Histórias de Amor Moderno: “Ele saiu de casa, foi dramático, foi um rombo em tudo o que eu tinha e em tudo o que eu acreditava.”
“Vivemos num país onde é mais fácil um diretor de recursos humanos despedir um trabalhador do que uma mulher conseguir o divórcio, caso o marido não esteja disposto a concedê-lo.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.
Histórias de Amor Moderno
Histórias de Amor Moderno: “Ele saiu de casa, foi dramático, foi um rombo em tudo o que eu tinha e em tudo o que eu acreditava.”Há uma frase do Joaquim que guardo como uma espécie de mantra, só que ao contrário. Quando a repito, faço-o para que nunca me esqueça do que ele foi para mim e do que representou na minha vida. Não foi pouco. Passámos juntos 26 anos. Conheci-o quando tinha 18, ele era cinco anos mais velho. “Se eu ganhasse o que tu ganhas e ganhasses tu o que eu ganho, provavelmente eu não saía de casa.”
Quando ele mencionou “sair de casa”, não se referia a sair à noite, a ir beber café com amigos nem a ir jantar fora, coisas do género. Ele queria mesmo dizer “sair de casa”, no sentido de fazer as malas, pegar na trouxa e deixar-nos, a mim e ao nosso filho, para mudar de vida.
E quando sublinhou o que ele ganhava e o que eu ganhava, queria dizer mais concretamente que ele faturava umas sete ou oito vezes aquilo que me pagavam a mim. E não é que eu ganhasse mal, pelo contrário. Mas ele estava noutro nível. O seu salário era principesco. “Se eu ganhasse o que tu ganhas e ganhasses tu o que eu ganho, provavelmente eu não saía de casa.” Ainda hoje me espanta que tenha conseguido ser, numa só frase, o mais perfeito exemplo do que é ser-se desagradável e sem maneiras.
O Joaquim saiu de casa há dois anos, mas não me deu logo o divórcio. Eu também não quis imediatamente o divórcio, até porque não me apercebi logo do que se estava a passar. Ele saiu de casa, foi dramático, foi um rombo em tudo o que eu tinha e em tudo o que eu acreditava. Cronstruímos uma vida juntos, pelo que me custava vê-lo sair de casa assim, daquela maneira, sem que tivesse havido conversas anteriores que me dessem pistas. Quer dizer, insatisfações todos temos. No entanto, se alguém decide sair de casa, em princípio não é só insatisfação que sente. Haverá mais qualquer coisa.
Eu, ingénua, acreditei ou quis acreditar que se tratava daquilo a que homens infelizes com a vida que lhes calhou ou que decidiram levar chamam “crise de meia idade”. A sociedade ocidental criou para o homem esse pequeno refúgio, uma espécie de reserva natural onde a moralidade se pode desfazer porque a criatura portadora de pénis, coitada, decide que quer fazer reset à vida toda. E então ficamos todos à espera que o indivíduo saia em busca de aventura, se resolva de uma vez por todas e, enfim, regresse a casa clarividente depois de perceber que afinal até estava bem como estava antes, com a vida que levava.
Há uns que compram automóveis extravagantes, outros fazem retiros no Tibete, os mais criativos vão viajar pelo mundo todo, alguns contentam-se com umas tatuagens. Os mais pobres - pelo menos, pobres de espírito - arranjam amantes fáceis, geralmente bastante mais novas do que as mulheres que tinham até lhes aparecer a crise, e, depois de resolvido o problema da libido, voltam para casa com o rabinho entre as pernas quando as amantes os fazem sentir desamados. Tristes e desamparados, é então que decidem procurar conforto e aconchego nos braços da ex-mulher. Quando têm sorte, o que é frequente, recuperam tudo aquilo que haviam abandonado.
Achei que fosse esse o caso do Joaquim: na altura, ele à beira dos 50 anos, talvez estivesse a sentir o apelo do retiro espiritual. Só não sabia se ele iria para o Tibete, para o Nepal, para Índia ou para o Japão. Para minha surpresa, não foi tão longe: soube por uma publicação nas redes sociais de um amigo de uma amiga que, afinal de contas, estava em Tarifa com uma moça chamada Suzete. Verdade. E não foi lá que se conheceram, que ela é do Montijo. E, por coincidência, certamente, a Suzete era e é a assistente dele no departamento de Recursos Humanos de que o Joaquim se tornou diretor - e de onde jorrava o tão gabado rio de dinheiro que me jogou à cara quando disse que, se fosse ao contrario e fosse eu a endinheirada e ele o remediado, ele se calhar nem saía de casa.
Foi quando soube de Tarifa que jurei a mim mesma que deixaria de ser parva e de acreditar na bondade daquele traste. Escrevi-lhe uma carta que imprimi em duplicado. Uma das cópias, enviei para ele, a pedir-lhe o divórcio. Elencava ao longo de dezenas de pontos tudo o que ele me tinha feito sentir, o quanto me tinha magoado, de que maneiras me tinha desiludido e ainda acrescentava, em várias frases eloquentemente descritivas, a que é que me tinha sabido a traição quando descobri o seu affair. A outra cópia, guardei para mim. Queria ter por perto uma cábula extensa e clara, em que pudesse confiar, para o caso de algum dia, por qualquer motivo, ter uma recaída ou sentir alguma espécie de saudade.
O Joaquim negou sempre tudo. Mesmo diante de evidências claras como água - a água do mar de Tarifa, mais precisamente -, dizia que entre ele e a Suzete existira apenas uma amizade mais intensa quando ele decidiu separar-se de mim. De nós, porque o filho também ficou para trás. Segundo o Joaquim, sentira-se sozinho depois de sair de casa e procurou aconchego na companhia de uma rapariga que conhecia bem e de quem era muito amigo.
Obviamente, insisti para que não gozasse comigo e para que, por uma vez que fosse na vida, tentasse ser sério e digno. E que me assinasse os papéis do divórcio. Infelizmente, vivemos num país onde é mais fácil um diretor de recursos humanos despedir um trabalhador do que uma mulher conseguir o divórcio, caso o marido não esteja disposto a concedê-lo.
A situação arrastou-se. O Joaquim levou tudo até à última. Só quando eu já tinha advogados a postos para avançar para tribunal, e conseguir na justiça o que não conseguira apelando ao bom senso, é que esse canalha se dignou a assinar os papéis. Foram quase dois anos de luta e insistência até conseguir resolver a situação. Mas antes de chegarmos, finalmente, a acordo, ainda houve uma série de tropelias dignas de filme de comédia.
A minha favorita foi quando o Joaquim, um farrapo de pessoa nesse período, chegou lá a casa e pediu para voltar. Implorou, suplicou. Que me amava muito, que tinha cometido um erro, mas que entretanto se apercebera e que estava agora disposto a tudo para o reparar e para me compensar pelos danos causados. Mal sabia ele que eu estava perfeitamente ao corrente do que se passava: a Suzete tinha-se chateado com ele e andava muito próxima de outro rapaz - mais novo, mais adequado à idade dela - também do departamento de recursos humanos.
Pus o Joaquim na rua. Disse-lhe que não lhe admitia. Não depois do que ele me fizera passar, do que me fizera sofrer, do quanto me humilhara e de todas as mentiras que me havia dito, sempre com a maior das convicções. Ele resistiu, eu insisti. Acho que na cabeça dele eu ainda era a miúda embevecida com o seu charme. E, se calhar, ainda há um bocadinho de mim que até é. Só que, como já não sou uma miúda, as coisas mudaram. Rua e já! E que não me voltasse a entrar em casa, muito menos por motivos daqueles.
Foi-se embora. Foi o melhor que eu fiz e, porque não?, o melhor que ele fez também. Soube mais tarde que não demorou nem três dias a fazer as pazes com a sua assistente amada, a Suzete do Montijo. Estão bem um para o outro. Passado pouco mais de uma semana deste episódio, assinou finalmente o divórcio. Caso encerrado.
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