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Dia Mundial da Consciencialização do Autismo. Testemunho de uma mãe

"Meu filho está crescendo e ainda não me sinto pronta para ser sua mãe. Não sei se um dia eu me sentirei. Tento me inspirar em cada gesto, cada diferença, seja na ausência da fala, seja na sua hiperatividade, mas, principalmente, na coragem de ele ser quem ele é." Mona Camargo conta como é ser mãe de Salvador, menino autista.

Foto: Mona Camargo
02 de abril de 2023 Máxima

Precisamos falar de inclusão social e não estou falando apenas das crianças autistas, a maternidade atípica também passa por essa exclusão. Recebi o diagnóstico de autismo do meu filho em fevereiro de 2020. Poucas semanas depois o mundo virava de cabeça pra baixo e estávamos em isolamento.

É difícil expressar com palavras os sentimentos que tive naquele momento. Os medos e angústias que senti. É como se me tivessem tirado o que eu tinha de mais valioso. Perdi o chão. A internet se transformou numa obsessão e eu passava os dias em pesquisas em busca de uma "cura" para o autismo do meu filho.

Hoje, três anos depois, muita coisa mudou em mim, no meu Salvador e nas nossas vidas. Não se trata de curar, o autismo não tem cura. É sobre nos curarmos a nós mesmos, sobre aceitarmos esse desafio com outro olhar. E livre de preconceitos. O que não falta é amor, sentimento materno que, por vezes, chega a ser doloroso. Mas nos enche de força, foco e dedicação, tão necessários durante essa longa caminhada.

Quando uma criança autista é diagnosticada, nasce uma mãe atípica. A sua vida é transformada, nada e ninguém nos prepara para algo parecido. Costumo dizer que o discurso de mãe guerreira não ajuda em nada. Quem disse que eu queria ser guerreira? Um filho é um pedaço de nós, e saber que essa criança vai crescer em um mundo tóxico, com uma normatividade instalada, e que provavelmente não será compreendida, dói todos os dias. Todos.

Escrevi um texto sobre este tema no ano passado, para a revista Marie Claire (Brasil), e contei meu percurso até à descoberta do diagnóstico do Salvador. Na ocasião citei que no mundo, 1 a cada 54 crianças tem TEA (Transtorno do Espectro Autista), de acordo com Centro de Controle de Doenças e Prevenção nos EUA. De lá para cá, esses números foram atualizados – para 1 a cada 44 crianças. É muito significativo. A sociedade precisa de se adaptar a essa realidade.

Como mãe, me preocupo com as escolas que ainda não estão minimamente preparadas. Existe uma falsa inclusão que precisa de ser revista. Não é porque a escola aceita a criança que ela se torna inclusiva. É necessário formar educadores, adaptar os conteúdos, combater o bullying, entre outras questões.

Para além das instituições de ensino, existe o maior desafio: uma sociedade que julga, evita e esconde o preconceito sobre as diferenças. Li recentemente que "só quando se reconhecerem as muitas formas de ser gente é que a justiça e os direitos humanos serão possíveis", do escritor Andrew Solomon. E me pergunto: quantas pessoas precisam sofrer até isso se tornar realidade?

Salvador acaba de completar 5 anos e já coleciono situações desagradáveis que passámos em locais públicos. Carrego alguns desses momentos comigo, os mais doloridos. São eles que me transformam numa mãe ativista que tem por obrigação criar um mundo mais justo para as nossas crianças.

Não quero romantizar a causa, mas o tema autismo tem muito nos ensinar-nos e falar sobre isso ajuda a desmistificar e normalizar essa realidade. A questão do julgamento social não é "privilégio" de uma mãe atípica, a maternidade como um todo já é bem difícil. Muitas vezes as pessoas apontam como "falta de educação" uma birra infantil ou uma postura menos enquadrada.

Esse tipo de atitude é maldosa, e isso sim eu considero a postura de quem não tem educação, empatia e respeito. Faço questão de dizer que meu filho é autista sempre que sinto pouco acolhida. Só nós sabemos o medo que temos de quando não estivermos mais aqui. Uma mãe atípica pensa muito sobre isso e o futuro da criança vira um filme na cabeça de cada uma. E não é um filme com final feliz. 

Eu vou continuar a lidar com olhares, com preconceito, mas se eu tiver oportunidade de tocar as pessoas e de apresentá-las ao mundo do Salvador, posso ajudar a ampliar a sua visão e terei o sentimento de dever comprido.

Uma mãe atípica costuma ter baixa autoestima e esse é um ponto que muito me interessa trabalhar, tanto em mim quanto nas mulheres que passam pela mesma situação. A luta diária por uma qualidade de vida melhor para essas crianças não pode anular nossos sonhos, desejos e, principalmente, nossa saúde mental. Até porque no surto não se evolui em nada.

Sou a ansiedade em pessoa, já era assim antes de ser mãe. Por um tempo achei mesmo que a minha vida tinha acabado. Não foi fácil sair desse lugar, mas hoje em dia estou batalhando para me reencontrar. A maternidade chega quebrando portas, nos distancia de nossos sonhos, projetos... É culpa atrás de culpa e esquecemos de quem somos realmente. No caso da mãe atípica, fica ainda mais difícil ter uma vida social ativa. Sair com amigos, namorar, estar num aplicativo de relacionamento, porque não?

Eu gosto e preciso muito de socializar. Mas nos meus programas com o Salvador, ir para restaurantes com amigos não é uma boa opção. Eu vou, mas ele não dura muito e por isso mais vale organizar almoços em casa, ou em casa de amigos que ele esteja acostumado, onde ele se vai sentir seguro e mais regulado. Assim, eu consigo ter a troca com as pessoas que eu gosto e me sinto incluída, sem ficar nervosa ou preocupada. Claro que a realidade de cada uma de nós é muito relativa e cada criança autista é única em suas questões, dificuldades e desafios.

O meu filho está crescendo e ainda não me sinto pronta para ser sua mãe. Não sei se um dia eu me sentirei. Tento me inspirar em cada gesto, cada diferença, seja na ausência da fala, seja na sua hiperatividade, mas, principalmente, na coragem de ele ser quem ele é.

Eu sei que com o tempo a vida não vai ficar mais fácil, somos nós que ficamos mais fortes a cada dia. O meu lugar de fala me permite dizer: se você tem alguém próximo a viver essa experiência, acolha, inclua, passe a palavra para aqueles que não têm informação e, por favor, não tema as diferenças.

Sejamos livres para ser nossa essência. Um futuro melhor e mais inclusivo nos espera ali na esquina. 

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