Os haters vs. as sobrancelhas de Alexandra Reis: uma história de ignorância
A ex-secretária de Estado do Tesouro aceitou o pedido do ministro das Finanças, Fernando Medina, para que apresentasse a demissão no seguimento da polémica com a TAP. As caixas de comentários inundaram-se de insultos a Alexandra Reis - por causa do seu aspeto, sapatos incluídos.

Parece que ser-se imoralmente indemnizado com uma quantia obscena não é razão suficiente para se merecer uma crítica dura e justa: se o alvo for uma mulher, vamos olhar-lhe primeiro - e sobranceiramente - para a falta de cuidado com o arco das sobrancelhas, para a imprecisão na escolha da cor do batom, para o desleixo com o corte de cabelo, ou para as solas dos sapatos que usa.
Por falar nos Louboutin de 645 euros: alguém reparou nos restantes secretários de Estado que, a 2 de dezembro, tomaram posse no Palácio de Belém? Olha-se para alguns e pensa-se "este nem um pijama saberia vestir, coitado". Aparentemente, não, ninguém reparou. Uns de colarinho à banda, outros de casaco retorcido, uns que só lhes faltava irem desfraldados, outros ainda que nem uma gravata sabiam compor - todos passaram despercebidos no seu desfilar de fealdade. Porquê? Porque a então nova secretária de Estado do Tesouro, Alexandra Reis, teve o despautério de levar à cerimónia de assinatura na Presidência da República uns sapatos Louboutin - inconfundíveis, como se quer de tudo o que se ostenta, com o seu rasto vermelho - no valor, segundo publicações especializadas na matéria, de 645 euros. Onde é que já se viu.

Não se pede aqui que tenhamos compaixão por Alexandra Reis, a pessoa, a cidadã, a ex-governante e ex-gestora pública a quem faltou vergonha em mais do que um momento nos últimos meses - e o que lhe faltou em vergonha, sobrar-lhe-á em euros indemnizatórios, a fazer fé nos números que têm vindo a público. O que se exige é que haja decência nas críticas que se lhe fazem, ao invés das apreciações fúteis e eivadas de maldade, de preconceito, de machismo e de ignorância, sendo que esta última será a mãe de todas as anteriores: só gente muito ignorante consegue deter-se a olhar para o físico, para a indumentária e para o resultado dos cuidados estéticos de uma mulher quando em causa estão as suas práticas deploráveis na gestão e no manuseamento - não, a escolha do termo não é inocente - dos dinheiros públicos. (Já agora, uma pergunta, esta sim inocente: e se Alexandra Reis parecesse aos olhos desta gente uma mulher bela e sensual? Os quinhentos mil euros passariam a uma ninharia? Às tantas, estaríamos dispostos a dar-lhe a indemnização por completo, não fosse a ex-secretária de Estado precisar de dois mil pares de sapatos novos.)
É espantosa a diferença de tratamento que merecem os governantes homens e as governantes mulheres. Se calhar era por isso que, até há não muito tempo, as mulheres podiam, na melhor das hipóteses, chegar a governantas, nunca a governantes. Governavam a casa, sim senhor, mas mais do que isso alto lá! Gerir é coisa de homem. A mulher quer-se bonita, sim, porém com modéstia e de preferência sossegada. Da gestão cuidam os homens.
Exemplos não faltam, da primeira-ministra da Finlândia, que foi a uma festa, às "meninas bonitas do Bloco" - quantas vezes se aludiu publicamente e sem vergonha ao aspeto das líderes do Bloco de Esquerda, já agora? Sempre naquele tom de macho instalado que mistura a condescendência com o olhar babado que só os mais inconfessáveis apetites carnais despertam -, passando agora por Alexandra Reis, só para dar os mais óbvios e imediatos exemplos que me ocorrem sem que me esforce ou sequer faça uma busca de um segundo no Google. Mas há muitos mais e não é só por cá. A mulher ainda é vista, e principalmente na política, essa coutada macha, como um adorno, um elemento extra, uma presença com graça, uma inadequação necessária, uma exceção que confirma a regra.


Os homens, por seu lado, podem dar-se ao luxo de, evitando obviamente os Louboutin, levar no pulso rolexes e patekes que custam dezenas de milhares de euros, que ninguém irá questionar-lhes a necessidade de ostentação nem a falta de regras na gestão do orçamento doméstico - se compram é porque podem. Como é que podem, ninguém sabe - ou, se calhar, até sabe, mas são homens e não vamos estar a olhar para o que usam nem para como usam. (Detenho-me para contemplar a fotografia de grupo: Pedro Cilínio, da Economia, não é nenhum exemplo a vestir fato e gravata - mais valia ter levado a camisa de fora das calças; e o que dizer de António Mendonça Mendes, o ministro-adjunto, que parece curvar-se e retorcer-se de maneira a dar à roupa um contorno civilizado? Só é pena a gravata ser vermelha e, assim, dar nas vistas como os Louboutin da secretária de Estado do Tesouro - está visto que não é cor para usar em cerimónias destas, onde o que se exige é discrição e demonstrações públicas de austeridade e contenção. Mas aquela gravata estava tortíssima, não me venham cá com histórias.)
Onde é que eu ia? Ah, os bons costumes e as boas maneiras. O homo politicus, desde que homo no sentido másculo da palavra, pode dar-se ao luxo de se comportar como bem lhe aprouver. Recordemos, sem saudade, o tempo em que Santana Lopes era "um bon vivant", de quem só se lamentava a inegável e excêntrica falta de talento para governar. Agora, o que ele fazia em privado era lá com ele - e ainda bem, ainda bem, atenção: porque em privado é mesmo lá com ele, ou com outro qualquer, ou outra, ou com quem quer que seja, desde que não ocorram ilícitos e toda a gente esteja feliz. Porém, se em vez de Pedro, Santana Lopes fosse, por exemplo, Joana, não faltariam vozes a exigir a demissão do então primeiro–ministro pela vida devassa que - dizem, atenção! Dizem, provavelmente as más línguas - levava.


O que choca em todo este caso da indemnização - ontem alguém na televisão adjetivava a situação recorrendo à palavra "pornográfica" - da TAP à ex-secretária de Estado do Tesouro é que o caso em si deixou de ter importância. Abrem-se as latrinas de comentários das notícias sobre o assunto e o que se vê são descargas de ódio e de ignorância por tudo o que está à vista, o físico, as roupas, os cuidados que Alexandra Reis tem consigo e com o seu aspeto. Da sobrancelha robusta ao duplo queixo, do buço aos cabelos espigados, tudo parece ter muito mais importância do que o facto indesmentível de que não é uma pessoa de confiança para gerir negócios de milhões com dinheiros que não são dela, são de todos nós. E isso sim, devia ofender-nos e deixar-nos irados. Não os seus eventuais e possíveis pelos faciais.
É uma sorte que Medina seja Fernando e não Fernanda, caso contrário a esta hora estaríamos a debater o estado em que tinha as unhas quando assinou o cheque de meio milhão de euros.

Liz Truss, a mulher que pode derrubar Boris Johnson
Se nos tempos mais próximos houver uma corrida à liderança do partido, há uma candidata em que os Conservadores britânicos mais lealistas não param de falar. Entra em cena a mais recente ministra dos Negócios Estrangeiros de Boris Johnson – por vezes, a cavalo num tanque de guerra (qualquer semelhança com Thatcher, absolutamente intencional). Charlotte Edwardes fala com elementos de Westminster acerca de Liz Truss, de momento a mais poderosa mulher na política britânica.