O designer vai representar Portugal na Expo 2020, no Dubai. Consigo leva o cobertor de papa, um produto tradicional da Guarda onde descobriu “gente com um saber imenso”.
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06 de setembro de 2021 às 07:00 Joana Moreira
A lã é grossa e vem de ovelhas churras mondegueiras, hoje em vias de extinção. É dessa lã churra de ovelha que se faz o cobertor de papa, um produto artesanal que é agasalho de eleição para os da região de Maçainhas, Guarda, onde a peça ainda se produz como manda a tradição, de forma artesanal.
É consistente, quente e dura gerações: três atributos que terão despertado a atenção do designer Carlos Gil para o material. O criador, que vive no Fundão, vai apresentar peças de Moda e decoração com o produto tradicional já em outubro, no Dubai, no âmbito da Expo 2020. Antes de rumar aos Emirados Árabes Árabes Unidos, o criador português falou com a Máxima.
Vai representar Portugal no Dubai. Como é que vê esta ideia de representar um país: sente-a como um peso, uma responsabilidade ou um privilégio?
Foi com imensa satisfação que recebi o convite e que soube que tinha sido selecionado para representar Portugal e estar ao lado de pessoas tão influentes como a Joana Vasconcelos, o Bordallo Pinheiro.... Estar ao lado destas personagens que fazem parte já do nome de Portugal e de empresas como a Topázio, a Vista Alegre... São empresas com muito peso tanto nacional como internacional. Fiquei muito contente. É óbvio que é um peso e uma responsabilidade, sem sombra de dúvida. Como sou comendador de Portugal, é óbvio que é mais um peso que sinto. Orgulho-me de ser português e tento desempenhar muito bem o meu papel, é uma responsabilidade que tenho. No fundo, também é um reconhecimento do meu trabalho.
A última coleção que apresentou foi inspirada em Portugal. Aliás, a alusão aos costumes e ao país são recorrentes no seu trabalho. Considera-se patriota?
Sou mais patriota do que saudosista. Sem dúvida que numa altura [em pandemia] em que nós sentimos que havia emoções muito fortes, onde o turismo tinha que ser impulsionado, todos nós devemos abraçar o próximo.... Acho que de certa forma era uma maneira de eu poder também dizer às pessoas para conhecer Portugal, de impulsionar o turismo em Portugal. Foi uma forma de sentir que também estava a ser útil. Pensei em desenvolver essa coleção de verão inspirada em todos os momentos portugueses. Havia imensas referências a Portugal, toda a coleção foi feita com um sentimento muito luso, porque havia uma necessidade muito grande naquele momento.
Algumas das criações que leva para o Dubai têm por base o cobertor de papa, uma peça típica do interior do país, em risco de desaparecer. A preservação das técnicas artesanais pode passar pela integração destas no trabalho dos designers com mais visibilidade?
Considero que a Moda tem que ter utilidade e quem faz Moda tem que dar o uso à criação para que dê [peças] que tenham utilidade. Não pode ser só porque é bonito, não, as coisas têm que ter fundamento. E nós sabemos a priori que vamos buscar muitas ferramentas do passado. Nesta coleção de inverno fui buscar esta referência do cobertor de papa, que é feito aqui na Guarda, e que está em vias de extinção. A câmara da Guarda tem trabalhado muito para que isto não termine, mas na verdade também tem de ser impulsionado de forma a que não acabe mesmo. É então que eu trabalho esta coleção com este produto, o cobertor de papa, e vou integrá-lo na coleção, principalmente em acessórios, para dar visibilidade a este produto, um material nobre, 100% lã, natural. Como falamos hoje e porque a Moda assim o tem que ser, temos de lhe dar inovação. Damos inovação a este material através de produtos diferentes como a carteira, os puffs, este puff gigante que é usado para grandes resorts, as almofadas... A todos estes acessórios é atribuída esta inovação a partir de um cobertor de papa que é uma tradição antiga e que faz parte da história da região do interior. É óbvio que também temos de pensar que hoje se fala muito de sustentabilidade. Isto é uma forma de criar sustentabilidade, não só económica, mas principalmente social.
Foto: Carlos Gil
Como é que o cobertor de papa entrou na sua história?
Este produto já faz parte da história do interior, ele é 100% lã mesmo retirada da ovelha. Em contacto com a câmara da Guarda fizemos uma parceria para divulgar este produto que irei continuar a divulgar noutras situações. Foi apresentado na Moda Lisboa na coleção de inverno e com a divulgação chegou ao Dubai. Esperemos que continue em outras rotas.
Como é que se encontra o equilíbrio entre criar roupa para o presente, olhar para o futuro e buscar a tal preservação histórica?
Eu considero, e aqui falo como pessoa, que nós só conseguimos ter um presente bom quando olhamos para o passado, refletimos, e temos uma visão sobre o futuro. Eu caminho nesta imagem sobre a Moda também. Na Moda só conseguimos ter um bom produto quando vemos o que foi feito anteriormente e pensando sempre naquilo que o futuro nos pode oferecer. Porque se assim não for a nossa Moda não tem evolução, não tem credibilidade também. A criatividade é exatamente isso. É trabalhá-la num presente, olhando sempre para o passado, mas deslumbrando com um futuro que queremos que seja risonho. Por isso trabalho a Moda de uma forma prática, muito sobre o momento, daquilo que eu considero [ser o momento]. O trabalho tem de ser visto no momento e deslumbrando o próprio futuro. Por isso é que há peças icónicas e que nunca passam de Moda, é sempre sobre este pensamento.
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É também no Dubai que tem uma loja e clientes. O sucesso de um designer em Portugal exige a internacionalização?
Acho que isso tudo depende do ADN da marca. Eu sempre tive muito a direção de que me queria internacionalizar como marca, e sempre trabalhei com esse intuito. Foquei-me sempre para que a marca Carlos Gil fosse uma marca internacional. De qualquer forma, também aceito que haja muitos designers de Moda que compreendam que a marca tem de ser trabalhada só a nível nacional. Isso não considero que seja um desprestígio, pelo contrário. Quem consegue sobreviver só vendendo em Portugal acho que sim. Eu considerei sempre que queria trabalhar tanto nacional como internacionalmente e tenho tido sucesso com as vendas no exterior. Claro, parou no ano passado, mas já está tudo ativo neste momento.
Foto: Carlos Gil
Quando começou a Moda nacional era muito diferente. Quando olha para a Moda portuguesa hoje, o que é que o entusiasma? Tem por hábito seguir novos designers?
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Há imensos designers que eu admiro, tanto nacional como internacionalmente, agora é obvio que nós temos de nos focar. Quando eu comecei a trabalhar não tinha nada a ver com o que é hoje a Moda. Há uma evolução cada vez mais rápida. Daí hoje tanto se falar do fast fashion. Há uma necessidade de haver uma certa calma na apresentação das coleções. De qualquer maneira, lembro-me de que quando era aluno tinha de esperar 6 meses para conhecer uma coleção de um designer de que eu gostasse. Eu hoje vejo essa mesma coleção, e daí eu considerar hoje que o ensino está muito mais fácil do que quando eu era aluno, quando ela está a ser apresentada. Não preciso de esperar seis meses ou de ir à loja vê-la. Isto faz com que tudo seja muito mais rápido e que haja uma evolução muito maior nas próprias marcas, mas eu até acho que isso é muito bom. Acho que é de louvar.
Depois do cobertor de papa, há mais algum produto tradicional português que gostasse de ver reinterpretado, por si ou não, num desfile?
Há imensos produtos em Portugal que, provavelmente devido à falta de mão de obra e do saber, estão esquecidos. Nós temos rendas belíssimas, bordados qualquer coisa de espetaculares e quiçá a marca Carlos Gil possa pegar numa destas tradições... Contudo, aquilo que se pretende mesmo é divulgar para que haja o entusiasmo de outros para pegar no produto e depois mais tarde ele ser comercializado. Esse é que é o grande foco da marca Carlos Gil. É poder divulgar os produtos para que eles possam vir a ser produzidos numa escala diferente. E se eu puder divulgá-los um tanto melhor, fico feliz com isso.
Foto: Carlos Gil
Para que possam depois ganhar vida própria?
Claro. Hoje fala-se tanto de sustentabilidade... Isto é a maior forma de se poder dar sustentabilidade social. É dar vida àquilo que na realidade está a morrer aos poucos. Há imensa gente com um saber imenso que nos pode ajudar e nós podermos ser uma mais-valia. Se recuarmos há uns tempos a designer que veio buscar as camisolas de lã portuguesas, ela foi extremamente bem divulgada. Foi uma forma de divulgar o produto. Por essa razão acho que nós enquanto designers podemos trabalhar a Moda de uma forma sustentável e inovadora e dar vida ao que, na realidade, aos poucos se vai perdendo.
Essa discussão sobre a camisola poveira levantou uma vez mais a questão sobre a necessidade de ir ao exterior para se valorizar o que é português. Acha que existe essa mentalidade?
Essa pergunta é extremamente difícil. Nós damos muito valor ao que temos, mas na realidade quando as coisas têm um pulinho de divulgação no exterior as coisas têm um valor diferente, é verdade, sim, senhor. Onde está o erro? Talvez em nós.