Emília Vieira sobre o cancro da mama: "Temos uma maior esperança de vida e uma melhor esperança de cura"
A cirurgiã oncológica Emília Vieira conta com mais de 30 anos de experiência em casos de cancro de mama e acaba de lançar o livro O que faço? Tenho cancro da mama, composto por perguntas, respostas, explicações e sugestões. No mês dedicado a esta doença e à sua prevenção recordamos esta sua entrevista à Máxima.

A frase que dá o título a este artigo foi, na verdade, a frase com que acabou a entrevista que a Dra. Emília Vieira deu à Máxima, num misto de alerta e desmistificação de um problema que ainda é um tabu. A cirurgiã oncológica é médica no Hospital Santa Maria, em Lisboa, onde também é presidente da Associação Amigas do Peito, que presta várias formas de ajuda às mulheres que sofrem ou sofreram a doença. O livro que acaba de lançar - O que faço? Tenho cancro da mama (Esfera dos Livros) - reúne uma série de perguntas com que a médica foi confrontada pelas suas pacientes, ao longo de mais de 30 anos a trabalhar nesta área. Falámos de como cada vez aparecem mais casos da doença, mas também de toda a inovação que existe hoje; da importância da idade e da incidência nos homens; das diferentes formas como as mulheres vêem a doença, de prevenção e da importância do estilo de vida.
O que a levou a escrever este livro e lançá-lo agora?

O facto de ser agora é porque outubro é um mês mundialmente dedicado ao Cancro de Mama. Este livro é a resposta a muitas perguntas que durante estes anos me foram feitas e penso que fazia falta, no nosso mundo literário ligado ao cancro de mama, um guia prático, acessível, de fácil entendimento, que não fosse muito técnico e que pudesse, de alguma maneira, esclarecer os doentes.
São perguntas feitas pelas suas pacientes?
Exatamente. Eu conto com mais de 30 anos de clínica e, durante estes anos, vamos fixando as perguntas que são mais frequentes. Baseei-me nessas perguntas e organizei-as com alguma cronologia perante a doença.

Para si, o tema cancro da mama é um assunto diário. Como consegue equilibrar a normalidade do tema no seu dia a dia com a atenção personalizada que cada paciente necessita?
Esse equilíbrio consegue-se de mais que uma maneira. Muitas vezes recebo as doentes quando ainda só têm uma suspeita. E aí, enquanto peço os exames que me vão confirmar o diagnóstico, vou logo conhecendo a doente e percebendo como posso mais tarde dar esse diagnóstico. Muitas vezes a doente vem ter connosco já com o diagnóstico, ou para uma segunda opinião ou para iniciar tratamento. E nessa altura já têm a sua "cabeça feita" já estão, como algumas dizem a "sentença de morte". Depois aí há que desmistificar essa ideia. Eu costumo dizer que temos de agradecer todos os dias o local e a época em que nascemos e vivemos, que é de grande inovação e investigação em termos de cancro de mama. Temos uma maior esperança de vida e uma melhor esperança de cura, que não tínhamos anteriormente. O que tento incutir é que o facto de ter uma situação grave, como é o cancro de mama, é uma situação que tem tratamento. Vai ser uma situação dura durante alguns meses ou durante um ou dois anos, mas que depois vai estabilizar. Não é uma sentença de morte. Procuro dar-lhes esperança e dizer que as irei acompanhar nesse período difícil. Esse facto, de alguma maneira, ajuda-as e o facto de eu dizer e demonstrar que mais tarde poderão ser vigiadas e que será uma situação a monitorizar também as sossega.
Em 30 anos de experiência nota muita evolução nos tratamentos? Confirma que é uma das formas de cancro com mais evolução nos tratamentos nos últimos anos?

Confirmo e tem havido tanta investigação porque é o cancro mais comum na mulher. Há novos fármacos, cada vez a cirurgia é menos radical… Em termos de mortalidade, desde os anos 80, desceu cerca de 25%. É o que nos dizem as estatísticas. Mas também é verdade que as estatísticas prevêem que em 2050, provavelmente, uma em cada três mulheres terá cancro de mama. Este é o cancro mais frequente, mas não é o que mais mata, o qual continua a ser o do pulmão. Temos muita inovação em termos de cancro de mama e este cada vez mais se torna uma doença crónica. Por isso temos agora uma nova classe que são as sobreviventes do cancro de mama, são mulheres que estão livres da doença, embora necessitem de uma vigilância mais apertada.
Porque é que há cada vez mais incidência desta doença?
Não há uma reposta. É claro que hoje em dia pode ser o estilo de vida. Quando se compra um frango no supermercado não sabemos que fatores de crescimento levaram e hoje uma alface cresce em uma semana quando deveria crescer em três semanas. Porque será? Porque há muitos elementos que são estimulantes de fatores carcinogéneos, assim como pesticidas, que de alguma maneira perturbam a estabilidade das nossas células. [O cancro] cada vez aparece mais, mas não só da mama, todo o tipo de cancros.

O que é que mais assusta as pessoas em todo o processo de conhecimento da doença e tratamentos?
Se as pessoas são muito jovens, o que as atemoriza mais é pensarem que poderão não criar os seus filhos. Se são de mais idade é a probabilidade de poderem sofrer com a doença. A mama é um elemento da mulher que a identifica como tal. Qualquer amputação desse órgão fica, de alguma maneira, gravado para sempre. Tenho mulheres que mesmo com reconstrução mamária sentem-se um pouco amputadas no seu feminismo. É um órgão com um grande simbolismo para a mulher.
Qual a importância das outras pessoas (família e amigos) em todo o processo.

Eu penso que é fundamental.
Como médica recomenda que as pessoas à volta se envolvam no processo?
Sem dúvida! Embora nem todas as mulheres reajam da mesma maneira e há muitas que procuram que ninguém saiba. Procuram até negar à própria família o que têm, às vezes porque não querem que a família fique preocupada, outras vezes porque ter um cancro ainda é um estigma. Mas a retaguarda familiar é algo importantíssimo na estabilidade de uma doente que está a atravessar um processo oncológico. Assim como dos amigos.
Não é uma doença tão tabu como era há alguns anos atrás. O facto de caras conhecidas partilharem os seus casos ajuda?
Sem dúvida que ajuda, mas devo dizer que, embora haja algumas figuras públicas que partilhem, são muitas mais as que não partilham. Continua a haver tabu e a ser um certo estigma. No século passado tínhamos a tuberculose, nem se dizia que se era tuberculoso. Neste momento é o cancro, que em algumas situações é um estigma. Principalmente em pessoas ainda em idade laboral, acaba por haver um certo ostracismo em alguns tipos de trabalhos para algumas mulheres. Embora haja os direitos dos doentes que implicam o direito a melhoria laboral, nós lidamos cada vez mais com mulheres mais novas que têm situações complicadas nos seus locais de trabalho. A baixa [médica] não pode ultrapassar os três anos e a opção é continuar a trabalhar ou então mudar de trabalho. Embora comece a haver uma maior consciencialização desta doença, ainda há situações muito incómodas.
Há um antes e um depois da doença? Ou seja, é possível uma pessoa voltar a ser como era antes da doença, ou o processo muda indiscutivelmente as pessoas?
Penso que perante uma doença deste género, as mulheres ficam com outros conceitos de vida. A maioria das mulheres sente que a doença as amadureceu e passam a dar mais importância a pequenas coisas, que são realmente importantes. São poucas as mulheres que não encaram a doença desta maneira e têm uma revolta. Há mulheres que nunca perdoam à vida a doença que têm, mas a maioria até encara como um crescimento.
Acha que as mulheres estão cada vez mais preocupadas com a prevenção, ou só pensam neste assunto quando são obrigadas a lidar com ele?
Continua a haver mulheres que não querem pensar no assunto. De qualquer maneira eu faço muitas feiras de saúde e rastreios clínicos, falo com muitas mulheres e não há dúvida que cada vez há mais mulheres com menos idade a terem consciência da prevenção e a interessarem-se por ela. E é por isso também que cada vez os tumores são apanhados mais precocemente. Nós não podemos prevenir o aparecimento de um cancro, o que podemos fazer é descobri-lo cedo. Nas feiras de saúde a que vou agora também já tenho homens a quererem falar comigo e a querem ser observados. Não nos podemos esquecer que 1% dos cancros de mama atinge os homens.
Como é que um homem reconhece um caso de cancro de mama?
Não há prevenção no caso dos homens. É muito simples a um homem, que não tem uma glândula mamária, mas tem um pequeno mamilo, notar se há alguma alteração de um [peito] para o outro. Alguns homens nem sabem que podem ter cancro de mama, outros passam meses a ver se passa e quando vão ao médico já é uma situação um bocadinho avançada, por isso embora os cancros que aparecem no homem sejam iguais aos que aparecem na mulher - são do mesmo tipo e tratam-se da mesma maneira - geralmente chegam até nós um pouco mais avançados do que no caso da mulher.
Quais os passos essenciais que todas as mulheres devem seguir para prevenir?
Temos de ter uma vida o mais saudável possível, porque se nós não conseguimos saber quando um cancro aparece, temos de estar o mais possível com a nossa imunidade em alta. Temos de ter uma vida saudável, regrada, não fumar, não beber, fazer exercício físico, evitar os alimentos que sabemos que estão mais suscetíveis a tratamentos antes de os ingerir. Mas se me perguntar como é possível fazer isso no mundo em que nós vivemos, eu entendo.
Também sabemos que só conseguimos prevenir detetando cedo e detetamos através de mamografia e de ecografia. E do auto-exame da mama, que se trata de nós conhecermos o nosso corpo. Se uma mama está diferente da outra temos de recorrer ao médico e ver o que se passa com ela. A mamografia deve ser feita anualmente ou de dois em dois anos e o radiologista verifica se há lesões ainda não palpáveis e que podem já ser suspeitas. Quanto à primeira mamografia, se uma doente é assintomática e não tem história familiar de cancro de mama, deverá fazer a primeira mamografia aos 40 anos - embora segundo o Serviço Nacional de Saúde, o rastreio só comece aos 50 - mas a maioria da opinião a nível mundial diz que a primeira deve ser aos 40. As mulheres que logo cedo começam com quistos e nódulos devem ir fazendo os seus exames habituais.
Vivemos numa sociedade muito economicista, por isso os rastreios começam aos 50 anos e acabam aos 69. Mas se a idade é um fator de risco para o cancro da mama, e cada vez há mais cancros em mulheres de idade, as mulheres depois dos 69 o que fazem? Nunca mais olham para a sua mama? Cada vez temos mais mulheres na casa dos 80 anos com cancro de mama.
Em termos de tratamentos, Portugal tem uma boa resposta para este tipo de problemas?
Nós somos tão bem tratados em Portugal como em qualquer país da Europa ou nos Estados Unidos da América. Temos as mesmas possibilidades de cura em Portugal ou no mundo ocidental.
Fale-nos da Associação Amigas do Peito, a que preside, e da importância dela para as pessoas que apoia.
A Associação Amigas do Peito foi criada em 2008, está sediada aqui no Hospital Santa Maria, onde eu trabalho, e nasceu da vontade de muitas mulheres que eu tratei ao longo destes anos. Queriam um local e algo que as ajudasse a ultrapassar a doença, fora os técnicos de saúde, porque estes fazem o que podem, mas há a necessidade de um acompanhamento que não havia aqui no hospital. Temos novas instalações desde 2016 aqui no jardim do campus do hospital e tivemos o Presidente da República a inaugurá-las. Vendemos acessórios inerentes à cirurgia e ao cancro de mama, próteses capilares e mamárias, fatos de banho, roupa específica, lenços… Temos apoios de nutrição, psicologia, workshops semanais, encontros de convívios em que mulheres que já tiveram cancro de mama ajudam outras mulheres. Também apoiamos muitas doentes dos PALOP [Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa], porque o Hospital Santa Maria tem protocolos com estes países.
