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Margarida Moreira: "As pessoas achavam sempre que era a Anabela (...) percebi que tinha de reagir"

'Diamantino' é um filme fantasioso e improvável que junta futebol e refugiados. Junta, ainda, Anabela e Margarida. As talentosas irmãs Moreira. Sim, são mesmo duas as atrizes tantas vezes identificadas como uma só. Sentámo-nos com elas para jogar às diferenças. Fotografia de Ricardo Lamego.

Foto: Ricardo Lamego
29 de maio de 2019 às 07:00 Rita Lúcio Martins

Em vésperas de primavera, acabou por ser uma quinta-feira de dilúvio, aquela em que nos encontrámos, em Lisboa. Anabela chegou antes da tempestade, enrolada num casaco preto, com um chapéu de feltro cinzento e com óculos escuros, a denunciar uma certa star quality que se desvaneceu às primeiras palavras. "Eu estou disponível para tudo. Só preciso de um café primeiro", disse, depois de conhecer o plano de trabalhos para o dia. Margarida chegou alguns minutos depois, também num casaco preto, mas de pelo, com o cabelo castanho enrolado num coque improvisado. Distribuiu beijinhos pela equipa disposta num semicírculo. "Então e eu?!", protestou a irmã, esquecida na linha de cumprimentos. Dois beijos no rosto, sem desculpas, nem abraços, apenas com naturalidade. A mesma naturalidade com que foram falando sobre o facto biológico de terem nascido da união do mesmo óvulo com o mesmo espermatozoide, Margarida primeiro, Anabela depois, no dia 8 de março, na Maternidade Alfredo da Costa. "As pessoas ficam à espera que se diga muita coisa, mas a verdade é que não há muito a dizer. Ter um irmão gémeo é como ter dois braços, duas pernas, dois olhos… Para mim, a Anabela sempre foi como uma irmã normal. Na verdade, só tive essa perceção de sermos gémeas quando já teríamos uns cinco ou seis anos", explica Margarida, deitando por terra as expectativas de ouvir narrados, na primeira pessoa, todos aqueles episódios sempre divertidos e só vagamente sobrenaturais que envolvem gémeos, pressentimentos e enormes coincidências. Passemos à frente, então. E viajemos até ao passado, ao casulo da infância que Anabela gosta de lembrar como um jardim.

Cresceram em Lisboa, no seio de uma família bem tradicional, as mais velhas de quatro irmãos, filhas e filhos de um empresário que descrevem como alguém capaz de "transformar o pouco em muito" e de uma dona de casa dedicada aos filhos. Ao longo da conversa, as irmãs Moreira discordariam nos mais variados gostos e temas, mas foram uníssonas no carinho e na admiração pela mãe que, de resto, até participou na curta-metragem O Dia do Meu Casamento que marcou a estreia de Anabela na realização cinematográfica, em 2016. Essa mãe, "essa bênção, alguém que sonha todos os dias e que nos fez sonhadoras também", que hoje auxilia Anabela na gestão do alojamento local com que a atriz dá os primeiros passos enquanto empresária, levava-as no passado a passear na rua, vestidas de igual "ou quanto muito em tons diferentes". E as pessoas paravam para olhar as meninas, então como agora, incapazes de compreender tamanho fascínio. Mais tarde, em idade escolar e já camufladas em grupos de 30 ou mais crianças, era também sobre elas que recaíam as atenções. "Frequentámos o Colégio de São José, onde havia muitas regras. Ai de nós que chegássemos atrasadas à sala de aula!", recorda Margarida. "Um dia, a minha professora, uma senhora muito exigente, teve de sair da sala e, passados alguns minutos, regressou com a Anabela pela orelha, que gritava: ‘Não fui eu, não fui eu...’" Ao longo dos anos foram muitos os episódios em que uma foi tomada pela outra, nem sempre com graça ou sem consequências. "Lembro-me de uma professora a dar-me um raspanete enquanto tentava explicar-lhe que eu não era a minha irmã, ao que ela respondeu: ‘É a mesma coisa.’ Parece anedótico." Mas não é. Se em muitas situações a confusão até teve graça, outras houve em que as semelhanças físicas foram como um peso que se abateu sobre os ombros das duas. Por um lado, Anabela a lembrar, divertida, o dia em que foi convidada a ir até ao cockpit de um avião só porque a tripulação adorava a série O Bairro ou os autógrafos que deu aos fãs da série televisiva Morangos com Açúcar - ambos trabalhos da irmã. Por outro lado, Margarida, chegada à profissão ligeiramente mais tarde e, talvez por isso mesmo, com um caminho mais duro para trilhar. "Desejámos ser atrizes mais ou menos na mesma altura, tal como decidimos estudar Psicologia mais ou menos na mesma altura. Tudo isto pode parecer coisa de gémeos, mas não é", esclarece Margarida. "Os gémeos estão expostos ao mesmo ambiente, aos mesmos estímulos e, por isso, parece-me mais ou menos natural que coincidam em algumas escolhas... Eu vejo a Anabela como uma irmã, nunca senti necessidade de uma separação física dela. A única ocasião em que senti [que sermos gémeas nos podia trazer] ‘problemas’, eles vieram de fora, nasceram da perspetiva dos outros, não da minha. Como decidi que queria terminar o curso de Psicologia [no ISPA], só entrei na ACT - Escola de Atores um ano depois da Anabela. Ela começou a trabalhar, a fazer cinema com o João Canijo, esteve envolvida em vários projetos, enfim, começou mais cedo… Então chegou uma altura em que percebi, com alguma tristeza, que eu não existia para o mundo. As pessoas achavam que era sempre a Anabela. Eu não tinha muitas ‘ferramentas’ para lidar com isto, mas a determinada altura percebi que tinha de reagir, que tinha de me expor e que tinha de alimentar mais a parte social do meu trabalho…", recorda Margarida. Ainda assim, muitas das tentativas revelaram-se em vão, já que depois de uma qualquer aparição social, a legenda da fotografia que haveria de surgir nas revistas dos dias seguintes identificava a irmã e não a ela. Paciente, persistente, resiliente, Margarida dava o passo seguinte, contactava as revistas e fazia a correção. E continuava o seu trabalho. Até porque não tinha alternativa senão seguir em frente. Mais do que uma escolha, ser atriz era uma necessidade, uma questão de identidade. "Nunca houve, da minha parte, qualquer espécie de comparação. A nossa profissão é como uma extensão de nós próprias. Eu nunca conseguiria deixar de ser atriz porque tem a ver com quem eu sou… Não tem a ver com uma decisão que se toma. Tem a ver com o meu caminho. Por isso tentei manter-me fiel a mim própria e continuar o meu trabalho."

Apesar dos vários projetos que teve em cinema, foi o teatro que mais ocupou Margarida que, desde 2003, tem subido aos palcos com regularidade (Ímpios, em 2018, O Internato, em 2017/2018, são as suas mais recentes peças de teatro imersivo, género que aprecia particularmente pelo desafio e pelo contacto direto com o público). Também a televisão lhe trouxe mais visibilidade, repondo com alguma verdade sobre a identidade de cada uma: depois de várias telenovelas para a SIC (Mar Salgado, de 2015, Poderosas, de 2015, Rainha das Flores, de 2016, ou Paixão, de 2017), Margarida integrou o elenco de A Teia, transmitida pela TVI e cujas gravações terminaram no início de março.

Anabela também tem sido uma presença regular no pequeno ecrã: Bem-Vindos a Beirais (de 2015), Filha da Lei e País Irmão (ambas de 2017 e todas exibidas pela RTP) são algumas das suas prestações mais recentes. No entanto, é sobretudo no cinema que Anabela melhor tem firmado a sua identidade artística. Conhecida pela intensidade com que se entrega às personagens, a atriz é uma adepta da imersão nas comunidades que pretende retratar. Foi assim com Mal Nascida, o filme que João Canijo realizou em 2008 e cujo guião entregou a Anabela que um dia depois já se fazia à estrada, rumo a Trás-os-Montes, região para onde se mudou para se preparar para o papel da perturbada Lúcia, uma mulher perdida nos vícios de uma família disfuncional que lhe foi apresentada como um verdadeiro monstro. Dedicou-se a ela, engordou os 25 quilos que considerou necessários (à custa de muita papa Cerelac) e até deixou crescer o buço (que depois ainda tingiu, numa experiência particularmente infeliz que lhe colorou a pele, e valeu um telefonema desesperado à irmã, com quem desabafou, entre risos e lágrimas). Por causa de É o Amor (filme de 2012, também realizado por João Canijo e do qual Anabela é coautora), mudou-se para Caxinas, no norte do país, e não só se entrosou com a comunidade local de pescadores e de peixeiras, como amanhou peixe na praça. No mais recente Fátima (2017, de Canijo), a sua peregrinação também foi real. No final de cada projeto, Anabela até pode sentir-se sugada pelas personagens, mas quando chega a hora do próximo desafio já está de pé outra vez. Acupuntura, massagens, passeios pela cidade na companhia dos seus cães e muitas horas de sono. Vale tudo na hora de recuperar, de fortalecer o corpo e de regressar à normalidade. Mesmo que a normalidade do momento seja um projeto entre a fantasia e a alucinação, como é Diamantino, o filme escrito e realizado por Gabriel Abrantes e por Daniel Schmidt, com estreia prevista para 4 de abril próximo. Depois de no ano passado terem contracenado num videoclip de Carlão (da música Contigo), este é o filme que as volta a colocar lado a lado. Para que não restem dúvidas que são mesmo duas ("se bem que ainda é possível que haja alguém a considerar que são efeitos especiais", ironiza Margarida, referindo-se às personagens das irmãs Matamouros).

Muito bem recebido no Festival de Cannes, onde foi distinguido com o Grande Prémio da Semana da Crítica, o filme conta a história de um bem-sucedido jogador de futebol (as semelhanças com Cristiano Ronaldo não serão pura coincidência), interpretado por um Carloto Cotta com sotaque açoriano. "Um dia, o Carloto chegou a uma leitura [do guião] e disse que achava que a personagem devia ser açoriana. E nós respondemos: ‘Sabes que somos tuas irmãs e, portanto, também vamos ter de falar açoriano", contam, com um entusiasmo indisfarçável. "Eu não sou particularmente a favor de fazer sotaques porque, como para qualquer outra coisa, eu acho que o sotaque tem de ser trabalhado até à exaustão. Precisávamos de professores e de trabalho, nesse sentido. E o problema, na minha opinião, é que muitas vezes se fazem sotaques sem esse trabalho e o resultado acaba por ser mal conseguido. Mas aqui, como estamos a falar do Gabriel [Abrantes] e do Daniel [Schmidt] e o ambiente deles é mágico e fantasioso, não interessava esse tipo de perfeição. Haverá um lugar algures nos Açores onde se fala assim", simplifica Anabela.

As duas irmãs – que não têm por hábito discutir as carreiras ou as escolhas profissionais uma da outra – acabaram por se socorrer das memórias de uma viagem que fizeram em família pelas ilhas açorianas e construíram as personagens, Sónia e Natasha. "Nós fomos completamente sem rede. Eu, talvez por fazer muito teatro, tenho-me sentido muito livre. A Anabela, que tem trabalhado muito e bem em cinema, tem estado num registo de maior contenção. Este filme foi como um cruzamento entre as duas. Decidimos ir por aí fora. E divertimo-nos muito", confessa Margarida. "Ou seja, corremos o risco e agora estamos preparadas para dar o corpo às balas. Sabemos o que fizemos e foi uma experiência maravilhosa", concorda Anabela. Elas que, apesar de terem feito muitos vídeos em conjunto durante os tempos de faculdade e de terem participado, juntas, numa fase muito inicial das suas carreiras, na série Riscos (de 1997, RTP), nunca traçaram uma estratégia artística conjunta, enquanto gémeas. Será também uma boa altura para levarem os pais ao cinema: "Eu já fiz vários filmes em que dei por mim a pensar: ‘O meu pai e a minha mãe não podem ver isto.’ Porque é duro", diz Anabela. "Eu lembro-me da primeira peça minha que o meu pai foi ver e foi difícil. Eu fazia o papel de toxicodependente e ele saiu de lá arrasado porque estava a sofrer comigo." Nos últimos anos, a família Moreira já não tem viajado com tanta frequência, mas continua muito próxima. É ao seio mais íntimo que cada uma das duas regressa sempre que precisa. E depois das estreias, das festas, das inaugurações e dos eventos é nos almoços de família que se reencontram. Irmãs iguais, mulheres tão diferentes.

 

Do outro lado do espelho

No final do dia, a evidência maior seria essa. As semelhanças entre as duas são óbvias, mas ao contrário do que seria de supor, as diferenças não são tão impercetíveis quanto isso. Antes da entrevista dei por mim a ensaiar pequenos truques e a procurar estratégias que me ajudassem a distinguir as duas, assim como a evitar as muitas situações embaraçosas que todos os gémeos porventura passam, como ambas acabaram por confirmar. O facto de Anabela usar um corte de cabelo curto, logo abaixo da orelha, afastou os meus receios e facilitou-me o trabalho, mas a verdade é que, aos poucos, as diferenças entre as duas foram ficando mais evidentes. O tom de voz e a expressão, primeiro. Os gostos e as opiniões, depois. Falámos da natureza humana e de feminismo, da idade e do envelhecimento, do passado e da memória. "É sempre complexo falar da nossa história porque, no fundo, estamos sempre a contar a história de outra pessoa…", avisava-me Anabela, no início da nossa conversa. "A memória nunca é completamente objetiva e toda a gente tem direito às suas memórias. Como tenho uma irmã gémea, isto acontece-nos muito, mas a nossa realidade é esta. Estou muitas vezes a falar sobre o nosso passado e ela corrige-me: ‘Não foi bem assim.’ Porque cada uma de nós constrói e reconstrói a sua própria história." Margarida é mais lacónica: "Ela nunca vai contar a minha história. Existem os factos. Ela tem uma visão deles e eu tenho outra."

No final fica a imagem de duas irmãs. Idênticas. Distintas. Margarida porventura mais prática. Anabela aparentemente mais disponível: "Eu acho que sempre sofri um bocadinho demais. Ainda hoje sofro. Acho que acontece com todas as pessoas. Faz parte do crescimento. Eu sempre fui uma pessoa um bocadinho fantasiosa demais e só há pouco tempo eu sinto que mudei nesse aspeto e isso trouxe-me muita paz. Eu costumo dizer que me sinto melhor hoje do que quando tinha 20 anos porque me apaziguei. Hoje entendo melhor o mundo e não me suscetibilizo tanto com aquilo que o outro é. Todas as pessoas vão ter uma opinião sobre mim, sobre o que eu faço. Qualquer pessoa está exposta em relação ao seu grupo e nós, os atores, estamos um pouco mais. Eu passava a vida a tentar justificar-me e agora não o faço. Já não valorizo tanto os elogios, que até acho contraproducentes, nem as críticas. São ambos visões subjetivas. Eu acho que muita gente não tira o melhor de si por causa do elogio porque sente que o que fez é suficiente. Eu tenho sempre esta coisa de querer superar-me. Hoje quando erro, tento pensar que naquela circunstância fiz o melhor que podia. Tento retirar dali uma lição, mas deixei de ser dura comigo. Já não tenho isso."

Como ela própria diria mais tarde, em jeito de conclusão, "cada mulher é um mundo". Estas duas irmãs tão depressa parecem dois planetas similares, paralelos e até complementares, como de repente se transformam em corpos celestes prestes a entrar numa qualquer rota de colisão. Intensas, belas e talentosas, as irmãs Moreira são gémeas verdadeiras. Tão iguais que basta olhar para elas para encontrar as diferenças.

Artigo originalmente publicado na edição de abril de 2019 da Máxima

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