, acumuladas e sedimentadas ao longo dos anos. É deixá-las sair calmamente, não temos de perceber tudo logo", acrescenta sabiamente. Depois das saudações ao sol mais clássicas, experimentamos os uddiyana bandha, exercícios musculares guiados pela respiração que promovem uma limpeza do sistema digestivo e de bloqueios e raivas vários que ali se fixam, ou não fosse o sistema digestivo um barómetro do sistema nervoso. São técnicas muito antigas que os yoguis mais sérios praticam todas as manhãs, em jejum.
Depois de jantar encontramo-nos para a meditação, com mantras que vibram "no nosso sistema e órgãos, é uma terapia de som. Mantra significa parar de pensar, diminuir a agitação mental para que esteja focado numa única coisa que é pronunciar um som que ativa e desbloqueia a energia interna. E cria um fluxo de respiração longa que aquieta a mente e induz a um relaxamento generalizado enquanto ativa o sistema nervoso parassimpático, por isso os mantras têm um poder muito grande", avisa Niranjana. Cantamos mantras juntos, só quem quiser, e voltamos a deitar o corpo em total imobilidade, relaxados, e focamo-nos na respiração fazendo um percurso mental pelo corpo todo. É uma viagem deliciosa, a meditação.
Há uma partilha de experiências, claro, mas mais uma vez só alinha quem quer. Um dia em retiro parecem três, por isso começamos a abrir-nos para os outros também. Nunca se força nada, por isso os bichos do mato são igualmente bem vindos. No último dia, amanhecemos a focar a nossa atenção, e percebemos mais claramente o circuito dos nossos pensamentos que vão e vêm, ao mesmo tempo que enraizamos o corpo, sentados, a exercitar a respiração, que se deve fazer no abdómen (a respiração alta estimula o sistema nervoso). E depois o silêncio, e depois os mantras milenares que induzem estados de elevação e descontração, porque são uma espécie de massagem com som, pois "vai direto ao corpo vibratório e à mente consciente." Meditar é perceber o nosso estado mental e começar a fazer escolhas, é testemunhar, não julgar. Observar os pensamentos, as emoções, os medos e as raivas que nos condicionam. É um espaço de observação que nos dá liberdade para não seguir os impulsos e os pensamentos apenas, irracionalmente, antes de tomar decisões mais conscientes. "Dá-nos liberdade para sermos nós próprios e não uma programação de muitos anos, da sociedade, da educação, do meio onde crescemos. Os asanas e a meditação levam mais fundo essa consciência." É um lugar de serenidade e de liberdade, que é o que mais falta. Tem tudo aqui, e ainda se arrisca a fazer novos amigos.