Numa sociedade em constante evolução, o conceito de liberdade ecoa de forma distinta para cada geração. Para algumas, é a memória viva da Revolução que trouxe uma nova aurora a Portugal, um Abril que marcou para sempre o rumo da nação. Enquanto para outras, é uma luta contínua, uma batalha diária pela igualdade de género e pelo reconhecimento pleno dos direitos. Ao entrevistar três mulheres de diferentes idades, embarcamos numa viagem através do tempo, explorando as suas perspetivas sobre a liberdade e os desafios enfrentados ao longo de décadas. O que é que ainda está por se cumprir quanto aos direitos das mulheres? Que injustiças e hábitos permanecem que continuam a barrar o caminho das mulheres? Para algumas, foi um despertar da esperança, um momento em que o país se uniu numa voz de mudança. Recordam o clima de expectativa, a fervilhante atmosfera de transformação, onde noos ideais se erguiam como pilares de uma nova era. Para outras, o 25 de Abril é uma mudança contada pela família e descrita nos livros de História. Ainda assim, e ao longo dos anos, esses ideais confrontaram-se com desafios persistentes na igualdade de género. E, olhando para o Portugal de hoje em comparação com o Portugal dos anos 70, surge a reflexão sobre o caminho percorrido e o que ainda falta alcançar.


Como era a vida antes de Abril de 1974?
Portugal era invivível. Tudo gerava medo, e o medo é uma coisa que não tem forma, não tem contornos, não tem linhas. Não sabíamos se o outro, eventualmente, era um delator ou não. Esse ambiente de judicatura [era] perpétuo, continuado, era a falta da liberdade. [Antes do 25 de Abril] eu decidi que ia para os países da Europa do Norte, essa coisa exótica que eram os países democráticos. Já estava tudo organizado. Em Portugal, a música - pop, rock, tudo -, era proibida. Só havia um programa, que era o Em Órbita, ao final do dia. E só se tinha aquela hora para ir ou para [nossa] casa, ou para casa de alguém, para poder ouvir. Ao nível das vestimentas, tudo era sujeito a um controle. O que era exótico, o que era diferente, o que era estranho, e o que era absolutamente procurado, desejado, era essa "coisa" que se vivia nalguns países... Onde se podia sentar na rua, sentar no chão, calcar a relva, estar de papo para o ar, olhar para o céu. Nada disso era viável antes. Não se estava em pequenos grupos, em brincadeiras. O próprio riso era também altamente censurado. Era sujeito à censura. Tudo isso era absolutamente invivível. Portanto, eu ia-me embora. Quando acontece o 25 de Abril eu vou dar aulas pelo País. Acontece uma coisa extraordinária que eu não sabia o que era: andar à noite na rua. Essa liberdade era uma coisa que nós não conhecíamos.
Tinha 17 anos, o que acontece a seguir?

Estava no primeiro ano da universidade, no curso de Filosofia. Quem ia para o secundário, quem ia para o liceu, era apenas uma ínfima parte da população. E, portanto, estávamos a falar de uma população altamente analfabeta. Quando acontece o 25 de Abril, democratiza-se o ensino, a escola é aberta a toda a população. Nessa altura fui trabalhar em mecanografia, um sistema pré-informático. Eu também já tinha tirado um curso de alfabetização, com a Esperança Cortesão, mulher do Agostinho da Silva. Decido ir dar aulas, escolho ir por todo o País de motorizada. Como cresci no Porto, tinha essa curiosidade, que para mim foi muito importante. A questão da mobilidade, sobretudo a mobilidade de uma mulher, era decisiva. Estive no Algarve, estive em Sintra, na zona de Viana, em Trás-os-Montes, e andei por todos esses lugares. Eu era professora. Era portadora de qualquer coisa que era um bem essencial. Para além disso, eu tinha feito o curso de alfabetização. E aquilo que eu fazia era ensinar as pessoas a escrever. Porque o maior vexame é não saber ler, não saber assinar. Dei aulas de alfabetização aos cantoneiros, por exemplo, que eram quem tomava conta das rumas, das estradas. Tinha 19, 20 anos. Isso aconteceu durante cinco anos. Dava aulas às mais diversas disciplinas para as quais era preciso dar aulas, a pessoas de todas as idades. Isso deu-me uma mobilidade e uma liberdade extraordinárias. Era miúda, vivia sozinha. E sem tutoria, que ainda é o modelo de controle sobre as pessoas e sobre as mulheres em particular, circulava com uma grande à vontade, uma grande liberdade. Eu quando chegava ao Porto, que era a minha cidade, estranhava. E estranhava justamente essa tutela, o machismo prevalecia. Não é do dia 24 para o dia 25 de Abril que se mudam as formas de estar. Vou dar um exemplo: O Movimento das Coisas, de 1985, de Manuela Serra, um dos filmes mais notáveis feitos em Portugal, é um filme que é completamente censurado pelos seus pares. Sente-se que viveu justamente essa tutela dos homens que dominavam na altura. E ela nunca mais fez filme nenhum. As mulheres são sempre apagadas da história, de toda a narrativa, de tudo. São emanações de uma grande raridade.

Que sinais perduram de que essa tentativa ainda prevalece?

Há duas semanas, passei ali na Imprensa Nacional e li isto [pega num livro]. Noticiar a liberdade. Testemunhos de jornalistas que estiveram na cobertura dos acontecimentos ocorridos no dia em que a ditadura terminou e Portugal regressou à democracia. Eu não quis acreditar neste título. Entrei e fui comprar o livro. É de dezembro de 2023. A democracia é a igualdade de todos perante a lei – é isto que faz a democracia. Termos todos os mesmos direitos. Quando em 2023 as nossas elites consideram isto, é estranho, é distópico. E isto dá-nos a noção do que é que nós entendemos por democracia. E dá-nos a noção de qual é a situação em que ainda vivemos. Depois, são 20 depoimentos, e só há duas mulheres. Uma delas é Maria Antónia Palla, que a dada altura refere um elogio que lhe fizeram, que "escrevia como um homem." Naquele contexto, era um elogio. Mas nós continuamos, muitas vezes, a achar que é elogioso.
Como vive isso na pele?
Eu, sexagenária, confirmo dizendo que essa manifestação de inferioridade intrínseca às mulheres se manifesta, ainda, naquele machismo desprezível ou nesta dimensão amável, condescendente, paternalista. Isto acontece. Eu, sendo administradora de duas empresas, lido com clientes, fornecedores, e essas manifestações são quase sempre feitas com ternura amorosa, a que eu reajo com ironia e graça. Mas ela está lá, percebe? A idade dar-me-ia autoridade, certo? Muitas vezes, chego a casa e digo ao meu marido. ‘Olha Francisco, se fosses tu? Imagina. Se alguém te diria isto.’ E quando eu lhe digo isto, nós imaginamos a situação, e dá vontade de rir, de tal maneira isto é impensável. Porém é a norma.

O que ainda faltar conquistar às mulheres?
Há aqui duas coisas que acho também importante dizer. A sociedade, a nossa cultura, é patriarcal. A nossa linguagem é patriarcal, interiorizamo-la, nós naturalizamos isso. Eu tenho-me vindo a questionar-me sobre a flexibilidade no trabalho, que é uma coisa boa, contrariamente ao sistema rígido. De marcar pontos, de cumprir mais horas. Esta descoberta da flexibilidade vem de vermos muitas mulheres a trabalhar. Nas minhas empresas, foi uma forma de estar que eu institui. Nós temos um modelo económico, de produção de riqueza, e uma das riquezas é justamente a dimensão humana. A formação das pessoas. É o estar-se bem num lugar. Nas minhas empresas estabeleço regras e modos de funcionamento que se adaptam ao meu modo de ser, e eu costumo dizer que não quero ter pessoas que não têm uma vida pessoal. Não quero pessoas que estejam cativas de uma ideia de que o trabalho existe fora daquilo que são as outras dimensões da vida das pessoas. Dos filhos, dos pais que têm de cuidar… E é nesse sentido que eu acho que muitas vezes ser um homem ou uma mulher à frente de uma empresa.
Créditos Realização:

Direcção de Fotografia: Frances Rocha
Um filme de LBL team
