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Paula Espírito Santo: "Cerca de 70% ou mais das pessoas filiadas em partidos são homens."

É verdade que as mulheres votam mais à esquerda? Serão elas mais sensíveis às causas e às pessoas do que à ideologia pura e dura? Em vésperas das eleições legislativas, a socióloga Paula Espírito Santo, especialista em Ciência Política e em comportamento eleitoral, ajuda-nos a decifrar tendências e avalia até que ponto pode o género fazer a diferença.

Foto: DR
04 de março de 2024 às 11:31 Rita Lúcio Martins

Foi a dia 28 de maio de 1911 que Carolina Beatriz Ângelo, explorando uma imprecisão da lei eleitoral da Primeira República Portuguesa, se tornou na primeira mulher a votar em Portugal. Dois anos depois, e para evitar que mais alguma mulher reclamasse o seu direito ao voto, a lei voltava a mudar, especificando que só poderiam ir às urnas cidadãos portugueses do sexo masculino. No início do século XX, elas já podiam votar em países como a Nova Zelândia (1893), na Austrália (1902) ou na Finlândia (1906) que, de resto, foi o primeiro país a eleger mulheres para o Parlamento, em 1907. Por cá o caminho foi mais lento e, ainda que o voto feminino tenha sido reconhecido durante o Estado Novo, foi preciso esperar por Abril de 1974 para que se conquistasse o voto universal. No ano em que comemoramos os 50 anos da revolução, regressamos às urnas, para aquelas que alguns já consideraram as eleições [legislativas] mais decisivas da nossa democracia. Para tentar decifrar algumas tendências globais, e compreender melhor os contornos e impactos do voto das mulheres, conversámos com Paula Espírito Santo. Professora e investigadora no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), é especialista em Ciência Política, com vários trabalhos publicados (e premiados) sobre militância política e comportamento eleitoral.

Num artigo recentemente publicado pelo Financial Times fez-se uma análise do modern gender voting gap, ou seja, a tendência para a clivagem ideológica entre géneros, na geração Z (pessoas nascidas entre a segunda metade da década de 1990 e 2010), concluindo que as mulheres tendem a ser mais progressistas e os homens mais conservadores. É uma tendência global com expressão a nível nacional?

Tenho muitas dúvidas. Confesso que não conheço o estudo a fundo, mas quando trabalhamos nestes projetos internacionais temos de ter em conta o contexto. Mesmo considerando que as democracias ocidentais têm um enquadramento idêntico no plano dos direitos e dos deveres, por vezes, a oferta política pode fazer a diferença em aspetos concretos, como o da personalização, ou seja, o facto de haver determinados líderes que podem mobilizar mais ou menos. Temos de ter, portanto, uma perspetiva cautelosa porque, ou estamos a falar de uma tendência de longa duração, o que significa que não se trata de um momento único de recolha dos dados, de um único estudo pós-eleitoral, ou poderá haver um efeito de conjuntura [a considerar]. Por exemplo, dizia-se que o [Presidente] Obama atraía mais o voto feminino, mas quando se estudava a questão, concluia-se que isso tinha muito a ver com a figura dele, com a forma identificava os problemas, como comunicava e se posicionava frente ao eleitorado. Pode acontecer que essa tendência [de as mulheres alinharem mais à esquerda] se verifique em contextos particulares e tendo em conta uma determinada conjuntura do ponto de vista económico ou político, mas não sei se a podemos associar a uma regra constante, até porque para isso precisamos de um estudo longitudinal que a possa associar a uma tendência de média duração ou com alguma persistência. Temos de ver se há continuidade ou não. O género, por regra, não é identificador de uma identidade política mais liberal nem é um elemento diferenciador nas opções políticas.

Já no que respeita à filiação partidária, a situação é diferente.

Sim, faço esse estudo, não só em Portugal, mas também a nível internacional. No projeto MAAP (Members and Activists of Political Parties), desenvolvido com o professor Marco Lisi, fazemos esse levantamento do número de mulheres filiadas e concluímos que, independentemente de se tratar de partidos de esquerda ou de direita, é muito inferior ao número de homens. Cerca de 70% ou mais das pessoas filiadas em partidos são homens. Podemos dizer que as mulheres são menos politizadas ou que se aproximam menos da filiação partidária do que os homens.

Dizia que, na análise deste alinhamento das mulheres à esquerda, devemos ter em conta o contexto. Em que medida?

É importante perceber o que significa 'a esquerda', porque ela abrange um leque muito grande de opções. O PS é considerado um partido de esquerda, mas [a nível nacional] também existem partidos da social-democracia que, no plano europeu, se enquadram no centro-esquerda. Temos os comunistas, os verdes, os ecologistas. Ou seja, o espetro da esquerda é muito amplo. No caso da direita também há essa segmentação, com partidos mais conservadores e partidos na extrema-direita, que trazem quase uma reação, no sentido 'não que nos identifiquemos com os outros, mas sabemos que não nos identificamos com este'. Ou seja, pode haver uma identificação com partidos de esquerda, dentro deste amplo espetro, mas também pode haver uma identificação por oposição, ou seja, como contra-resposta ao crescimento dos populismos, considerando que estes têm muito a ver com uma direita radical. Um trabalho recente do [jornal] Expresso traçou esse perfil do eleitorado do Chega e concluiu que tendencialmente eram mais homens e mais jovens (até aos 40 anos). Por oposição, talvez possamos dizer que as mulheres têm mais facilidade em identificar soluções mais amplas e de um compromisso que permite alguma maleabilidade ideológica, por oposição a grupos e partidos mais extremistas que poderão atrair mais jovens e mais homens.

Parece evidente que as mulheres portuguesas têm menos expressão na esfera política. Isso terá que ver com a nossa (ainda) jovem democracia e com a penetração das mulheres no espaço público?

O caso português tem um histórico interessantíssimo. Já referi os dados da filiação partidária, em que 70% ou mais é composta por homens, e que, de resto, é uma tendência internacional. Passa-se o mesmo noutros países que fazem parte do estudo que estamos a desenvolver, como os Estados Unidos, França, Itália, os países nórdicos, a proporção é sempre de 60% [homens filiados] 40% [mulheres filiadas]. Mas em Portugal a diferença acentua-se. Olhemos ao voto propriamente dito: chegámos a 1973 com 20% de recenseados. Em 1967, as mulheres já tinham conquistado o direito a votar (e aqui importa lembrar a exceção da Beatriz Ângelo, em 1911), mas desde que tivessem estudos secundários ou superiores, vivessem sob si próprias e os seus bens, fossem chefes de família (que é um conceito que cai em desuso a partir de 1974) e fossem de reconhecida idoneidade moral. Isto para dizer que há um pequeno aumento da proporção de mulheres que pode votar, mas também que foi só há 57 anos que tivemos direito ao voto e mesmo assim era necessário reunir um conjunto de requisitos. Importa lembrar também que temos níveis de literacia muito baixos. Chegámos a 1974 como um dos países com maior taxa de pessoas que não sabem ler nem escrever. Hoje, somos um dos países em que se lê menos, no plano europeu. O fecho de jornais e revistas mostra isto. Somos o acumular de tudo isto do ponto de vista cívico e social.

Mas esse afastamento das mulheres da esfera política é fruto de um certo desinteresse ou haverá também uma espécie de bloqueio, na defesa de um status quo?

É dual. É uma realidade com justificações multidimensionais. Somos o resultado de uma construção social. Antes de mais, importa dizer que, genericamente, quer sejamos rapazes ou raparigas, não somos socializados para a política, mas quando nos aproximamos da filiação partidária, acabamos por fazer perpetrar um modelo que é tendencialmente masculino - e isso tem a ver com agentes de socialização como a família, a escola, os meios de comunicação social, os grupos de pares. Nas minhas aulas de Sociologia Política, costumo fazer um exercício. Pergunto quantas pessoas são filiadas, e há sempre uma ou duas, numa turma de 50. Depois, pergunto quantas são sócias de um clube e metade da turma levanta a mão. Isto para dizer que somos socializados para várias áreas, particularmente para o futebol, mas, para a política, não. Mesmo tendo as aulas de cidadania, isso não acontece. E na escola temos essa responsabilidade. Mas depois queremos que, aos 18 anos, [os e as jovens] despertem para a política, quando não têm qualquer afinidade, formação ou interesse, porque não foram socializados para isso. E esta não é uma tendência exclusiva de Portugal, é transversal às democracias ocidentais. A política acaba por não ser uma ideia interessante. E isto é algo que vai além do género.

Ainda assim, concorda que há diferenças efetivas...

Eu dou aulas [no ISCSP] há 32 anos e observo a realidade à minha volta. Percebemos que as mulheres vão vingando pelo seu trabalho, mas também ficamos com dúvidas, sobretudo em cargos em que há um pendor mais político. Em que medida é que há influências para além daquela que deveria ser a principal, o currículo?! Ou seja, há muitas motivações e alguma endogamia. Quando chegamos a um patamar mais elevado, percebemos que há múltiplas influências, seja nas empresas ou numa universidade. Nem sempre é fácil identificar uma razão, uma justificação, mas muitas vezes tem a ver com cumplicidades, com solidariedades que se estabelecem, e que vão para além do trabalho feito e do que é objetivo de avaliar. Se essas cumplicidades têm algum aliado do ponto de vista do género? Eu coloco essa interrogação, porque na verdade o que encontramos é a tendência genérica de dificuldade de as mulheres ascenderem a determinados cargos de topo, mas que não se compadece com o trabalho feito. Fica a dúvida sobre qual o caminho a percorrer e como podermos ter uma sociedade mais equilibrada e mais justa (...). Mas voltando à justificação [para a menor presença das mulheres na esfera política], ela é muito genérica e entronca num conceito muito importante e amplo na sociologia: a cultura. Não conseguimos combater hábitos culturalmente enraizados. Os pré-conceitos que temos sobre o que se deve associar a uma liderança ou ao exercício de determinados cargos. Há uma matriz tendencialmente masculina, com um lastro antigo e que se está a renovar. O efeito do género pode minimizar-se, no sentido de deixar de ser um requisito, mas no momento ainda não é visível.

Defende que, às vezes, as questões de liderança acabam por pesar mais do que a ideologia propriamente dita. Isso significa que votamos mais em pessoas do que em partidos?

Quando olhamos à escolha política, tendemos a observar tudo o que a envolve: os programas, a ideologia, mas também a personagem que temos à frente. As convicções são importantes para uma parte do eleitorado, mas para a outra parte, a que transita entre a esquerda e a direita, tende a desprender-se de convicções cristalizadas e a refletir em função do momento. Eu diria que a equação contempla questões como 'o que é que é melhor', 'o que pesa mais', 'se, independentemente da ideologia, se valoriza a competência do desempenho'. Talvez essa versatilidade, por hipótese (e isso é algo que talvez possa ser estudado no campo da psicologia social), possa ser uma característica feminina, em que avaliamos cada momento em função dos vários aspetos importantes no voto. E o desempenho é importante, porque a política deve associar-se aos rostos. Essa versatilidade dá mais trabalho porque implica uma reflexão, a cada momento, sobre o político/força partidária que vamos escolher. Não estar acomodada a uma ideologia dá mais trabalho porque implica estar, em permanência, a refletir sobre o que se vai fazer. Mas isso acontece mais ao centro do que nos extremos.

A atenção dada às questões da igualdade de género capta mais a atenção e o voto das mulheres? Por outro lado, estas questões não interessam a todas as mulheres da mesma forma...

Se olharmos à esquerda, no momento presente, temos duas mulheres [na liderança], no PAN e no Bloco de Esquerda. Julgo que isso pode ajudar a conquistar eleitorado, por identificação de género ou afinidade. As causas que tiveram mais eco à esquerda, grandes bandeiras como foram a do casamento entre pessoas do mesmo sexo ou da interrupção voluntária da gravidez, foram importantes para que se criasse uma base eleitoral forte. Hoje, existem outras bandeiras importantes que vão para além do género, como a da habitação ou a questão ambiental. O debate, agora, tem sido mais dominado pelas dificuldades, em torno da habitação, dos impostos, da saúde, da segurança, da educação. Existe uma série de problemas que fica por resolver, como o demográfico, que considero um dos mais graves (...) Os tempos de crise trazem questões mais urgentes e, por isso, têm essa contingência de subalternizar outras questões essenciais da sociedade, contribuindo assim para perpetuar um ciclo de desequilíbrios e iniquidades entre homens e mulheres.

Tem-se falado muito da importância que os votos dos indecisos terão na determinação do vencedor. Há dados que revelam que estes são, sobretudo, mulheres. Até que ponto é que o voto feminino pode ser decisivo?

Aqui tenho uma opinião um bocadinho mais conservadora. Se pensarmos nos estudos pré-eleitorais, nas sondagens, no erro de amostragem, com um nível de confiança que normalmente ronda os 95%, a proporção de indecisos anda entre os 15 e os 20%. Não tem havido estudos que distingam os indecisos em termos de género, tem aliás havido muitas dúvidas sobre quem são os indecisos sob o ponto de vista dos perfis sociodemográficos, se eles podem trazer alguma diferenciação e determinar a governabilidade, mas creio que será difícil pelo fator da volatilidade. No plano abstrato, o que sabemos dos indecisos é que há duas grandes dimensões: por um lado, pessoas com um perfil mais diferenciado, que não estão fidelizadas num partido, que refletem muito sobre o assunto, e que por isso querem ter mais informação; por outro lado, os indecisos com pouca diferenciação em termos socioeconómicos e profissionais, e que têm dificuldade em gerir a informação que vão recebendo.

A comunicação social tem um papel importante nesse esclarecimento. Como é que vê o espaço que o comentário político televisivo tem conquistado, mas também a presença crescente de mulheres nos painéis de comentário?

Estou a lembrar-me do estudo de uma colega da [Universidade] Católica, a Rita Figueiras, intitulado A política do comentário, o comentário da política. Existem três grandes grupos no comentário: os membros dos partidos, os jornalistas e os académicos, tendo estes os últimos dois um perfil mais neutro. Quanto à presença de mulheres, sei, por exemplo, que a RTP procura diversificar, não só em termos de género, mas a vários níveis. Creio que esse equilíbrio é procurado de forma consciente pelos canais, ainda que possa haver constrangimentos (recentemente participei num painel em que uma das oradoras não pôde estar fisicamente presente porque tinha um bebé de seis meses e não podia deslocar-se). Mas o comentário é mais um elemento que contribui para a informação, tal como as sondagens ou a cobertura noticiosa. Já o comentário do comentário, como dizia o Ricardo Araújo Pereira... pode ter importância na mobilização pelo voto. Pelo menos para isso. Claro que também pode atingir um ponto de saturação. Talvez a minha seja uma posição muito pessoal, mas a política nem sempre é um assunto central ou prioritário e [tendo em conta os temas dos serões informativos], se pensarmos nesta 'competição' com o futebol, muitas vezes o futebol ganha a dianteira. Por isso, não vejo muito mal em trazer novos ângulos, em manter o interesse pela análise porque, de alguma forma, acabamos por atrair eleitores, sobretudo os mais jovens. Penso que isso pode mobilizar para o voto, por isso não tenho uma opinião negativa. 

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