Marco Paulo: “quando me deram alta, parecia que os meus olhos explodiam para ver o mundo”
O cantor português narra, na primeira pessoa, a experiência de ter vencido um cancro da mama cujo diagnóstico não foi precoce nem tardio, mas que se tivesse tardado mais poderia ter sido fatal. E apela à importância da vigilância, não só nas mulheres mas também nos homens. "Apalpem-se, sem vergonha."

Há quase um ano, Marco Paulo preparava-se para ouvir o diagnóstico de um cancro da mama que carecia de intervenção cirúrgica imediata. Para quem já tinha travado uma batalha contra um cancro, há 20 anos, superou um princípio de um AVC em pleno final de um concerto, e se debateu contra um problema de rim, a notícia não foi fácil, mas estava ali, "à espera de ser ouvida". É que o cantor, que já vinha a notar modificações no seu corpo, sentia o receio, a dúvida e a incerteza que provavelmente mais homens sentem antes de ouvir o diagnóstico deste cancro, que é muito mais comum nas mulheres, mas que ainda assim, e segundo a Liga Portuguesa Contra o Cancro, representa 1% dos casos em Portugal.
Um homem espirituoso e educado, com a humildade ainda intacta mesmo tendo conquistado e agarrado um público assinalável ao longo das décadas da sua carreira, Marco Paulo fala sem tabus do cancro da mama e na necessidade que também os homens têm de o vigiar, mas sobretudo apela à importância de não se descartar um diagnóstico que à partida pode ser improvável no sexo masculino.
Ao telefone com a Máxima, o cantor, hoje com 75 anos, não esconde a alegria que vive no momento por ter superado esta prova de vida ao longo dos meses em que o mundo foi assolado por uma pandemia. Desejoso de regressar aos palcos e de encher as salas com o vozeirão sedutor a que nos habitou, confessa que não mais conseguirá promover um concerto, ou falar do seu percurso profissional, sem pelo menos no fim alertar para a prevenção da doença que acabou de vencer.
Antes de ouvir o diagnóstico, alguma vez pensou que poderia vir a ter um cancro da mama?

Não. Nunca me passou pela cabeça. Mas quando eu senti que algo não estava bem no meu peito direito, eu tive receio de ir saber o que era. Sentia um inchaço e uma dor quando apalpava. Nem parece meu, uma pessoa que já passou por várias situações complicadas - esta foi a quarta. Mal sentisse qualquer coisa deveria ir logo ao meu médico mas deixei o tempo passar. Porquê? Talvez também porque não me passou pela cabeça. Estava longe… Eu sabia que nas mulheres era comum. Nos homens… não estava a par do assunto. Antes de saber que tinha um tumor na mama (pode dizer-se peito ou mama do homem, embora alguns homens não gostem da segunda, eu não vejo diferença) estava com receio de passar pela mesma situação que passei há 20 anos.

O que é que sentia?
Sentia desconforto ao dormir sobre o meu lado direito e dores, mas achava que não era nada. Houve um dia em que fui à dermatologista, ia apenas para ver um sinal do nariz. Quando eu falo neste assunto, hoje, é sobretudo para alertar os homens para que, quando sentirem qualquer sintoma, irem logo ao médico. Este cancro já estava a alastrar para a axila, tanto que me removeram oito ganglios. Se eu não tivesse ido na altura que fui, se tivesse deixado as coisas continuarem, possivelmente iria alastrar para o braço. Quando chegou a hora de falar, "fugi com o rabo à seringa". É aquele medo que temos de ouvir a palavra cancro. Os amigos que me acompanharam insistiram para que a dermatologista me visse o peito. E a médica disse logo: "Nós temos aqui um grande berbicacho." Mandou-me logo fazer biópsias e análises nesse mesmo dia. E depois confirmou-me o diagnóstico de cancro da mama, dizendo que tinha de ser resolvido o mais rápido possível.

Como é que se passou tudo, a partir daí?
O médico da CUF que me operou sugeriu-me duas datas possíveis para a operação. Ou era o 21 ou o 28 de janeiro, e o primeiro é o dia do meu aniversário. Como tinha um concerto marcado no Palácio de Cristal, no Porto, já esgotadíssimo, queria que a operação fosse o mais rápido possível. Eu disse-lhe que podia ser no dia 21, e ele perguntou-me se não me preocupava ser operado nesse dia. E eu disse-lhe: "Não, doutor. É o meu aniversário, se eu me salvar "desta" eu posso festejar em qualquer altura e, pelo contrário, se me deixar atrasar posso não ultrapassar esta situação complicada. Marcaram-me a operação, a equipa estava toda preparada. Ainda levou umas quatro ou cinco horas, e depois de sair do recobro fui para o quarto. Quando acordei, a equipa entrou-me pelo quarto com um bolo para eu apagar as velas. Eu achei aquilo tão bonito, tão emocionante, porque achava que nesse dia não ia ter aquilo. Foi uma maneira muito bonita de me homenagearem e eu lhes poder agradecer.
Estava superada uma parte da viagem. Reviver a parte fisicamente mais dolorosa era algo que temia?
Depois seguiram-se os tratamentos. Fui fazer quimioterapia. A primeira coisa que perguntei foi se a quimioterapia era a que me fazia cair o cabelo. E era, mais uma vez caiu-me o cabelo todo. Há 20 anos, eu tinha aquela imagem que tinha criado ao longo dos anos, com os caracóis, e nessa altura quando olhava para o espelho ficava muito magoado, muito triste e sofrido, porque não aceitava olhar para mim e ver-me desfigurado. A quimioterapia que eu fiz há 20 anos deixava-me de rastos, não comia. Desta vez disseram-me que poderia ter certos sintomas mas não tive. Até ao fim do tratamento, tive que fazer sempre o teste à covid-19. Depois de acabar o ciclo da quimioterapia, acabei por fazer mais 28 sessões de radioterapia, que por sinal que não me custou muito em comparação à quimioterapia. Quando me deram alta, parecia que os meus olhos explodiam para ver o mundo, para ver Lisboa, para ver as pessoas. Vim para casa feliz e contente por ter ultrapassado o meu quarto problema de saúde complicado. Quis ainda voltar para me despedir dos meus companheiros de tratamento, dos médicos, das enfermeiras, das auxiliares… todos foram muito generosos.


Cruzou-se com outras histórias, outras pessoas a travar esta luta?
Sim. Eu já estava sem cabelo, entrava sempre de boné. Só quando eu falava é que os meus colegas de tratamento notavam que esta voz lhes era familiar. Iam muitas vezes perguntar à recepção se eu era o Marco Paulo (risos). Criei muitas amizades, de todas as idades, chegava sempre com um sorriso e ia-me embora com um sorriso. Estava lá uma jovem que era muito bonita, com um sorriso e olhos doces, e que um dia quis tirar uma fotografia comigo. Os dois sem cabelo! Ficámos amigos e um dia disse-me que se ia embora. Fiquei tão feliz de ver a alegria nos olhos dela que me esqueci de lhe pedir o contacto. Todos os dias nos cumprimentavamos. Fiquei com pena, chegávamos e iamos embora na mesma altura, sorríamos, e é isso que dá muitas vezes alento, sabe?
Também foi importante receber o carinho das pessoas que o acompanham ao longo dos anos, após ter alta?

Sabe que são precisamente essas coisas que nos ajudam muito. As mensagens, os telefonemas, os e-mails, tudo isso, para mim que fui mimado pelos meus fãs ao longo dos anos, fez-me sentir que estava a ser muito apoiado. Deu-me muita coragem e força para aguentar tudo o que aguentei até chegar a casa. A qualquer sítio onde vá, toda a gente me recebe bem. O meu público tinha muitas saudades minhas. Quando isso acontece fico o homem mais feliz do mundo. Venci mais uma batalha, as pessoas recebem-me bem, as mensagens são de força. Chega uma altura em que olho para o espelho e digo: "Marco Paulo, tudo de bom e de mau valeu a pena."
É preciso desmistificar o tabu do cancro da mama nos homens?
Possivelmente já não tanto. Mas quando falam comigo, ainda falam de pé atrás. Nota-se é um preconceito por falta de informação. Porque enquanto nas mulheres é comum, o homem não é tão informado e não é tão preocupado em se informar. Há outras coisas, como o cancro da próstata. Eu também não tinha grande conhecimento, confesso. Quando, hoje, vou a algum lado falar de mim a nível profissional, sinto que devo deixar a mensagem. Digo mesmo que apalpem, não tenham vergonha de apalpar, porque foi precisamente por eu não o ter feito que cheguei à situação de ter que fazer todos estes tratamentos.


É um homem de fé. Sente que foi por isso que venceu uma quarta prova como esta?
Pode ser algo vulgar que qualquer pessoa diz, mas a minha fé em Deus e em Nossa Senhora ajuda-me muito. No hospital, poder pedir-lhe, agradecer-lhe, dá-me muita força a mim. Todos estes momentos que me levaram ao hospital quatro vezes, foram mais um "não" do que um "sim". E sinto que por todas as situações terem acabado por correr bem, devo agradecer a alguém.
Mesmo com a situação global que vivemos todos, sente uma vontade redobrada de viver?
Sinto que agora quero aproveitar todos os dias sejam de frio, de calor, de chuva, de sol, de vento. Antigamente, nos dias de chuva, dizia para mim que não iria sair de casa. Agora, e se não fosse a pandemia, estava a aproveitar os momentos todos que a vida me possa dar.

E as saudades dos concertos?
Só agora vou começar a sair. Em breve vou cantar em casa da Amália, com quem tive uma ligação muito forte e de quem fiquei muito amigo. Isso dá-me muita alegria, estou desejando que chegue esse dia. Estar rodeado das pessoas que durante tantos anos me rodearam e com o público que tem tantas saudades de me ouvir. Agora vêm-me de cabelo branco (risos). Quero muito aproveitar os momentos da vida, fazer o que eu mais gosto que é cantar e será até quando Deus quiser.

outubrorosa, Marco Paulo, Liga Portuguesa Contra o Cancro, Lisboa, AVC, saúde, Cancro da Mama, Cancro da mama homens