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O que aprendi com a Maria Teresa Horta

Foto: DR
07 de fevereiro de 2025 às 12:49 Patrícia Barnabé

A primeira vez que li a Maria Teresa foi numa revista que apareceu lá em casa, Mulheres, onde ela foi chefe de redação. Às vezes penso que é deste lugar remoto da minha memória que vem boa parte da jornalista em que me tornei. Sempre adorei revistas e cultura, como Maria Teresa, e uma boa parte das mulheres a quem queria pertencer e que cresci a admirar. Um dia disse-lhe e ela soltou uma das suas gargalhadas belas e sonoras que sacudiam os seus caracóis ruivos e enchiam uma sala de luz. Entrevistei-a várias vezes e das últimas ela convidava-me sempre a voltar, para um chazinho, as conversas com ela eram belas, profundas, intermináveis. Poucas vezes me senti tão compreendida nas minhas causas profundas. Ainda hoje, e mesmo entre os meus, tenho de traduzir as escalas de cinzento dos temas que me fazem pensar. Com ela podíamos fazer aquela coisa rara que é pensar alto, ela era um mundo.

Foto: @CORREIO DA MANHA

É uma sorte nascer numa casa onde há muitos livros e quem os lê é a nossa mãe. A mesma que tem convicções sociais, políticas e humanistas vincadas, e as passa apaixonadamente às filhas. Claro que foi a minha mãe que me falou do escândalo das Três Marias, acusadas de pornografia por terem escrito um tratado magnífico sobre o feminismo. Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa, e Maria Isabel Barreno deram o peito às balas, em plena ditadura, por todas nós. As Novas Cartas Portuguesas, escritas em 1972, são um marco do poder feminino, partiram a casa toda, com o aplauso de outros países europeus onde o feminismo já tinha feito estrada. O 25 de Abril deu-se no dia em que era suposto sair a sua sentença, elas escandalizaram o país, imagine-se, com a sua liberdade. Nesta terça-feira de manhã, foi a minha mãe que me ligou a dar a notícia da sua morte.

Quando as Novas Cartas foram reeditadas, Maria Teresa disse-me: "É um livro muito mal amado em Portugal. Esteve esgotado 25 anos, foi reeditado em imensos países e fui eu que tive de insistir para que se reeditasse cá. É o livro escrito por um autor português traduzido em mais línguas, e não é nenhum livro do Saramago! Em Portugal, continua a fazer-se um silêncio absoluto face às Novas Cartas, porque os agentes culturais, como hoje se diz, são homens e não gostam. Aquilo ofende-os, magoa-os, é um espelho onde eles não gostam de se ver."

Foto: @CORREIO DA MANHA

Dizia, também: "As mulheres, na altura em que o livro foi editado pela primeira vez, nem sequer sabiam que tinham direitos, hoje já sabem. Todos ganharam com a revolução, mas as mulheres mais do que ninguém. Antes eram perfeitamente inexistentes, não havia leis que as integrassem. Um homem podia matar a mulher por adultério invocando o crime de atentado contra a honra e não era preso, iam para tribunal e depois para a comarca em Santarém ou Almada. Era um crime de honra, as mulheres pertenciam aos homens que mandavam nelas. Para saírem de Portugal precisavam de autorização dos maridos. A mulher nem tinha poder sobre os filhos. 'Lá em casa manda ela, mas nela mando eu" aquela frase portuguesa que hoje em dia está escrita nos azulejozinhos'".

Com ela aprendi também que a amizade feminina é das mais valiosas. Por sorte, ou talento, tenho um grupo de amigas extraordinárias, que demorei a encontrar: "Eu acho que as mulheres são especiais", dizia muitas vezes. "Prefiro trabalhar com mulheres. Eu só não fui parar à prisão por solidariedade feminina. Eu, a Maria Velho da Costa e a Isabel Barreno não fomos presas porque mulheres que não nos conheciam, durante dois anos, sacrificaram-se por nós. Eu não podia viver sem a amizade feminina. Se as mulheres se dividirem entre si, para os homens é tudo mais fácil. Nós temos uma força que eles não possuem, nem pela metade. Nós somos a Natureza. A nossa menstruação é ditada pela lua, como as marés. De nós vem a morte e a vida. E, das muitas mulheres que lutaram pelos nossos direitos, uma força telúrica, diversa, moderna."

Foto: Sebastião Almeida/ @MÁXIMA

A liberdade das mulheres sempre foi assunto público e ainda hoje andamos a discuti-la. É o valor mais alto na casa onde cresci, mas a Maria Teresa mostrou-me a sua cintilação feminina. Nem por acaso, em 2022 foi agraciada pela Grande Ordem da Liberdade. Da liberdade vem tudo o resto, da verdadeira, total, absoluta, inegociável. Cedo percebi que nunca seria completamente livre porque nasci menina. Em tantos países por esse mundo injusto fora, ainda é um colete de forças; com a Maria Teresa aprendi que ao escolher essa forma de liberdade que é o jornalismo, o ativismo e a frontalidade, a vida me ia ser mais difícil. E tem sido. Mas não quero saber, faço-o pelas filhas que não tive.

Sempre a admirei por olhar o perigo de frente e, ao mesmo tempo, ser coquette. Coisa rara para quem cresceu num país pós-revolução, onde a inteligência não podia ter glamour. Maria Teresa, sempre sem maquilhagem, adorava roupa e os dedos cheios de anéis, colecionava pedrinhas em forma de coração, coloridas como a sua sala atulhada de livros. E não tinha vergonha da sensualidade, leia-se a sua poesia erótica. Ela fazia parte de uma dúzia, mal contada, de portuguesas sem medo. Sem o medo, havia a vida, já dizia a Clarice Lispector. É da força de vida que vem o grande erotismo e o poder de sedução. E ela teve a sorte de encontrar um amor incondicional, um homem que a entendeu, assim, felina, e a amou também por isso. Coisa rara ainda hoje.

Foto: DR

Ela era irónica, jocosa, sarcástica como só os muito inteligentes. Era frontal e intrépida num país conservador, rural, bola-baixa, amedrontado por uma ditadura agarrada às saias dos bispos. O discurso misógino centenário lançado pela Igreja Católica estava tão bem embrulhado na santidade da Nossa Senhora, a mãe, que nem se dava por isso, mas retirou-nos todas as outras opções. Aqui, quando nasci, os homens só adoravam verdadeiramente as suas mães – no Ultramar, tatuavam-nas no braço: amor de mãe.

Aprendi com ela a importância do poder da palavra, e do combate do jornalismo, para um mundo melhor. E de dizer exatamente o que se acha num país de meias verdades. Quantas vezes me contou dos sobrolhos desconfiados dos colegas, nos jornais como no partido comunista, onde era uma minoria. Ainda hoje, contam-se pelos dedos as raparigas que dizem o que pensam, sem a vontade primeira de agradar, de seduzir, de cuidar. Com ela senti que não estava só num mar de mulheres de submissas ou de matriarcas, uma maioria silenciosa a repetir os padrões de sempre, em modo sacrificial e diligente, para encaixar, ou a mandar em tudo, o poder privado do lar para compensar o público que esteve sempre interdito. Como detestámos juntas a sopeirice das patroas e das sonsas. Foi tão bem montado o circo do machismo, tem estacas milenares. "O maior trabalho de mentalidades continua por fazer", repetia.

Foto: DR

Uma vez disse-me, com muita graça, "Sabe, eles gostam é das que fazem pernas de carneiro no forno e passam o dia todo a deitar-lhe molho por cima". Ainda hoje uso essa frase, porque elas ainda conquistam pela cozinha ou pela cama. Como sempre, como dantes. As mulheres opinativas e as que apenas fazem o que querem, são sempre selvagens, malucas, descompensadas, mal-amadas, para não dizer pior, frias, bruxas, enfim. Dantes dizia-se que tinham falta de homem ou eram histéricas. Se sou uma minoria na minha geração, ela foi uma raridade na sua. E ajudou-nos a todas. Como antes as sufragistas e as intelectuais, essas malucas. A liberdade pega-se e nunca mais se larga. Com ela também aprendi a sacudir a culpa com que nascemos todas sem saber, é terrível. Ainda assim, o meu pudor continua a pedir demasiadas desculpas. Ela ensinou-me a ver a baixa auto-estima feminina em cada detalhe da vida, nos pequenos tiques automáticos. Sentimo-nos culpadas de tudo, sempre, até do desejo dos homens"Sabe, eles até preferem as que têm asas, mas é mais seguro casarem-se com as passivas, as que vão ficar em casa."

Foto: DR

E se amei a poesia desde que comecei a ler, a de Maria Teresa Horta era tudo o que ela era: sedutora, frontal, sensível, delicada, selvagem. "Eu sou a minha poesia", dizia. Uma vez ouvi-lhe que "os poetas são os alquimistas do futuro. Enquanto houver poetas há sonho. Enquanto houver poetas, há esperança para a sociedade. Os alquimistas transformam em ouro aquilo em que tocam, mas os poetas criam o sonho que é a coisa mais espantosa do ser humano: a capacidade de imaginar livremente, o bem e também o mal." Foi reconhecida, ainda o mês passado, como uma das «100 mulheres mais influentes e inspiradoras do mundo», pela BBC. A sua biografia A Desobediente, escrita por Patrícia Reis e editada em 2024, já vai na 6.ª edição. Maria Teresa Horta é um símbolo da democracia, tão suada ontem, tão frágil hoje.

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