“Destralhar” a alma: porque é que arrumar nos faz sentir bem?
Querendo arrumar as ideias sobre o fenómeno Marie Kondo, fomos tentar perceber porque é que limpar, arrumar e organizar, no geral, é tão importante para a mente e, atrevemo-nos a dizer, porque é que faz tão bem à alma.
06 de junho de 2019 às 07:00 Rita Silva Avelar
Antes da proclamada "era Marie Kondo", uma casa era só uma casa, um armário apenas um armário, um closet simplesmente um closet e uma gaveta uma mera gaveta. Todas essas estruturas de arrumação não passavam disso e sempre foram destinadas a vestuário, calçado, acessórios, livros e todas-as-coisas-sem-categoria que se acumulam em casa. Estávamos na "pré-era Marie Kondo", convencidos que o processo de arrumação de uma casa, de um closet ou de uma só gaveta não tinham interferência emocional nas nossas vidas. Este poderia ser um primeiro parágrafo introdutório e hipócrita, mas não. Todos sabemos (sim, sabemos…) bem o que é ficar à beira de um ataque de nervos perante uma pilha de roupa por arrumar e sem espaço para o fazer ou ficar com a sensação desesperante, quando estamos prestes a sair de casa, de não sabermos que sapatos calçar (entre os para lá de muitos que temos acumulados) que combinem com a roupa que escolhemos. Nós não queríamos, talvez, admitir que organizar a casa é fundamental para organizar também a logística da vida no geral – e equilibrar a nossa saúde mental. Por isso se diz que "uma casa arrumada é uma cabeça arrumada".
Especialista em organização pessoal e escritora e criadora do método [de arrumação] KonMari, Marie Kondo (1984, Tóquio) foi considerada pela TIME uma das pessoas mais influentes do mundo. A japonesa, de 34 anos, é autora de vários livros que já venderam milhões de exemplares, entre os quais Arrume a Sua Casa, Arrume a Sua Vida (de 2011, um bestseller do The New York Times) e Alegria! (de 2016). É também a mentora da série televisiva de oito episódios Tidying Up with Marie Kondo, lançada a 1 de janeiro deste ano, onde Ms. Kondo ensina às famílias o seu método de arrumação para que estas possam passar mais tempo (de qualidade) juntas. Por isso, primeiro organiza-se (e escolhe-se) a roupa, a seguir os livros e por aí fora até chegar aos itens de valor sentimental.
No suplemento Life&Arts, do Financial Times, a editora de moda desse jornal, Jo Ellison, confessou que, após ver um episódio da série, deu por si a eliminar peças do seu roupeiro e concluir, entre outras coisas, que precisa exatamente de 21 jeans na sua vida… Mas que não seguiu a doutrina de Kondo ao extremo: "Eu não comecei a limpeza a ajoelhar-me e a oferecer uma mensagem devocional de gratidão para com a minha casa por ela olhar por mim e pelas minhas coisas", ironizou. Ortodoxias à parte, não é difícil perceber porque é que o método Kondo é tão desejado e porque pôs milhões de pessoas a falar de arrumação. Por um lado, nunca se falou tanto em sustentabilidade, consumo excessivo e minimalismo como nos dias de hoje, onde o tempo que sobra para conviver em família é, por vezes, tão escasso como precioso.
Formada em Design de Moda e mentora do projeto Blossom Imagem Consulting – que disponibiliza consultorias completas, análise de estilo, estudo de cores e personal shopping –, Dora Dias é frequentemente desafiada a entrar em closets que precisam de uma limpeza e de uma restruturação totais (o serviço de closet detox & restyling). "Eu vou a casa do cliente, vejo o seu guarda-roupa e analiso o que pode ficar e o que pode ir (…), nunca obrigando ninguém a desfazer-se totalmente das coisas. Há sempre uma fase de transição: as coisas que a pessoa não usa há muito tempo podem ficar numa caixa e, se passado um tempo, vê que não as vai usar é altura de se desfazer delas." Sobre a sua experiência neste serviço, Dora explica que, por vezes, "as pessoas não têm roupeiros, mas sim museus porque têm um espólio de coisas em que umas fazem lembrar isto, outras fazem lembrar aquilo". E prossegue: "São os laços emocionais que se tem com a roupa. As pessoas ficam ‘sem chão’ quando as desafio a ficarem só com os 30 dos 100% da roupa que usam. Assustam-se com a ideia de ficar com pouca roupa, mas na realidade tê-la é um falso conforto. Quando se tem um roupeiro arrumado, tem-se uma peça por cabide e está tudo à vista, sendo claro que isso facilita a vida. Quando estamos em controlo do nosso guarda-roupa ficamos mais tranquilas e quando eliminamos as coisas de que não precisamos é uma boa sensação que traz segurança e limpeza mental. A Marie Kondo, por exemplo, defende que só devemos ficar com peças que nos deixem felizes e tragam alegria." É também nisso – de que o bem-estar começa em casa – que a guru do bem-estar e chef Jasmine Hemsley, de 38 anos, acredita. Defensora do pensamento ecológico, Jasmine só compra peças de baixo custo em vendas de garagem, em feiras de bagageira ou em leilões de igreja (se googlar a sua casa, que Jasmine mostrou na revista Style, do The Sunday Times, verá que parece saída de uma revista de decoração de luxo).
Há, de facto, uma ligação forte entre a arrumação e a saúde mental. Sobre esse impacto, a psicóloga clínica e coach Filipa Jardim da Silva explica: "Se olharmos para a nossa casa como uma extensão de nós, então, de alguma forma, a maneira como a casa estiver organizada e limpa tenderá a espelhar algo sobre nós e, ao mesmo tempo, a criar um impacto no nosso estado de espírito, na nossa produtividade e na nossa saúde global." Já existem vários estudos acerca do assunto sob o ponto de vista da psicologia, como o que o artigo da revista Psychologie Today expõe em The Powerful Psychology Behind Cleanliness, escrito por Ralph Ryback, no qual se conclui que pessoas com casas limpas são mais saudáveis. "Num [outro] estudo acerca do impacto da organização da casa na saúde psicológica, verificou-se que as pessoas que descreviam as suas casas como ‘cheias’ ou ‘inacabadas’ eram pessoas mais propensas a registar mais índices de cansaço e de humor deprimido. Por oposição, as pessoas que descreveram as suas casas como ‘relaxantes’ e ‘organizadas’ apresentavam maiores índices de felicidade e de bem-estar psicológico. Assim, torna-se claro que espaços confusos e desorganizados podem dificultar o foco em tarefas particulares e consequentemente poderão prejudicar a perceção de produtividade ao final do dia", acrescenta Filipa Jardim da Silva.
Mas há exceções à regra. "Obviamente que não somos todos iguais, mas eu diria que algumas pessoas que vivem num aparente caos e que se sentem mentalmente ‘clean’, provavelmente são organizadas por entre a desarrumação, ou seja, têm a sua própria ordem e estruturação mesmo que por entre um cenário caótico aparente", explica a psicóloga. Cláudia Santos, de 25 anos, reconhece que vive diariamente nessa confusão, mas que não é menos feliz por isso. "Como é que eu vivo dentro do caos da minha desorganização? Sem dúvida que o sitio mais desarrumado da minha vida é o meu quarto porque é o local onde eu passo mais tempo. Eu posso arrumá-lo, mas passadas umas horas já está desarrumado e o pior de tudo é eu não saber como é que isso aconteceu. O problema é ter muita coisa. Uma pessoa como eu devia ser minimalista, mas eu sou o tipo de pessoa que guarda tudo. Eu guardo aquele papel de apontamentos de uma aula de há cinco anos e com ele estão lá mais quinhentos [papéis de apontamentos]", confessa Cláudia. "Apesar da desarrumação, quando eu procuro alguma coisa na maioria das vezes sei onde ela está. Está algures naquela caixa empilhada no meio de outras em cima de uma estante [risos]. Há ainda um problema: aquela gaveta onde se colocam coisas que não têm sítio. Precisava de duas dessas gavetas. Ou eu preciso de mais arrumação… ou de menos coisas!"
Por outro lado, Diogo Abel Santos, de 36 anos, e Nicole Palma, de 27, decidiram adotar recentemente o método KonMari no respetivo closet e isso melhorou substancialmente as suas vidas. "Vimos dois episódios da série e como temos muitas T-shirts achámos que a melhor forma de arrumação era utilizar aquele método. Neste momento, ainda estamos em fase de adaptação e temos de o aplicar no resto da casa. Mas podemos dizer que é muito mais fácil ter a roupa arrumada dessa forma", começa por explicar Nicole. "Consegue-se arrumar mais em pouco espaço e consegue-se escolher mais facilmente as roupas sem desarrumar todas as restantes", explica Diogo. Sobre aplicar o método fora de casa, Nicole acrescenta: "Quando fomos viajar, há pouco tempo, e dobrámos tudo como no closet, conseguimos ter muito mais espaço na mala de viagem ficando com metade [da mala] livre quando, de outras vezes, a roupa não cabia nela."
Há ainda quem tenha outras motivações para arrumar. Depois de um amigo meu ter confessado que em dias de "ressaca" limpa a casa de ponta a ponta e questionada sobre se existe associação entre o sentimento de culpa e a necessidade de limpar e arrumar, Filipa Jardim da Silva explica que "alguma investigação tem evidenciado que os rituais de limpeza e de arrumação potenciam um maior otimismo depois de situações de falha e podem contribuir para maiores níveis de autoestima e de confiança, precisamente pela perceção de produtividade e de competência que asseguram no final da tarefa". E acrescenta: "De alguma forma, o ato de organizar e de limpar gera um sinal no nosso cérebro que nos indica que fomos bem-sucedidos perante o resultado dos nossos atos, o que, inevitavelmente, resulta numa perceção de maior autoconfiança." Em jeito de veredicto final, e concorde-se ou não com o método da japonesa que pôs milhões a "destralhar", o facto é que existem verdadeiros benefícios saudáveis envolvidos no processo. "Ordenar uma casa, embora seja uma atividade externa, tende a trabalhar simbolicamente o nosso interior. Quando fazemos uma triagem e a seleção do que temos e daquilo com que queremos ficar, estamos a cuidar de nós, a escutar-nos e a fazer escolhas com base nas nossas necessidades e preferências atuais, favorecendo, assim, uma atualização saudável. Daí, após uma organização profunda do nosso espaço, sentirmo-nos mais leves e percecionarmos o nosso espaço como mais confortável e alinhado connosco", conclui aquela psicóloga. Aquando do início deste artigo e com um certo ceticismo, eu dei por mim sentada perante as minhas pilhas de livros a fazer uma triagem. O sentimento de alívio foi o mesmo que Miguel Esteves Cardoso descreveu na crónica "Afinal sempre há um livro que consegue mesmo mudar a nossa vida para melhor: é o da exímia Marie Kondo". Arrumações feitas, suspiros de alívio dados e doações concretizadas, há que, por fim, deixar uma coisa assente: não é possível guardar menos de 30 livros porque, tal como explica a escritora Anakana Schofield, ao escrever em "What we gain from keeping books – and why it doesn’t need to be ‘joy’" ("O que ganhamos em guardar livros – e porque é que isso não precisa de ser ‘alegre’") para o The Guardian, sublinhou que precisamos bem mais do que a alegria nas nossas vidas. Mas a verdade é que é preciso começar a "destralhar" por algum lado…
1 de 5 /Comece pela gaveta das meias, de Vicky Silverthorn, €14,99 (Nascente)
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2 de 5 /Adeus, coisas, de Fumio Sasaki, €15,98 (Nascente)
3 de 5 /A Arte de Organizar a Sua Vida, de Hideko Yamashita, €14,95 (Alma dos livros)
4 de 5 /Arrume a sua casa, arrume a sua vida, de Marie Kondo, €14,40 (Pergaminho)
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5 de 5 /Menos é mais: um guia minimalista para organizar e simplificar sua vida, de Francine Jay, €16,70 (Arena)
5 sugestões para "destralhar" e arrumar, por Dora Dias (Blossom Consulting - blossom@blossom.pt).
1. Retire tudo do armário e coloque tudo sobre a cama por tipo de peça. Inspire e expire. O processo começa agora.
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2. Olhe para cada uma das peças e seja assertiva. Coloque estas duas questões a si própria e seja sincera: se fosse hoje eu compraria? Sente-se fantástica quando a usa? Se responder não, está na "hora da despedida".
3. Arrume as peças agrupadas por tipo: calças, vestidos, casacos, etc.
4. Cada peça deve ter o seu próprio cabide. O objetivo é que fique tudo à vista. Esta regra não é negociável.
5. Crie um dégradé para cada conjunto de peças penduradas: do claro para o escuro ou vice-versa. Repita por cada grupo.
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Benefícios de uma casa ordenada, por Filipa Jardim da Silva (psicóloga clínica e coacher).
Aumenta o foco porque o cérebro não se perde em tantas distrações e assim integra melhor a informação.
Otimiza o nosso tempo (porque sabemos onde está tudo).
Economiza dinheiro (temos sempre a perspetiva do que já temos e do que realmente precisamos).
Potencia a criatividade (num espaço fluido tende a surgir mais inspiração para criar, seja o que for).
Pratica o desapego (privilegiando o apego pelas experiências ao invés de pelos objetos).
Favorece a socialização (uma casa arrumada proporciona mais convites para jantar a amigos).
Respira melhor (uma casa com menos coisas facilita a que seja uma casa mais limpa).